sexta-feira, 4 de setembro de 2009

1251) “Os Sertões” (17.3.2007)



Reli, ao longo de cinco noites, o romance-reportagem de Euclides da Cunha, que eu tinha lido por volta dos 25 anos. É outro livro, porque já é outro leitor. Por mais que a gente recorde o desenho geral da obra, os episódios mais vívidos, as frases mais tonitruantes, a releitura é feita agora à luz do que aprendemos no intervalo. As comparações, as associações de idéias, são outras. O Brasil é outro. Quando li Os Sertões o país estava sob uma ditadura militar, o Exército era o Inimigo, e podíamos imaginar Canudos como um esboço de Socialismo Sertanejo. Hoje mudou tudo.

Há 110 anos, a cidade, através de suas Forças Armadas, invadiu Canudos. Hoje, Canudos invadiu a cidade: para onde a gente olhe vê a Favela, o casario, as trincheiras, escuta o espoucar dos tiros e sente o silvar das balas perdidas. O tiroteio de Canudos deixou para trás o sertão bruto de Cocorobó e Jeremoabo, pegou ônibus, pegou misto, pegou pau-de-arara, desembarcou no Rio e se instalou na Rocinha, no Alemão, na Providência, no Vidigal. Quando o Exército voltou triunfante, brandindo a cabeça de Antonio Conselheiro como uma garantia de que a República não seria derrubada, esqueceu-se de olhar para trás e ver os milhões de jagunços que o seguiam a pé e de foice em punho.

Estou sendo melodramático, mas é o jeito. Melodrama é tragédia diluída em sentimento. O livro de Euclides é tragédia pura, é a história de uma situação-limite vivida por um País, em vez de por um simples grupo de indivíduos. É de uma verdade e uma intensidade insuportáveis, se nos dedicarmos a pensar sobre ela e conduzir estes pensamentos até as últimas conseqüências – entre as quais está a constatação de que a situação cem anos depois é cem vezes mais grave, e que nem toda a evolução tecnológica do nosso Exército pode fazê-lo ganhar esta segunda batalha que se desenha. Porque, mais uma vez, trata-se de uma guerra que não é guerra, não faz parte das guerras estudadas nos manuais militares.

Os sitiados de Canudos colocavam o olho na frincha da janela e, de lá do seu vale rodeado de colinas, viam a linha implacável dos batalhões que os cercavam, e que nos três últimos meses de campanha vieram “comendo pelas beiras” seu povoado, casebre a casebre, cadáver a cadáver. Hoje somos nós que quando saímos à rua ou vamos à praia olhamos para o alto e vemos os morros cobertos dos casebres que nos invadem. Por enquanto, ainda são nossos. Não se enganem: 95% dos favelados cariocas são tão pacíficos e trabalhadores quanto eu e você, caro leitor. São os 5% restantes que não param de crescer. Há comboios de suprimentos (dinheiro, armas, drogas) que não param de chegar às suas mãos, para fortalecer-lhes o cerco. É um Canudos-Bizarro, uma contrafação, uma caricatura grotesca daquele povoado ingênuo onde os sinos tocavam a Ave-Maria toda tarde, com ou sem bombardeio. É um Canudos do Mal. Tivemos 110 anos para evitar que surgisse, e se não o fizemos não foi por falta de um Livro.

1250) Treze 0x2 Corinthians (16.3.2007)



Vi o jogo de anteontem pela Bandeirantes (a Globo do Rio estava exibindo Paraná x Flamengo). Sei que o Treze não anda bem das pernas. Ver que o quadrangular decisivo do primeiro turno está sendo disputado entre o Campinense e Os Três Irmãos Sertanejos é brincadeira... Mas, torcer é acreditar no impossível. Plantei-me diante da TV e cruzei os dedos. O Corinthians está em franca decadência. O time está tão ruim que eu só penso que é complô dos jogadores para derrubar Leão. Mas jogou em ritmo de treino e tirou o Galo logo no primeiro jogo. O Treze até que teve alguns acessos no primeiro tempo. Chutou umas bolas perigosas, perdeu os habituais gols-feitos, e teve um pênalte não marcado a seu favor, mas numa jogada tão confusa e rápida que não dava mesmo para o juiz ter visto.

O Corinthians fez um gol impecável de contra-ataque, bola cruzada na cabeça e testada de cima para baixo. Logo após, perdeu um gol com a barra escancarada e permitiu que o Galo continuasse vivo. No segundo tempo, fez o gol que o Treze tentou fazer várias vezes no primeiro: falta na quina esquerda da área, bola cruzada no segundo pau, e um “thierry henry” aparecendo não se sabe de onde para tocar para dentro. O jogo acabou nesse lance. O resto foi aquele cerca-lourenço no meio de campo, o time que se considerava pequeno atacando meio às cegas, e o time que já foi grande recuado, chutando bolas pro mato. Vi as arquibancadas do Amigão repletas, e só lamento que o jogo não tivesse sido um pouco melhor, para animar a galera a vir de novo. Muito torcedor bissexto fica anos sem ir ao campo porque no dia que vai acontece uma derrota, uma pelada, ou as duas coisas juntas.

Curiosamente, foi um jogo com quatro expulsões mas não foi um jogo violento. O número de faltas é que foi alto, e no segundo tempo já estava todo mundo com cartão amarelo. Mas violência, felizmente, não houve. Para evitar passarmos de novo o constrangimento que tivemos em 2005 quando perdemos nos pênaltis para o Fluminense e os inconformados fizeram uma série de besteiras, motivando a interdição do Amigão. Tivemos que fazer uns jogos de portões fechados na Série C e acabamos nos dando mal.

A Copa do Brasil é a competição ideal para times medianos como os da Paraíba, os quais, se souberem se preparar, têm tudo para enfrentar de igual os tais times grandes daqui. Infelizmente, o Treze também teve uma decadência visível de 2005 para cá. O futebol que mostrou quarta-feira foi esforçado, correto, mas sem brilho, sem vibração. É a síndrome do time pequeno contra o time grande: entra em campo achando que só o fato de estar jogando aquele jogo já é honroso o bastante, e se dispensa de tentar ganhar. É uma pena, porque a Copa do Brasil pode ser conquistada numa série de 6 ou 7 disputas mata-mata. Não existe título mais acessível para os times pequenos que não conseguem manter uma continuidade de resultados ao longo dos 40 jogos de um Campeonato Brasileiro.

1249) O lobisomem (15.3.2007)


Diz a Antropologia que a Magia é concreta, e a Religião é abstrata. Com o passar dos milênios as religiões foram ficando cada vez menos antropomórficas e mais abstratas. As mitologias grega, nórdica, etc., eram uma espécie de telenovela melodramática em que os deuses não eram muito diferentes dos seres humanos, em suas paixões, vinganças, amores e ódios. O Judaísmo ainda é antropomórfico: o Deus do Velho Testamento se parece com as divindades mitológicas antigas. O Cristianismo, com o Novo Testamento, tem um humanismo fraterno que foi sua grande contribuição à humanidade, mas ainda é antropomórfico, com suas imagens, santos, etc. O Protestantismo fez uma ruptura na direção de uma abstração maior, eliminando por exemplo, a adoração às imagens (como o Islã aboliu a representação da figura humana, embora tenha permanecido antropocêntrico em seus valores e em sua legislação). Eu diria que a mais refinada das religiões é o Taoísmo, este sim, plenamente abstrato, relativizando sempre as contingências humanas e absorto na tentativa de entendimento das forças essenciais que movem o Universo.

A Magia, por outro lado, é o terreno do dia-a-dia, da nossa experiência voltada para a fisicalidade do mundo, dos seres e das coisas. A Religião, quanto mais evolui e se abstrai, mais exige de nossa capacidade intelectual de abstrair, generalizar e sintetizar. A Magia se baseia naquilo que Lévi-Strauss chamou de “a ciência do concreto”, uma sabedoria baseada no contato íntimo e intenso com as coisas que nos cercam.

Ainda não pude ver o filme que Vladimir Carvalho fez sobre José Lins do Rego, mas tenho relido algumas coisas do mestre, e em Menino de Engenho me deparo com este trecho, que não apareceria mal num livro de Lévi-Strauss, Mircea Eliade ou outro pesquisador das religiões e magias. Carlinhos, o narrador, está se referindo a José Cutia, um sujeito esquisitão e pálido que é suspeito de ser lobisomem porque precisava “corar com o sangue dos outros”:

“Eles me contavam estas histórias dando detalhe por detalhe, que ninguém podia suspeitar da mentira. E a verdade é que para mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em Deus. Ele ficava tão perto da gente, ali na Mata do Rolo, com as suas unhas de espetos e os seus pés de cabra! Deus fizera o mundo somente. Era distante dos nossos medos, e nós não o víamos como a José Cutia com o seu cesto de ovos. Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era o mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma idéia vaga de sua pessoa. Um homem bom, com um céu para os justos e um inferno para a gente ruim como a velha Sinhazinha, com caldeiras e espetos quentes. Mas tudo isso depois que o sujeito morresse. O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva. Era sair antes da meia-noite para a Mata do Rolo, e encontrá-lo.”

1248) Canção de Passarinho (14.3.2007)



Prefiro classificar a Música Popular Brasileira de acordo com os assuntos das letras, e não de acordo com os ritmos, até porque estes últimos são muito complicados. Até hoje não sei a diferença entre arrasta-pé e marcha-quadrilha, entre frevo-canção e marcha-rancho, entre mela-cueca e chacundun. Por outro lado, o assunto da letra é visível de imediato, como por exemplo o de hoje: Canção de Passarinho.

Acho que bastaria a obra de Luiz Gonzaga para preencher por inteiro este verbete, porque parece que o sanfoneiro de Exu tomou para si a tarefa de recensear todos os pássaros nordestinos. Começa, é claro, por “Asa Branca” e “Assum Preto”, dupla alvinegra recentemente comentada nesta coluna. Logo em seguida vem, na minha memória afetiva, o famoso “Sabiá”: “A todo mundo eu dou psiu, siu-siu-siu / perguntando por meu bem...” Este é o primeiro, mas existe outro mais remoto, que nem sei se é de Gonzaga, mas minha Tia Adiza cantava maviosamente tardes afora: “Sabiá lá na gaiola fez um buraquinho / voou, voou, voou, voou... / E a menina que gostava tanto do bichinho / chorou, chorou, chorou, chorou // Sabiá fugiu do terreiro / foi cantar no abacateiro / e a menina diz a chorar: / Vem cá, sabiá, vem cá...”

Também é de Gonzaga a ominosa “Acauã” (“Acauã, acauã, vive cantando / durante o tempo do verão / no silêncio da tarde agourando / chamando a seca pro sertão”), a alegre “Pássaro carão” (“Pássaro carão cantou / anum chorou também / a chuva vem cair / no meu sertão...”), a melancólica “Vem-Vem” (“Vivo sempre escutando / a cantiga de vem-vem / quando ouço ele cantando / penso que é você que vem / fico de ôi no caminho / porém não chega ninguém”). Cada um desses pássaros, para o sertanejo, é um profeta instintivo de coisas que vão acontecer: seca, chuva, chegada de alguém.

Se a gente continuar em Gonzaga o dia amanhece. Podemos passar para Jackson do Pandeiro e “Casaca de Couro”, uma de suas canções mais belas (“Xô-xô-xô-xô, casaca de couro / cantando as duas na telha...”). E se estendermos o conceito de “passarinho” ao mais amplo de “ave”, temos Jackson com “O Canto da Ema” (“A ema gemeu / no tronco do juremá...”) e João do Vale com “Carcará”, dois clássicos em todos os sentidos. Xangai e Capinam fizeram juntos o belo “Qué qui tu tem, canário?”. Saindo do Nordeste, temos Chico Buarque com seu clássico “Sabiá” com Tom Jobim, além de “Passaredo”, um verdadeiro dicionário ornitológico marcado pelo refrão: “Bico calado / muito cuidado / o homem vem aí”). José Miguel Wisnik homenageou Gonzaga com seu híbrido “Anum Branco”. Saindo do Brasil, temos de cara os Beatles e a irretocável “Blackbird” de Paul MacCartney (“Blackbird singing in the dead of night, / take these broken wings and learn to fly...”). Todo mundo gosta de pássaro, bichinho que canta e que parece tão livre! Daí que compositores e cantores gostem de usá-lo como símbolo do que são, ou do que gostariam de ser.

1247) O ovo da serpente (13.3.2007)



Um menino, preso ao cinto de segurança de um carro, é arrastado até a morte por bandidos. Filhos drogados matando os pais, pais matando os filhos drogados, assaltantes queimando viva uma família, homens adultos estuprando e matando crianças. Parece um trailer do fim do mundo, e a cada dia que passa surge na imprensa a reação inevitável, proporcional e similar à ação. Gente querendo abaixar ou extinguir a maioridade penal. Gente pedindo o Exército nas ruas. Gente pedindo a pena de morte. Gente se armando para sair de casa.

Um poeta paraibano já descreveu este fenômeno: “O homem, que nesta terra miserável vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. Os apressados dirão que Augusto estava justificando e avalizando a Lei de Talião, o olho por olho, o pescoço por pescoço. Esquecem eles que os poetas, pela inquietude mental que os caracteriza, avalizam sempre os dois lados de uma questão. Augusto também avalizava o perdão, quando fala do “misericordiosíssimo carneiro”, que ao ser degolado perdoa o magarefe: “Quando a faca rangeu no teu pescoço, ao monstro que espremeu teu sangue grosso teus olhos – fontes de perdão – perdoaram!”

Os mais pragmáticos dirão que perdoar assim não faz sentido. E em verdade vos digo que a resposta violenta também não faz. O Brasil joga dezenas de milhões de brasileiros (cerca de um terço de sua população) numa situação de terror, sem educação, sem emprego, sem escola, sem saúde. Pelo outro lado, bombardeia essa população com apelos histéricos ao consumo, estímulos constantes à violência e ao sexo, e a uma cultura-de-massas onde se glorifica acima de tudo o dinheiro, o Status Social, o dinheiro, o Poder, o dinheiro, a Fama, o dinheiro. E quando 1% ou 2% dessa população abandonada deriva para o crime, os bem-pensantes vêm à imprensa pedir a pena de morte, de preferência para quem for negro e estiver sem documentos.

Não há ninguém mais brutal e mais cruel do que um cidadão-de-bem quando se sente ou se imagina ameaçado. Tudo que o cidadão de bem quer é que o deixem usufruir em paz dos seus benefícios de classe: ir ao shopping, ir à livraria, ir ao restaurante, viver em paz com sua família. Se os favelados ou os periféricos estão se matando uns aos outros, é problema deles, não seu. Quando um favelado ou um periférico vem roubar sua carteira, ele pede que os batalhões do exército invadam a Favela e a Periferia.

Já diz a sabedoria popular: “Quem criar caranguejeira, não reclame a ferroada”. Nenhum de nós é individualmente culpado pela miserabilidade a que um terço do País vem sendo empurrado, década após década. Não foi uma decisão nossa, e tenho certeza de que, se fôssemos consultados, teríamos sido contra. Não somos causadores, mas somos os beneficiários. Vivemos numa bolha artificial de consumo às custas desses milhões que vivem na miséria. Essa conta só faz aumentar, e cedo ou tarde O Cobrador vem bater à nossa porta.