segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

0836) Os 360 graus do rock (20.11.2005)




O concerto de rock está se distanciando cada vez mais do show de música popular tradicional. Música é música. Rock é música mais tecnologia. O objetivo de um show de música é mostrar canções. O objetivo de um show de rock é mergulhar o espectador numa experiência sensorial que consiste basicamente em sons e luzes. Estes sons e luzes são gerados em torno de canções, mas ganham tal autonomia que as canções nem precisam ser (e geralmente não são) grande coisa. Um show acústico do U-2 pode até ter umas boas canções (eles são bons letristas e músicos), mas essas canções renderiam muito pouco nesse formato.

Um artigo recente de William Gibson na revista Wired sobre um show do U-2 traz o ponto-de-vista de um escritor de ficção científica (o cara que criou a palavra “ciberespaço”) diante de uma das grandes exibições de alta tecnologia na indústria da música. Gibson lembra a contracapa de um LP do Pink Floyd em que o fetichismo high-tech do grupo se mostrava através de uma foto em que toda a aparelhagem eletrônica usada no show era enfileirada no chão, no meio de uma estrada, formando uma imagem simétrica com todos os instrumentos, amplificadores gigantescos, até as baquetas da bateria. A foto deixava bem claro que o rock não era mais produzido apenas com o velho trio guitarra-baixo-bateria. Amplificadores, pedais, sintetizadores & companhia passavam a ter um papel igualmente importante. Não se tratava mais de organizar notas musicais, mas de (literalmente) “fazer um Som”.

Já falei aqui (“O Zé Pelintra de Chumbo”, 20.3.2004) da massa sonora que constitui um show do Led Zeppelin, onde se pode saltar em segundos de um close sonoro onde percebemos o menor deslizar dos dedos num violão acústico para um ataque de Metal Ululante capaz de erguer nossos pés dez centímetros acima do chão. Essa esfera sonora sempre foi reforçada por uma esfera luminosa equivalente. A experiência visual que tive ao ver os Rolling Stones na Praça da Apoteose com “Bridges to Babylon” foi quase uma revelação tão intensa quanto o seu recado sonoro.

Paul McCartney abriu seu histórico show no Maracanã com um longo videoclip dirigido por Richard Lester. Agora, William Gibson comenta o novo show do U-2, “Vertigo”, e seu painel luminoso com 12 mil lâmpadas coloridas, controladas por computador, compondo os 12 mil pixels das imagens que se sucedem. Câmaras em infravermelho são dirigidas para a platéia, captando detalhes e jogando-as em enormes painéis. “Cuidado para não botar o dedo no nariz durante o show”, adverte o diretor de imagem, que manipula as câmaras com o auxílio de um console de PlayStation adaptado.

O megaconcerto de rock é uma esfera sensorial com 360 graus de experiência áudio-visual controlada. Sua medula continua sendo a música produzida pela banda no palco, mas seus efeitos se expandem para abranger som, luz, imagem, e a energia cega criada pela criatura de dez mil corpos e dez mil cabeças: a Platéia.




0835) 140 anos de Leandro (19.11.2005)



Neste sábado, 19 de novembro, comemoramos 140 anos de nascimento do poeta Leandro Gomes de Barros, o criador da literatura de cordel nordestina. Num dos primeiros artigos que escrevi aqui no JPB (“Viva Leandro”, 26.3.2003), lembrei aos leitores a necessidade de uma biografia do grande poeta pombalense. Reconstituir a vida de um sujeito de século e meio atrás é como catar confetes na rua um mês depois do Carnaval. A vida de Leandro tem inúmeras questões a serem respondidas, e é difícil supor quem as responda. O que lia ele na infância, na adolescência? Como foram os anos que viveu em Teixeira, certamente cruciais para sua formação como poeta popular? Leandro tinha 5 anos de idade quando ocorreu a lendária cantoria entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira; é de se imaginar as histórias que naquela época corriam de boca em boca sobre estes gigantes do repente, e o quanto isto terá impressionado o menino.

Os folhetos de Leandro, já no Recife, trazem os endereços de suas tipografias e residências. Ruas terão mudado de nome durante todos estes anos, mas talvez não seja impossível fotografar os endereços atuais, e traçar um mapazinho do “Recife de Leandro”, que imagino gravitando em torno do Mercado São José. Quanto à famosa transação comercial em que João Martins de Athayde comprou as máquinas, a oficina e os folhetos de Leandro, após sua morte, imagino que os descendentes de Athayde talvez guardem documentos, cartas, registros, que possam nos dar uma idéia (em valores monetariamente corrigidos) do peso econômico do cordel durante a vida de seu criador.

Dois temas constantes nos folhetos de Leandro são carestia de vida e esposa encrenqueira. Até que ponto isto refletia sua real vida doméstica? Outro detalhe importante é o do momento da substituição das antigas máquinas de composição manual (usadas nos jornais) pelos modernos linotipos; em que período isto se deu, e teria tido de fato um papel na criação do cordel? Meu palpite é que essa mudança se deu a partir de 1880, e “sucateou” as antigas máquinas, que Leandro pôde comprar por preço de ocasião, dando início à impressão dos primeiros poemas do Romanceiro Popular Nordestino.

Será possível mapear hoje a rede de distribuição que levava os folhetos de Leandro para outros Estados do Brasil? Onde Leandro conseguia os clichês para as capas de folhetos? Quanto custava uma resma de papel? Quais os seus títulos que venderam mais? Estas perguntas, e muitas outras, ainda podem ser respondidas hoje; não sei se poderão daqui a mais algumas décadas. Para a análise literária das obras precisamos apenas das obras, mas para entender todo o fenômeno social do cordel temos que esclarecer também todas estas questões de ordem material.


0834) “O Professor e o Demente” (18.11.2005)



O título completo deste excelente livro de Simon Winchester (Ed. Record, 1999) é: O professor e o demente – Uma história de assassinato e loucura durante a elaboração do Dicionário Oxford. É a história de dois homens diferentíssimos e semelhantes. Um deles é o Prof. James Murray, que a partir de 1879 começou a editar o Oxford English Dictionary, talvez o mais extenso dicionário do mundo ocidental (não consigo visualizar, por maior que seja minha imaginação, o que seria um “Grande Dicionário do Idioma Chinês da Universidade de Pequim” ou coisa equivalente). Para editar essa obra gigantesca (doze volumes, 414 mil verbetes ilustrados por 1 milhão e 800 mil citações) ele liderou uma equipe de dezenas de pessoas e centenas de colaboradores do mundo inteiro. Até Tolkien, o autor de O Senhor dos Anéis enviou material para o dicionário.

Um desses colaboradores remotos foi o Dr. W. C. Minor, cirurgião americano que cumpria pena em Broadmoor, um asilo para lunáticos. Culto e de boa família, Minor era sujeito a ataques de paranóia, e durante um deles matou um sujeito que ia passando na rua. Foi internado no asilo, onde passava os dias lendo. A chance de colaborar com o Dicionário Oxford surgiu-lhe como uma bênção, mantendo-o ocupado durante anos, lendo obscuros livros dos séculos 16 e 17 para rastrear o primeiro aparecimento de milhares de palavras da língua.

O livro de Winchester conta a vida dos dois personagens, revela curiosos detalhes sobre o processo de preparação e edição dos dicionários (assunto que por motivos genéticos me interessa sobremaneira), discute a natureza e o tratamento da esquizofrenia... Reportagens deste tipo têm uma vantagem sobre romances: podem mudar de assunto quando lhes interessa, sem a obrigação da “continuidade dramática” ou que nome lhe queiram dar. Desse modo, Winchester num capítulo descreve as miseráveis condições de vida no bairro londrino de Lambeth (onde ocorre o crime de Minor), dá uma geral na história dos dicionários ingleses, relata alguns episódios arrepiantes da Guerra da Secessão norte-americana (em que Minor, ao que parece, ficou traumatizado e se desequilibrou mentalmente), discute questões obscuras do idioma...

Winchester aborda alguns acontecimentos que têm versões fantasiosas (como o primeiro encontro entre Murray e Minor) e restaura a possível verdade dos fatos; e mesmo quando pisa naquele perigoso terreno dos historiadores, o de imaginar o que Fulano de Tal estaria pensando num dia remoto, cem anos atrás, ele nunca perde a perspectiva: conjetura em voz alta diante do leitor, sempre deixando claro que se trata de conjeturas a partir de indícios históricos. Hoje em dia, vê-se muito alguém conceber um romance seguindo as regras da reportagem, ou escrever uma reportagem seguindo as regras da ficção. É um café-com-leite onde ambos os gostos estão presentes, mas não se pode separar um do outro.

0833) Cientistas distraídos (17.11.2005)


(Isaac Newton)

Li uma história em que um sujeito místico furou os próprios olhos e os próprios tímpanos porque a visão e a audição estavam atrapalhando seu contato com Deus. Ao que parece, ele achava que Deus estava apenas dentro da mente dele, e não no resto do mundo – o que me soa, no mínimo, como uma tremenda contradição. A meu ver, o indivíduo que faz isto está admitindo que sua fé é pouca e sua convicção é fraca, e que a luz do sol ou o barulho do trânsito não fazem parte da presença divina. Pois ele que faça bom proveito.

Com uma coisa, no entanto, eu concordo: os cinco sentidos são um contratempo, quando estamos tentando nos concentrar em idéias abstratas. Vem daí a proverbial distração dos cientistas. Dizem que Isaac Newton estava há vários dias resolvendo algum problema matemático complicado, sem comer direito. A empregada interveio: “Não, Seu Isaque, agora chega, o senhor agora vai ter que comer alguma coisa. Tá aqui um ovo, tá aqui a chaleira fervendo, tá aqui o relógio. Conte 5 minutos de fervura e coma o ovo” Ela foi na bodega, e quando voltou viu Newton sentado à mesa, segurando o ovo e olhando para ele, enquanto o relógio fervia calmamente na chaleira.

Para mim, isto não é sinônimo de abestalhamento. É sinônimo de alta inteligência, de uma mente superior, de uma capacidade de concentração que deveria envergonhar todos nós a quem tal coisa jamais aconteceria. Raciocínio abstrato é como um castelo de cartas. Tudo depende do encadeamento sucessivo de idéias, e qualquer interrupção desaba a construção inteira, forçando-nos a recomeçar do zero.

Muitos cientistas pensam por analogias visuais, como se criassem mentalmente uma “árvore genealógica” em que idéias se ramificam, se associam, se interligam. Einstein dizia que pensava por “intuições visuais e musculares”, e que depois tentava comprovar matematicamente as hipóteses geradas desta forma. E é claro que essa necessidade de concentração não cabe apenas aos cientistas, mas a qualquer pessoa que se dedique à criação abstrata e solitária: poetas, filósofos, matemáticos. Criação solitária requer silêncio, isolamento, concentração.

Por outro lado, pessoas criativas que trabalham em grupo (executivos, cineastas, engenheiros, regentes de orquestra, etc.) funcionam muitíssimo bem num ambiente cheio de gente falando em voz alta, porque aí trata-se de reunir e harmonizar o que se passa na cabeça de várias pessoas. Criação coletiva requer agrupamento, intensa troca de idéias, reavaliação constante do que está sendo feito, para permitir “correções de rumo” e ter certeza de que todo mundo está pensando a mesma coisa. Pode-se pensar criativamente em silêncio, e pode-se pensar criativamente em voz alta num lugar público. O místico citado no começo parece ter sido apenas um sujeito de temperamento extrovertido que julgava erradamente ter a obrigação de só poder pensar em Deus “para dentro”. O Deus dele devia estar lá fora.

0832) A canção sertaneja (16.11.2005)



Não tenho preconceito contra a chamada canção sertaneja (paulista, mineira, goiana, etc.) que hoje é um dos grandes sucessos fonográficos e televisivos no país. Eu simplesmente não gosto. E não gosto porque, curiosamente, o que mais falta nessas músicas é sertão. A música que vejo sendo feita por Zezé di Camargo & Luciano, Leonardo, Bruno & Marrone e tantos outros, nada tem de música rural, de sertão, de interior. É uma canção romântica urbana, cujos antecedentes na MPB são os boleros que nos anos 1960, quando comecei a dedilhar meu violãozinho, eram gravados por cantores como Anísio Silva, Orlando Dias, Agnaldo Timóteo, Alcides Gerardi, Agnaldo Rayol. Essa canção romântica, que nós adolescentes considerávamos “coisa de gente velha e careta” fez, por obra e graça da mentalidade estratégica dos produtores, uma aliança tática com a Jovem Guarda e daí surgiram “os românticos jovens” como Wanderley Cardoso, Paulo Sérgio e Sérgio Reis, que acabou como um dos responsáveis por essa ponte romântico/sertanejo.

E não devemos esquecer Roberto Carlos, grande camaleão musical que começou imitando João Gilberto, depois aderiu ao rock, foi flertado pelo Tropicalismo, e a partir dos anos 1970 tornou-se o incontestado Rei da Canção Romântico-Popular. Musicalmente, os “sertanejos” de hoje são crias de Sérgio Reis, dos Agnaldos (Rayol e Timóteo), e do Rei. Sua música – pelo menos daqui de onde os escuto – nada tem a ver com os sertanejos como Tonico & Tinoco ou Jararaca & Ratinho.

Reconheço que no chamado universo sertanejo existe toda uma faixa de artistas que fazem a música “segura peão”, a música que celebra o universo dos rodeios e das acrobacias eqüestres que a novela América não foi a primeira nem será a última a celebrar. Neste caso, sim, admito que o elemento sertanejo está presente. É um sertanejo urbano e de classe média, contudo, se me perdoam esta descrição aparentemente contraditória. O interior de São Paulo e Minas Gerais urbanizou-se, enriqueceu, é hoje uma colcha-de-retalhos de grandes fazendas e numerosas indústrias. Os “sertanejos” que produzem e ouvem esse tipo de música andam de jipe, usam chapéus e botas comprados em shopping centers, bebem uísque. Não são os sertanejos que nasceram “naquela serra, num ranchinho beira-chão”, não são mais os que viajavam “pela estrada de Ouro Fino”.

Dizem alguns teóricos que a Arte mais visceral brota das situações-limite, e que a pobreza é uma destas. Quando o sujeito ganha dinheiro, adquire conforto e se estabiliza na vida, passa a produzir uma arte meramente consumista, de entretenimento banal. Não digo que seja uma lei universal – mas que acontece, acontece. O insuportável excesso de músicas “sertanejas” que falam apenas bobagens amorosas é, para mim, um sinal de vitória do comercialismo sobre a expressão artística. O sertão entra como pretexto, mas é um sertão que não existe mais, um sertão-espetáculo, um sertão-souvenir, uma griffe chamada sertão.

0831) A Balada do Velho Marinheiro (15.11.2005)



Um dos melhores livros do ano, para quem gosta de poesia, é a edição de A Balada do Velho Marinheiro de Samuel Taylor Coleridge (Ateliê Editorial, São Paulo; R$ 65,00). Este poema é um dos clássicos do Romantismo em língua inglesa, e também um dos clássicos da literatura fantástica, ao descrever as aventuras de um marinheiro numa viagem ao Polo Sul, em que toda a tripulação morre, e ocorrem vários encontros com entidades sobrenaturais. A tradução é de Alípio Correia de Franca Neto, também autor de uma longa e valiosa introdução que coloca o poema no contexto da obra do autor e da literatura da época (a “Balada” foi composta entre 1797 e 1816). O volume também inclui texto e tradução de outro poema de Coleridge, o famoso fragmento do “Kublai Khan” composto por ele durante um sonho (ver “O sujeito de Porlock”, 28.2.2004), e introduzido por um curto ensaio de Harold Bloom. De quebra, as formidáveis gravuras de Gustave Doré.

No poema, um grupo de convidados chega a uma festa de casamento, e um deles é abordado por um velho marinheiro curtido pelo sol, que insiste em lhe contar o que lhe aconteceu. O convidado se detém a contragosto, mas logo fica fascinado pela narrativa do velho. Este conta que durante a viagem ao Polo um albatroz pousou sobre o seu navio, e que ele, por mera crueldade, o matou com uma seta desferida com sua besta. Como castigo, os companheiros penduram o corpo do albatroz em seu pescoço. Daí em diante, desgraças e mais desgraças se abatem sobre a tripulação, que morre de sede: “Água, água por todo lado / sem nada que beber!”

Eles cruzam com um navio fantasmagórico onde avistam dois vultos-esqueleto: a Morte e a Vida-em-Morte, que jogam nos dados a sorte da tripulação, sendo que a Vida-em-Morte ganha o marinheiro. Depois que o navio vagueia por um tempo incalculável, o marinheiro avista criaturas aquáticas de rara beleza e as abençoa; o corpo do albatroz desprende-se do seu pescoço, libertando-o. Daí em diante, os espíritos do Bem, fazem cair a chuva, matando sua sede, e reanimam temporariamente os cadáveres da tripulação. O marinheiro consegue retornar a sua terra natal, mas resta-lhe um castigo: ao encontrar uma pessoa que ele instintivamente reconhece, tem que contar-lhe o que lhe ocorreu: “Ao ver um rosto, sei na hora / que é alguém que deve ouvir a história”. Transforma-se num Penitente.

Coleridge, Thomas de Quincey, Wordsworth, Lord Byron e outros criaram o Romantismo inglês que é uma das fontes da narrativa fantástica. Este poema (descendente da “Odisséia” de Homero) é primo de textos como “Le Bateau Ivre” de Rimbaud, “Manuscrito encontrado numa garrafa” e “A Aventura de Arthur Gordon Pym” de Edgar Allan Poe, e de nosso auto tradicional da Nau Catarineta, com seus marujos sedentos e extraviados sendo seduzidos pelo demônio que, na figura do Gajeiro, promete-lhes a salvação. São os pesadelos e as fantasias das grandes civilizações marítimas dos séculos 15 a 18.

0830) Canções de depressão (13.11.2005)




“Como?!” exclamará o leitor. “Será possível que exista um gênero musical como este?” Claro que existe, amigo. Qualquer letrista sabe que nele cabem sub-gêneros importantes da MPB, como a música de “dor de corno” ou “dor de cotovelo”, a música “de fossa”, e assim por diante.

Pode até não parecer, em tempos frívolos e álacres como os de hoje, regados a cerveja gratuita e publicidade efervescente; mas houve um tempo em que os grandes sucessos de nossa música eram nesse tom, cheio de olheiras empapuçadas, cheirando a cigarro, uísque, fim-de-noite.

O historiador Rui Castro defende a tese de que uma das boas coisas da Bossa Nova foi acabar com o reinado da música deprê que dominava a MPB nos anos 1950. Quem não se lembra de Maysa, com aqueles enormes olhos gateados, plenos de angústia existencialista, entoando: “Meu mundo caiu, e me fez ficar assim...” ou “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor”?

Era uma década maníaco-depressiva. De dia, as pessoas tostavam ao sol de Copacabana a epiderme disponibilizada pelo advento do biquíni; de noite, enchiam-se uísque e conhaque, e fumavam furiosamente até que o nascer do sol fechasse o piano-bar.

Sim, a canção de depressão é parte vital de nossa cultura.

Compositoras como Dolores Duran e Suely Costa cantaram como ninguém a terrível beleza e a terrível lucidez da solidão. Cantoras como Waleska e Márcia deram suas vozes ao primeiro sentimento que brota num ser humano: o de saber que é somente um.

Não se pense, contudo, que só as mulheres passam por isto. Tito Madi compôs o irretocável hino da fossa: “A noite está tão fria... chove lá fora!” que Milton Nascimento, um PhD em solidão, transformou numa tomografia computadorizada da própria alma no disco “Milagre dos Peixes ao Vivo”.

Adelino Moreira aconselhava, com a voz de Nelson Gonçalves: “Faça como eu, acostume-se à derrota; pois a vitória não pertence ao infeliz”; e o inimitável Silvinho já rasgou o peito por sobre a pátria, gritando: “Esta noite, eu queria que o mundo acabasse, e para o inferno o Senhor me mandasse, para pagar todos pecados meus!”

Outros compositores eram mais comedidos; basta pensar na enorme delicadeza e sobriedade de Edu Lobo & Torquato Neto: “Adeus, vou pra não voltar... E onde quer que eu vá, sei que vou sozinho...”

O gênero não é exclusivamente brasileiro; qualquer admirador do “blues” sabe que este não tem outro tema senão o abismo da depressão, principalmente para quem “wakes up in the morning” com a sensação quaderniana de que o mundo é um Cárcere e que nós todos somos Párias Degredados cumprindo uma obscura Sentença.

John Lennon produziu neste espírito a obra-prima “Yer Blues”: “I am lonely, wanna die, if I ain’t dead already, girl you know the reason why...” A canção de depressão é aquele ponto em que a alma do artista toca com o pé no fundo do poço e toma impulso de volta, na obstinada esperança de ver de novo a luz do dia, e de voltar a respirar.






0829) O Saci e o Halloween (12.11.2005)


(o Saci Pererê, de Ziraldo)

O mês de outubro espalha pelos muros do Rio as pichações: “Halloween é o cacete!”. São os nacionalistas inconformados com mais esta moda norte-americana que invade nossas escolas, nossos shopping centers, nossas TVs. De fato, o Halloween, ou Dia das Bruxas, é uma coisa típica da cultura de língua inglesa, e só recentemente está botando as unhinhas de fora, doido para penetrar no belo mercado que a classe média brasileira representa. Depois dele, meu Deus, vamos importar o que mais? O Dia de Ação de Graças? O 4 de Julho?

Parece que o deputado Aldo Rebelo, comunista histórico e defensor do idioma, deu entrada num projeto de lei instituindo o Dia do Saci. Eis aí uma contra-ofensiva folclórica que teria divertido Monteiro Lobato! Se bem que este não tinha preconceito algum contra os EUA, pelo contrário: achava que tínhamos mesmo era que imitar o pragmatismo e a seriedade dos americanos, e não hesitou em fazer de Tom Mix, o Gato Félix e Shirley Temple personagens das histórias do Sítio do Picapau Amarelo. Quem é mesmo contra os monstrinhos anglo-saxônicos é o presidente Hugo Chávez, que recentemente andou criticando a importação de hábitos norte-americanos na Venezuela, e o Halloween em particular, argumentando que isto faz parte da cultura americana: “uma cultura do terror, de instilar o medo nos outros países e em seu próprio povo”.

Devagar com o andor, Presidente Chávez. O culto ao medo, o culto aos monstros, aos seres sobrenaturais, não é uma invenção do Governo Bush. Está em todas as culturas, e está muitíssimo na nossa. Se quiséssemos produzir um Halloween tipicamente local, não precisaríamos fazer mais do que consultar a Geografia dos Mitos Brasileiros de Câmara Cascudo, obra tão fascinante e degustável quanto o Livro dos Seres Imaginários de Jorge Luís Borges.

O Halloween americano é uma festa onde se presta culto a esses seres. Nós, aqui no Brasil, não temos uma festa semelhante. Acreditamos em boitatá, mula-sem-cabeça, iara, boto, saci pererê, cramondongue e pé-de-garrafa, mas nunca organizamos essas crenças em torno de uma festa com data e rituais. E por um lado isto é bom, porque mantém essas crenças afastadas das manipulações de publicitários desocupados e comerciantes sem imaginação. Eu mesmo não gostaria de entrar num shopping no “Dia do Saci” e ver a imagem do Saci (ou de outro monstrinho merecedor de respeito) servindo de chamariz para vender tênis (“Compre um pé de Nike para seu saci, e leve o outro de graça!”), cachimbos, bonés ou sei lá o que. O Halloween é uma festa de celebração de rituais pagãos e de medos ancestrais, mas transformou-se numa evento comercial, movido pelo mais terrível medo do mundo capitalista: a Queda nas Vendas. O seu problema não é falar inglês, é falar em cifrões. O perigo que corremos não é perdermos a suposta pureza de nosso folclore, mas reafirmarmos nossa subserviência diante da máxima de que Tudo Pode Ser Vendido.