quarta-feira, 24 de julho de 2024

5085) A exceção e a regra (24.7.2024)

 


 
Uma expressão popular diz que “toda regra tem exceção”. Há mesmo uma derivada desta: “Fulano é a exceção que confirma a regra”. 
 
Georges Perec usou de maneira muito pessoal esse conceito ao conceber seus romances sujeitos a regras arbitrárias e asfixiantes, aquilo que os franceses chamam de “contraintes”, ou restrições.


 
No imenso romance A Vida Modo de Usar (1978) Perec concebeu e executou uma porção de regras e as seguiu de maneira obsessiva. As regras são arbitrárias, ou seja, ninguém o obrigou a empregar essas regras e não outras; mas ele as criou e obrigou-se a segui-las, por impulso estético, por desafio intelectual, por divertimento maníaco. 
 
Como alguém que diz: “Vou escrever uma carta onde todas as palavras têm que começar com a letra C”. Guimarães Rosa escreveu uma carta assim para seu amigo João Cabral de Melo Neto.  Ninguém o obrigou a fazer isso. 
 
Leia aqui, na página do Templo Cultural Delfos, a “Carta ao Cônsul Cabral”:
https://www.elfikurten.com.br/2016/03/joao-guimaraes-rosa-carta-ao-consul.html
 
A literatura tem espaço para desafios desse tipo, e o maior desafio é produzir com isto uma história que se torne interessante para o leitor, que o faça ter vontade de continuar lendo sem parar, e não fechar o livro dizendo: “Ah, entendi. A regra é essa, e ele vai fazer isso até o fim... Tchau!...”. 
 
Não é só a regra. É o modo como a vida humana, mesmo submetida a regras bizarras, continua sendo a coisa mais interessante em um romance.  
 
Perec dizia, contudo, que não é apenas a regra que é obrigatória, mas a exceção. Nesse livro, por exemplo, ele descreve um edifício parisiense com dez andares e dez aposentos por andar; em tese, o livro deveria ter 100 capítulos, mas só tem 99.  Por que?  É a exceção obrigatória. 
 
Perec escreveu o famoso La Disparition (1969; traduzido no Brasil por Zéfere como O Sumiço) sem empregar a letra E em momento algum.  É possível, contudo, que em algum ponto do livro apareça, leve, serelepe, demente, uma letra E para ser essa famosa “exceção que confirma a regra”. Eu ainda não a encontrei. 
 
Perec comparou esse tipo de recurso à idéia do “clinâmen”, um nome latino atribuído a um conceito da filosofia grega, acho que formulado por Epicuro. 



(Epicuro)


A teoria dos gregos dizia que os átomos se movimentavam no espaço afastados uns dos outros, e num movimento uniforme, inalterável. Desse modo (questionava alguém) como os átomos poderiam ter começado a se misturar, produzindo a matéria como a conhecemos? 
 
A resposta é que em algum momento um átomo se desviava imprevistamente e se chocava com os átomos mais próximos, e daí começava um amontoamento, um turbilhão de choques, os átomos se recombinavam e a matéria surgia desse processo. Isto era o “clinâmen”. 
 
Ou seja: para que haja ordem é necessária a presença de um fator de desordem, de contradição, de desobediência à regra, de voluntarismo. 
 
Isto talvez não se aplique à Ciência e à moderna teoria atômica, mas é interessante quando aplicado à literatura, onde as regras são outras e, o que é melhor: são inventadas pelos escritores, e não impostas pela Natureza.
 
Siga a regra: mas deixe uma portinhola aberta para que por ali se infiltre a exceção. Para que? Para tornar a regra mais nítida. Como naqueles filmes em preto-e-branco onde “do nada” surge uma imagem de um objeto colorido (O Selvagem da Motocicleta, A Lista de Schindler, etc.). 



E também para mostrar que o mundo não comporta apenas o previsível, mas o inesperado. A natureza não consiste apenas numa Ordem, mas numa sucessão de Ordens e Desordens, equilíbrios e desequilíbrios, onde o excesso de um é compensado pelo surgimento do outro. 
 
Numa entrevista de 1981, Perec assim justificava a necessidade de “temperar” suas regras exigentíssimas com alguns deslizes propositais: 
 
É preciso, e isto tem muita importância, destruir o sistema das restrições, das regras. Esse sistema não tem que ser rígido, ele tem que conter um elemento de jogo... É como se diz: tem que ranger um pouco. Ele não tem que ser completamente coerente, é preciso que haja um clinâmen – algo que aparece na teoria de Epicuro sobre os átomos: ‘O mundo funciona porque, no seu início, existe um desequilíbrio’. Segundo Paul Klee, ‘o gênio é um erro no interior do sistema’”.
 
Uma grande parte das explicações do mundo o descreve como uma luta eterna entre o Bem e o Mal. A literatura vem glosando essa “batalha” há milênios: heróis e vilões, mocinhos e bandidos, gente do Bem e gente do Mal... 
 
Tudo isto existe, é claro, mas o mundo não se resume a isto. O Bem e o Mal são conceitos que se aplicam à vida humana, mas não ao universo como um todo. 
 
Não existe bem ou mal nas reações nucleares que fazem brilhar as estrelas, nem na força da gravidade, nem nas aglomerações de matéria que produzem planetas, cometas, etc.  O que existe ali é um cabo-de-guerra permanente entre a Ordem e a Desordem. 
 
A Ordem (vista do ponto de vista humano) pode ser uma coisa boa ou uma coisa ruim; a Desordem, idem. Os interesses humanos, sejam coletivos ou individuais, vivem mergulhados nessa oposição. 
 
Quando há um excesso de Desordem, é preciso que alguém imponha ali um pouco de regras, para que haja algum tipo de comunicação, de união coletiva, de esforço coordenado, de redução de esforços e otimização de resultados. O excesso de Desordem, o caos, leva à Entropia: à dissipação de energia do universo. 
 
Quando há um excesso de Ordem, é preciso que surja algum elemento perturbador, que desequilibra o que está imóvel, que vem “desafinar o coro dos contentes”, que pega aquela ordem adormecida e a desperta, extrai reações, faz com que ela volte à vida. O excesso de Ordem, o imobilismo, leva à Entropia: a dissipação de energia do universo. 
 
A Ordem absoluta não se distingue muito do Caos absoluto. Falta a ambos o elemento de contradição que põe o universo em movimento. 
 
A Vida (o surgimento de seres vivos) pode ser o clinâmen do universo. 




 
 


domingo, 21 de julho de 2024

5084) "Entrevistas Transcendentais": Federico Fellini (21.7.2024)




O Estúdio 5 de Cinecittà é um enorme caixote de cimento pintado de bege. Uma caixa de sapatos com um pé direito altíssimo e paredes totalmente lisas. O motoqueiro pára junto à calçada, eu desço, devolvo o capacete que usei.
 
Caminho na direção da entrada, pensando que daqui a dez mil anos este estúdio estará sendo desenterrado. Arqueólogos da humanidade futura tentarão encontrar algum sentido na profusão de artefatos primitivos que encontrará lá dentro: dragões, sofás, cavalos de madeira, bebedouros, barcos, câmeras, holofotes, espadas, animais mecânicos, camarins, esqueletos, castelos inacabados.




Uma assistente me faz entrar. Eu a acompanho na escuridão por entre tapadeiras enormes, e sinto que do outro lado delas há uma equipe; ouço gritos, ordens, barulho de equipamento sendo transportado. Chegamos a uma parede de compensado, ela abre a porta. Lá dentro, num recinto espaçoso e bem iluminado, há duas poltronas tendo entre si uma mesinha com água mineral e copos. Numa das poltronas, Federico está sentado, folheando um documento de muitas páginas. O ar condicionado é forte; ele traja camisa escura, calças de flanela, um casaco, um cachecol. Larga os papéis, ergue-se apoiando-se nos braços da poltrona, e me aperta as mãos com simpatia. Sentamos, e a assistente sai, fechando a porta atrás de si. 
 
 
-oOo-
 
 
BT – Muito grato por me receber, ainda mais quando está em pleno trabalho, iniciando a filmagem de um novo projeto. 
 
FF – Não se preocupe. Nesta fase inicial quem menos trabalha sou eu. Os marceneiros estão pondo de pé uma estação de trem, que não sei ainda como vou usar. Ou melhor: tenho uma cena pronta na cabeça, a chegada de um personagem, de madrugada, a uma cidade desconhecida. Não sei ao certo o que vai lhe ocorrer, mas ele desce para tomar um café ou comprar um jornal, distrai-se, e o trem parte sem ele. 
 
BT – E depois?
 
FF – Depois... não sei. Enquanto estiver filmando isto, mandarei construir um hospício. Talvez ele se lembre de que seu pai está internado ali e resolva fazer-lhe uma visita. Alguns dos meus filmes nascem assim, de pequenos episódios que vão se juntando. O importante é ter as idéias com um mínimo de antecipação, para que os técnicos possam trabalhar: marceneiros, figurinistas... 
 
BT – Ao longo de sua carreira, seus enredos foram se tornando mais episódicos, menos articulados, e talvez menos previsíveis. 
 
FF – Sim. Penso que fui mais literário na primeira metade de minha carreira, preocupava-me muito com a história, a verossimilhança dos pequenos acontecimentos, a verdade emocional dos personagens... Isto vinha na frente. Depois creio que fui me afastando da literatura e me aproximando da pintura, ou das histórias em quadrinhos, e descobri o prazer de contar muitos episódios curtos, sucessivos, mas sem a obrigação de obedecer a um arco mais amplo. Não faço isto por deliberação, é espontâneo. São duas maneiras legítimas de narrar. Existem outras. 



(Casanova de Fellini
 

BT – O que mantém fiel seu público pode ser também o seu gosto pelo barroco, o extravagante... Pelos tipos humanos bizarros, as situações caricaturais, os fenômenos inexplicáveis... 
 
FF – Sim, isto acabou se tornando o principal clichê a meu respeito, para muitos produtores, críticos, etc.  Aparece um anão soprando bolhas de sabão, e eles gritam: “Felliniano!...”  Aparece uma mulher gorda na janela, escovando os dentes, com os seios enormes de fora, e gritam: “Felliniano!...”  Não nego que tudo isto me fascinava quando garoto. Sou fiel a este fascínio, ainda filmo para recapturar o maravilhamento dos meus dez anos diante de coisas assim. 
 
BT – Uma imagem recorrente em seus filmes é a imagem de pessoas caminhando por ruas desertas, de madrugada... Faz um certo contraste com a exuberância geral de suas imagens. 
 
FF – E talvez seja uma imagem que me é muito cara, que me lembra inclusive tempos da juventude, quando não tinha dinheiro, não tinha trabalho, andava de madrugada meio sem destino, outras vezes saindo de um trabalho que entrava pela noite... O que quer? O mundo é feito disto, multidões ruidosas e coloridas durante o dia, e durante a madrugada pessoas sozinhas caminhando devagar, sem pressa de chegar a lugar algum... Quando vejo uma rua com todas as portas e janelas fechadas, à luz dos lampiões, ela me parece uma mente adormecida, e tudo que acontece ali é como um sonho... A madrugada é o espaço do sonho, porque todos dormem. A rua deserta é uma rua que só existe em nós, e para nós. Por isso também me seduz a névoa, a neblina de Rimini, que envolvia as casas, as torres, os edifícios... tudo ficava suspenso no interior dessa nuvem branca, que a luz dos postes elétricos mal conseguia atravessar. 



(Mulheres e Luzes)
 

BT – Eu percebo no seu cinema, como no de Luís Buñuel (que em outros aspectos não se assemelha ao seu) um interesse humano pelos tipos que parecem fisicamente ou moralmente repulsivos, mas que, examinados de perto, não o são tanto assim. 
 
FF – Sim, embora o cinema de Don Luís seja, de certo modo, mais ácido e menos sentimental do que o meu; tenho consciência disso. O que nos aproxima talvez seja o horror ao moralismo, à hipocrisia. O moralismo, no fundo, não passa de uma tentativa de humilhar alguém para afirmar a nossa própria superioridade. Talvez isso tenha origem no fato de que tanto eu quanto Buñuel somos latinos, emotivos, passamos parte da juventude sob o peso de regimes totalitários, e da lavagem cerebral promovida pela Igreja. Com isto, adquiri um grande desprezo pelo moralismo, porque os que se dizem moralistas não se preocupam com nenhum valor moral elevado, e sim com a possibilidade de acumular poder para si mesmos quando humilham e condenam os demais. Só pensam em si, como o homem que só dá uma esmola se houver alguém olhando. E no fundo têm todos essa visão tribunalesca do mundo, uma corte onde eles investigam, interrogam, julgam, condenam ou perdoam... Não é assim que vejo a vida. 
 
BT – Os moralistas sempre o perseguiram, não é verdade? Alguns dos seus filmes foram considerados indecentes, a Igreja se manifestou... 
 
FF - Meus filmes são castos. Raramente mostro uma cópula, ou nudez exagerada. Há exceções motivadas pelo tema, como em Casanova, mas o sexo ali é coreográfico, performático, não se destina a excitar alguém. Nos meus filmes há sexo, mas como um aspecto da vida. É isto que os moralistas não me perdoam. O escândalo da La Dolce Vita não tinha a ver com nudez ou intercursos sexuais. Minhas orgias são desajeitadas, amadorísticas... A sensualidade, por outro lado, aparece na cena da Fontana di Trevi, uma cena de pessoas vestidas dos pés à cabeça, e que mal se tocam. É a água que fornece o erotismo. Os moralistas entenderam (sabe-se lá como) o quanto a água é erótica. 



(A Doce Vida)


BT – Mesmo os seus personagens negativos são mostrados com certa ressalva – o ladrão, o brutamontes, o sedutor, o vigarista... Isto aparece em Mulheres e Luzes, Abismo de um Sonho, A Trapaça, Cabíria, La Strada... 
 
FF – Quero mostrar quem eles são, mas todos nós estamos mais próximos uns dos outros do que imaginamos. Existem pessoas essencialmente malignas, no mundo, mas são raras nos meus filmes. O que mostro, geralmente, são pessoas movidas por impulsos contraditórios, ou por desejos mais fortes que seu bom senso, ou pelo medo que nos amesquinha, ou por situações em que se metem e não conseguem voltar atrás... Roubam, enganam, trapaceiam, porque é o que lhes parece mais fácil no momento, o atalho mais curto para obter o que pretendem, e são um pouco como crianças, sempre acreditam que ninguém está vendo, e que no fim escaparão impunes. 
 
BT – Em geral são castigados. Lembro do sedutor Franco em Os Boas Vidas, quando é desmascarado ao tentar seduzir a esposa do dono da loja. Ou as derrotas sucessivas do personagem de Broderick Crawford em A Trapaça
 
FF – São castigos que na verdade não procuram ter efeito moral, “vejam como o vício será punido!”... Não, é apenas para mostrar de que modo eles se metem nas enrascadas, porque têm uma percepção defeituosa da vida, são egoístas como crianças mimadas, nunca acham que podem estar errados, e geralmente estão. E qualquer um de nós passa de vez em quando por vexames desse tipo. Com menor gravidade, espero. Eu próprio já meti os pés pelas mãos tantas vezes! Não, eu não seria capaz de roubar a bolsa de Cabíria, com todas as suas economias dentro, mas sou capaz de imaginar o que se passa no espírito sombrio daquele indivíduo. Daí aquela longa cena, antes do roubo final... Estão à beira do barranco, ao entardecer... ele já sabe o que fará... está em plena tragédia... por isso nada diz, não faz um gesto, enquanto ela ainda está vivendo a própria fantasia. 



(Noites de Cabiria) 
 

BT – Sim, e nesta cena estamos todos no ponto de vista do ladrão. A única que ainda acredita na fantasia de Cabíria é ela mesma. São personagens patéticos, como é patético o adúltero compulsivo de Mulheres e Luzes. 
 
FF – O adultério tem a ver com a vaidade do homem que, com ingenuidade semelhante, nunca acredita que pode estar errado. Ele sempre acredita que a mulher jovem com quem conversa está tremendo de desejo por ele mas é obrigada a manter uma aparência virtuosa. Não é diferente da mocinha ingênua de Abismo de um Sonho, que larga o marido numa situação bem constrangedora, para perseguir o galã das fotonovelas; tanto ela quanto o sedutor vivem uma fantasia tão intensa que não conseguem perceber a realidade. 
 
BT – O senhor sempre se interessa, num certo sentido, pelas emoções fortes, sem deixar de lado as sutilezas.
 
FF – Se as emoções fortes são verdadeiras, as sutilezas irão aparecer, principalmente no cinema, porque estamos no domínio da câmera, da iluminação e do ator, e nenhum diretor tem domínio total sobre todos estes elementos, ao mesmo tempo.  E nenhum diretor necessita desse domínio. Temos que buscar a verdade emocional da história antes de tudo, e o resto virá por si só. E não me refiro simplesmente ao lado mais externo das emoções, o riso, o choro, a raiva, a paixão... Mas às emoções profundas, que nos movem, que nos impelem a agir deste ou daquele modo... Isto é um trabalho fascinante para quem escreve, quem dirige, quem interpreta... No momento de uma cena forte, de um close-up, há mil sutilezas que é preciso permitir que brotem, sem que o roteirista ou o diretor as tenham que prever, necessariamente. O momento principal do cinema é quando o diretor diz: “Ação!...  Tudo que acontece antes é mera preparação, e o que acontece depois é acabamento. 
 
Dito isto, respondo: sim, gosto de situações exageradas, até meio absurdas, gosto de emoções grandes demais. Não sou um retratista, sou um caricaturista.   



BT – Gosta mais das máscaras do que dos rostos... 
 
FF – Gosto de rostos que parecem máscaras, porque sinto neles uma verdade maior do que naqueles rostos pálidos, plácidos, organizados, que se parecem todos uns aos outros... Estes são os rostos da nossa era, a era das máquinas, em que tudo parece feito de acordo com a mesma fôrma. Gosto do que é único, e o que é único geralmente nos parece extravagante ou bizarro. Em todo caso, gosto de compor com os rostos. Nos meus primeiros filmes tive que aceitar às vezes os atores que as circunstâncias me impunham, mas meu desejo era sempre compor um personagem: um rosto, uma roupa, um ambiente, uma voz... Muitas vezes o ator tinha o rosto que eu queria mas a voz não tinha nada a ver, eu era forçado a encontrar alguém que tivesse a voz adequada e fazer a dublagem. 
 
BT – Lembro-me de ter lido, quando adolescente, que nos seus filmes o senhor dizia aos atores que conversassem qualquer coisa durante a filmagem, ou dissessem números, porque o diálogo só iria ser escrito depois. 
 
FF – Mas sim! É uma técnica como qualquer outra. Em algumas cenas só me veio à mente o que os personagens estariam falando quando vi a cena na moviola, sem som, e pela expressão do rosto deles uma certa troca de palavras me veio à mente. Não funciona em toda cena, é claro, pois existem aquelas onde os atores precisam estar dizendo coisas específicas, ou a história não faria sentido. Mas em outras... 
 
BT – Já vi queixas de que essa técnica da pós-sincronização prejudica as cenas, porque as palavras não coincidem com os lábios. 
 
FF – Tenho impaciência com quem fica tentando provar que o que passa na tela é uma mentira. Mas claro que é uma mentira! A arte é uma mentira, uma invenção, um sonho...  Fiquem eles com a verdade deles, podem ficar de pé na sala e gritar que as ruas são feitas de papelão, e que as balas são de festim. Há gente que vai para o cinema com um cronômetro ou um binóculo para encontrar o que eles chamam de “erros” – para ver se os movimentos das mãos de um instrumentista correspondem aos sons que se ouve na banda sonora. 
 
Eu não filmo para gente assim. Filmo para gente capaz de olhar um ator e não se perguntar de quem é aquela voz. É uma composição, é como usar uma tela transparente, com projeção ao fundo mostrando o Monte Olimpo ou o fundo do mar. É claro que é um truque! 


(Oito e Meio) 


BT -- O senhor tem este fascínio pelo extraordinário, pelo fora do comum, e sempre me perguntei por que motivo nunca dirigiu um filme de ficção científica, porque sei que gostava de ler esse gênero. 
 
FF – Mas, quem não gosta? Amadureci como artista escrevendo roteiros de quadrinhos à imitação de Alex Raymond e de Lee Falk, quando o governo fascista proibiu a importação das tirinhas. Eu escrevia, e um colega imitava o traços daqueles artistas, de quem ainda espero receber o perdão. Sim, escrevi Flash Gordon, escrevi Mandrake, mas colocar isto numa tela de cinema envolve outras questões. Tudo nasce da minha admiração pelo insólito, o grandioso, o despropositado... Sou um homem de Rimini, e Nova York para mim é uma metrópole interplanetária, uma construção cenográfica suspensa no tempo e no espaço, como aquelas cidades envoltas em cúpulas transparentes que viajavam pelo Sistema Solar. Sempre fui fascinado pelo mundo impossível criado pelos americanos. Ali, já assisti, numa tela gigantesca, uma projeção de “Satyricon” num daqueles “Square Gardens”, depois de um concerto de rock, com dez mil jovens fumando haxixe e fazendo o amor, e acho que nesse momento a Roma Antiga e a Roma Futurista dialogaram e se fundiram uma à outra, com uma pequena ajuda de minha parte. 
 
BT – Tem prazer ao assistir seus próprios filmes, com um olho na platéia, para ver como ela reage? 
 
FF – Às vezes, mas em geral tenho um certo incômodo, como se estivesse mostrando algo muito íntimo para uma multidão de desconhecidos, que facilmente podem me achar ridículo ou patético. O verdadeiro prazer está no ato de filmar. O grande momento do cinema é o dia de filmagem, à frente desse exército quixotesco que é toda equipe de cinema, com sua confusão, suas brigas, sua cumplicidade, seus mexericos, seus erros, seu perfeccionismo... Seja no estúdio ou na rua, um dia de filmagem é sempre um mergulho num mar desconhecido, para trazer de volta alguma coisa que nem sempre é o que buscávamos. Descobri isto através de Rossellini, nos meus primeiros trabalhos de cinema, pórque até então eu era um homem de gabinete, da escrita, do desenho, da produção de revistas ou de programas. E ao acompanhar as primeiras filmagens, principalmente em Paisà, percebi que o momento da filmagem era como um happening, como uma obra de arte efêmera que valia por si só, embora tivesse como propósito a realização de um produto que iria ser exibido meses depois. 



(Fellini ator) 

 
BT – O senhor chegou a trabalhar como ator num filme de Rossellini, um pequeno papel sem falas...
 
FF – E quanto menos se falar sobre isto, melhor.
 
BT – Mesmo assim, continuou aparecendo, mesmo que no papel de si próprio: Os Palhaços, Entrevista, Roma...
 
FF – Sim, mas é o que lhe falei, para mim não existe fronteira entre o que aparece na tela e o que está por trás da câmera. A fronteira existe apenas como uma abstração, uma convenção, tal como as fronteiras da vida real – se excetuarmos esses horríveis muros de pedra ou de arame farpado separando os países. A câmera pode apontar apenas numa direção, mas o cinema existe em 360 graus, é um círculo em que tudo se confunde. 



(Entrevista 


BT – Ou um circo...
 
FF – A palavra vem daí, círculo, circo, um espaço que inclui artistas, personagens e público: os que fazem, os que aparecem na tela e os que assistem. São espaços diferenciados mas contínuos, e vivem em função uns dos outros. Quando apareço filmando nos meus próprios filmes não estou posando de vanguardista, nem “quebrando a quarta parede”, estou sendo até meio saudosista, lembrando de um passado longínquo em que a arte era feita nas ruas, nas praças, no meio do povo, sem essa distinção artificial imposta pela indústria e pelo comércio artístico. Não sou contra o comércio, inclusive porque vivo dele, mas não podemos manter viva uma parte desse espírito? 
 
BT – Eu tenho um apreço especial por Entrevista, inclusive aquele final em que acontece o ataque dos índios e logo em seguida um temporal, e todos saem correndo, para se proteger da chuva... 
 
FF – Filmar em equipe exige uma capacidade de sonhar coletivamente. Sempre me surpreendo quando digo, por exemplo, “preciso de um balão colorido que se eleva no ar levando consigo dez pessoas”, e dias depois tenho nas mãos não só o balão como as pessoas, dispostas a subir nele somente porque essa idéia maluca me ocorreu! É diferente da relação que temos com certos financiadores incapazes de entender a imaginação. Querem explicação para tudo, exigem cortes no orçamento... A cena tem que mostrar uma mulher que chega ao consultório médico, e quando entra vê dois médicos gêmeos, vestidos iguais, por trás da mesa. O produtor lê isso, faz uma marca na página e pergunta: “Mas, por que dois gêmeos?... Não bastaria um?...”  É com esse tipo de questão que a gente tem que lidar o tempo inteiro, é de enlouquecer. 



(Oito e Meio


A assistente entrou já faz algum tempo, espera junto à porta, muito compenetrada, em seus óculos, seu cabelinho curto, sua minissaia. Séria como o mármore, que raramente sorri; tem idade para ser neta de Federico, e olha para ele com um olhar de mãe. Ele percebe, faz-lhe um sinal de positivo, ergue-se, eu também me levanto, abraçamo-nos, ele me agradece: “Grazie, trouxe-me belas lembranças, não deixe de ver o filme!..”  O filme é A Viagem de Mastorna, um percurso calvinesco de um homem que perde o trem e se perde na estação, no mundo, e se maravilha com o mundo, e não quer mais voltar para o que havia antes. 




 (A série "Entrevistas Transcendentais" é formada por textos que são imaginários mas pretendem ser fiéis ao espírito dos supostos entrevistados. Eu não entrevistei estas pessoas.)

Agatha Christie:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/05/4583-entrevistas-transcendentais-agatha.html

Philip K. Dick:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/08/4608-entrevistas-transcendentais-philip.html 

Julio Cortázar:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/12/4651-entrevistas-transcendentais-julio.html 

Augusto dos Anjos:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/01/4660-entrevistas-transcendentais.html 

Alfred Hitchcock:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4894-entrevistas-transcendentais-alfred.html 

Edgar Allan Poe:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/06/4957-entrevistas-transcendentais-edgar.html 


 
 
 
 




quinta-feira, 18 de julho de 2024

5083) As Bibliotecas Fantásticas (18.7.2024)



 
Alguém já descreveu a tendência pós-moderna da literatura como um Labirinto de Espelhos, para se referir à frondosa ramagem fractal das histórias que têm como tema outras histórias, os livros a respeito de livros, os escritores que têm escritores como personagens, e assim por diante. 
 
Nesse contexto de verdadeira bibliomania, ao qual não me considero imune, estão as Bibliotecas como o símbolo maior desse universo feito apenas de coisas que deram certo. Por pior que seja um livro, o simples fato de ter sido publicado e depois conservado numa biblioteca já lhe dá uma vantagem incalculável sobre todas as obras geniais que nunca chegaram ao papel. 
 
E assim como os homens imaginam livros, podem imaginar bibliotecas, como faz José Roberto Torero nesse precioso livrinho de cabeceira, As Bibliotecas Fantásticas (São Paulo: Padaria de Textos, 2023). 
 
É um livro de invenções – tal como as Cidades Invisíveis (1972) de Ítalo Calvino, que em vez de imaginar bibliotecas imagina cidades, cidades improváveis, cidades impossíveis, cidades cuja realidade é apenas a realidade conceitual e estética de um desenho, de uma pintura. 



(ilustração: Eloar Guazzelli)


Desenhos estão no livro de Torero (ilustrado por Eloar Guazelli), reforçando o caráter lúdico e imaginativo dessas coleções de livros, cada uma delas obedecendo a uma diferente contrainte, uma diferente restrição, uma característica que a define e limita, mas limitando-a dá-lhe a possibilidade de ser infinita dentro do âmbito do seu conceito. 
 
Como por exemplo a biblioteca de Mjeiak, a biblioteca soterrada sob a areia de um deserto; a busca de um livro depende totalmente da memória do bibliotecário, que aconselha cavar o chão “à esquerda da terceira duna”, ou algo parecido. 
 
Ou a biblioteca de Tuzla, uma cidade afligida pela superpopulação e pela carência de empregos, e que resolveu colocar pessoas servindo de prateleiras para os livros. Quando alguém percorre a biblioteca, as “estantes” interferem o tempo todo, fazendo propaganda dos livros que suportam, para que sejam levados para leitura. 
 
Ou a biblioteca de Komok, onde os livros estragados não são simplesmente jogados fora; as páginas em bom estado são arrancadas e coladas no interior de outros livros. 
 
Assim, se você está lendo o Gênesis, pode se deparar com uma página sobre o Big Bang. Se estiver folheando um adocicado romance, pode tropeçar numa página do Kama Sutra. Se está lendo um tratado de física nuclear, uma poesia sobre Chernobyl; no meio de um ensaio sobre política, a biografia de um torturador; e assim vai. (p. 43) 

 




(ilustração: Eloar Guazzelli) 

 
O perfil de cada biblioteca tem muitas vezes algo de metáfora da escrita, da criação literária, ou do próprio ato da leitura. Pode ser também uma alusão ao mundo exterior à escrita, como é o caso da Biblioteca Tríplice de Jerusalém, dividida em três setores independentes – um apenas com Bíblias, outro com Torás, outro com Corões. A convivência, num só edifício, parecia a princípio acenar com a possibilidade de integração pacífica. Mas... 
 
Certa vez, um desses bibliotecários sugeriu que houvesse uma única entrada e se misturassem as três coleções. No dia seguinte foi encontrado com três adagas nas costas. (p. 89) 
 
O uso da biblioteca como alegoria do mundo, como um microcosmo que reflete o mundo, foi proposta de forma definitiva por Jorge Luís Borges, que em “A Biblioteca de Babel” (1941) a usou numa fábula perversa sobre linguagem, probabilidades, estatística, ordem e caos. A idéia de uma biblioteca contendo todas as combinações possíveis de todas as letras do alfabeto assusta pela sua enormidade, mas assusta ainda mais pelas suas “léguas e léguas de cacofonias insensatas”. Como se nos dissesse que qualquer arremedo de ordem e de significado que ocorre no Universo não surge por desígnio divino nem por imposição das leis naturais, e sim por mero acaso, mera fatalidade estatística. 
 
Outra biblioteca que rapidamente adquiriu o status de símbolo em tempos recentes foi a do mosteiro cristão de O Nome da Rosa (Umberto Eco, 1980), um gigantesco repositório das ciências, da filosofia e de outras disciplinas, tesouro ciumentamente preservado pela Igreja e que nos episódios finais é consumido pelo fogo. 
 
Mesmo ambientada na Idade Média, a narrativa de Umberto Eco é um comentário ácido sobre a cultura universitária contemporânea. Em seu Viagens na Irrealidade Cotidiana (Ed. Record, 1984, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade), ele faz uma divertida comparação entre o isolamento físico e mental dos mosteiros da Idade Média e os nossos modernos campus universitários, ambos repletos de sabedoria e ambos inacessíveis a uma população despreparada e desinformada. 
 
O livro de Torero tem a vantagem de, em vez de propor uma gigantesca metáfora, propõe dezenas de metáforas pequenas, localizadas, algumas totalmente absurdas ou bizarras, outras que às vezes acabam soando, mesmo em sua possibilidade fantástica, como uma boa idéia. 



(ilustração: Eloar Guazzelli)


É o caso da leitura interrompida que ele indiretamente aconselha através da Pequena Biblioteca do Farol de Tourlitis, onde a luz giratória da torre é a única disponível para a leitura do visitante. 
 
Assim, ele lê um tanto e logo vem a escuridão, quando ele aproveita para pensar no que leu, relembrar alguma expressão mais saborosa, imaginar as intenções do autor e repetir as frases dos personagens. Na volta da luz, ele lê mais um pouco e logo volta para o breu, quando não lê, mas, de certa forma, relê.  (p. 135)
 
Pergaminhos, papiros, cascas de árvores... a substância física das bibliotecas geralmente é a mesma, mas ele também pervê inovações capazes de abrir terrenos insuspeitados da leitura. Como na Biblioteca do Meio do Caminho, especializada em livros que ainda estão sendo escritos, onde  
 
...por meio de uma avançada tecnologia tipográfica (ou, talvez, de uma magia antiquíssima) os leitores podem ver as letras  surgindo nas folhas assim que os autores as escrevem. E também podem vê-las sendo apagadas, riscadas, corrigidas.  (p. 78) 

No prólogo ao livro, diz Alberto Manguel:
 
Portanto, não deve ser uma surpresa que uma biblioteca imaginária faça o papel de espelho em constante mutação, refletindo o que é vivido por nós como fato ou sonho, como pensamento ou como realização material. As palavras nos permitem nomear o que é tangível e o que não é, a girafa e a mantícora, e dar vida ao que caprichosamente sonhamos em nossa imaginação. (p. 6-7) 
 
Toda biblioteca é fantástica, quando mais não seja pela sua heterogeneidade, seu acúmulo de pensamentos que se desconhecem uns aos outros, sua preservação de idéias pelas quais ninguém pergunta ou responde, pela latência de grandes verdades à espera de seu redescobrimento, pela multiplicação de versões de tempos que já se foram, pela garantia de que faz parte da essência humana esse diálogo permanente com o passado. 
 
E ergamos um brinde às bibliotecas de empréstimo, às bibliotecas ambulantes, às bibliotecas de circulação. Elas nos ajudam a pular as fichas dos catálogos ou os ficheiros eletrônicos, nos deixam manusear os livros propriamente ditos, devorá-los com os olhos, estabelecer com eles aquela primeira relação de paixão e curiosidade sem a qual a leitura vale muito pouco, e depois levá-los para passar uns dias conosco. 
 
Porque (é o que nos ensina o triste exemplo da Biblioteca Inexpugnável de Ulan-Kalai),
 
...se os livros não são emprestáveis, a biblioteca é imprestável. (p. 150)
 
 






segunda-feira, 15 de julho de 2024

5082) O curso "Ficções do Espaço e do Tempo" (15.7.2024)



 
Uma das minhas atividades profissionais no momento é ministrar cursos de literatura, online, geralmente através do Instituto Estação das Letras, do Rio de Janeiro. A vantagem do curso online (além da comodidade de estar todo mundo em sua própria casa) é que atinge alunos do Brasil inteiro, e até de fora, já que não é presencial. 
 
O próximo curso começa amanhã, 16 de julho, e vai constar de quatro aulas, todas as terças-feiras (de 16 de julho a 6 de agosto), das 19 às 21:00.  Maiores informações, sobre preços, inscrições, etc., no telefone do I.E.L. (21) 99127-4088
 
Vale sempre lembrar que, no curso online, mesmo que o aluno não possa assistir à aula em tempo real ele tem acesso a uma gravação. 
 
O que são as ficções do espaço e do tempo? 
 
São, em primeiro lugar, as histórias que abordam espaços e tempos mais amplos (e mais especulativos) do que os que encontramos na vida real, e isto as conduz geralmente na direção do fantástico. 



Um aspecto interessante de tais histórias é que uma parte enorme delas consiste em “histórias de aventuras”, histórias que envolvem aquilo que geralmente chamamos de “a jornada do herói”. Tenho observado por aí que nos cursos de roteiro, de escrita criativa, etc., a “Jornada do Herói” é proposta como modelo para qualquer narrativa. É uma fórmula – que depende, em grande parte, das descobertas e teorias de Joseph Campbell – com um protagonista central envolvido numa demanda em grande escala, uma missão que irá exigir dele coragem, determinação, engenhosidade, etc. para poder alcançar seu objetivo. 
 
A Jornada do Herói é uma aventura, e este aspecto independe do gênero literário da história. Pode ser uma aventura de ficção científica, uma aventura de fantasia, uma aventura na vida corporativa, uma aventura de cowboys e índios, uma aventura de piratas, uma aventura de espionagem... Uma aventura é sempre uma jornada num espaço desconhecido e num tempo desconhecido – “tempo” entendido aí como uma situação cheia de imprevistos, em que é impossível ter certeza sobre o futuro. Aquelas situações na vida em que tudo pode acontecer, para o melhor ou para o pior. 
 
Grande parte da literatura popular se baseia nesse tipo de missão e nesse tipo de incerteza. 
 
Todo protagonista de uma narrativa é um herói? De jeito nenhum. Acho que o conceito de “herói” está se banalizando demais hoje em dia, principalmente devido ao excesso de uso no cinema, nas séries de TV, nas histórias em quadrinhos... Gosto de histórias de heróis, como todo mundo; mas o seu uso repetitivo e pouco inovador faz com que elas se tornem apenas um canal para fantasias narcisistas em que o “Eu” do leitor compensa suas frustrações e suas impotências na vida diária. 
 
Como já disse um crítico, Superman jamais faria sucesso se todo leitor não fosse um simples Clark Kent. 




Um outro aspecto dessas ficções aventurescas é que elas criaram ao longo dos séculos dois tipos de protagonistas a quem eu chamo os “Ícaros” e os “Dédalos”, em alusão aos personagens da mitologia grega. 
 
O que é um “Ícaro”? É alguém que se lança numa aventura sem ter medo do que lhe possa acontecer, e muitas vezes se dá mal por subestimar o perigo da morte, mas mesmo assim tem uma morte gloriosa. Ícaro pregou com cera suas asas artificiais, e ao voar aproximou-se do sol, de forma temerária. O sol derreteu a cera e ele morreu caindo no abismo. O aventureiro sempre sabe que corre esse risco, mas é da sua natureza encarar o perigo pela sedução da aventura. 



(Albrecht Durer, "Icarus and Dedalus") 
 

Já o “Dédalo” se inspira no seu pai, o construtor do labirinto de Creta. E esse tipo de personagem sugere outro viés da literatura: o indivíduo que mergulha em aventuras mentais, em vez de aventuras físicas. Um dédalo é alguém capaz de construir um labirinto, ou de decifrar um labirinto construído por outra pessoa. Um detetive, por exemplo, é um dédalo: alguém que penetra no labirinto misterioso de crimes e de pistas que são incompreensíveis para todos, mas é capaz de interpretar corretamente o que vê, e de encontrar o caminho no labirinto, e enfrentar o monstro (=o criminoso). 
 
Na narrativa policial, James Bond é um ícaro, e Sherlock Holmes é um dédalo. 



Esses arquétipos vêm de longa data, desde a antiguidade. Hércules era um ícaro, Édipo era um dédalo (quando decifrou o enigma da Esfinge). 
 
Data também da antiguidade um outro aspecto dessas “ficções do espaço e do tempo”: a antevisão de sociedades perfeitas, sociedades organizadas de acordo com algum princípio básico de ordem, progresso, limpeza, otimização do trabalho e das oportunidades, etc.  Em outra palavra: uma Utopia. 
 
O mais interessante é que toda Utopia é também uma Distopia. Toda sociedade perfeita é também uma sociedade asfixiante e autoritária para qualquer um que não se enquadre nas suas leis e nas suas obrigações. Utopia e Distopia, que são geralmente usadas como antônimos, em última análise são sinônimos, porque é impossível a existência de uma sociedade perfeita para todos. A não ser que todos os habitantes pensem igual – e pode haver algo mais distópico do que isto?! 
 
Com isto em mente, vamos dar uma passada nos argumentos de algumas utopias/distopias de autores brasileiros como Rodolfo Teófilo, Godofredo Barnsley, Emilia Freitas, Gulherme de Figueiredo, Manotti del Picchia, etc.  



 
Essas sociedades imaginárias situam-se em espaços e tempos muito afastados dos nossos, e servem como espelhos deformados não apenas da sociedade em que vivemos concretamente, mas também daquilo que consideramos uma organização ideal da vida coletiva. O que era utopia em 1900 não o é hoje, e o que pensamos ser utopia hoje não pensaríamos no ano 2124. 
 
Existe um outro tipo de espaço e tempo, contudo, e aí vamos numa direção totalmente diversa. O grande J. G. Ballard (autor de Crash, O Império do Sol, etc.) foi um dos autores britânicos que a partir da década de 1960 começaram a pregar, para a ficção científica, a necessidade de deixar um pouco de lado o “espaço exterior” (a Luz, Marte, o Sistema Solar, a Via Láctea...) e concentrar-se no “espaço interior” (“Inner space”). 



Dizia Ballard que o território especulativo ideal para a literatura de hoje (e não só a ficção científica) era a mente humana, individual e coletiva. A nossa relação com o inconsciente, com os instintos animais que nos controlam mais do que admitimos. A obra de Ballard é uma boa ilustração desse princípio – o melhor exemplo é Crash (filmado por David Cronenberg), abordando um grupo de pessoas que se excitam sexualmente ao presenciar ou imaginar colisões de automóveis e suas consequências nos corpos das pessoas. 




Outro aspecto do “espaço interior” que a literatura (e não só a FC, insisto!) tem abordado de forma criativa são os estímulos artificiais da mente, seja através de drogas, seja através conexões eletrônicas, etc.  A chamada literatura cyberpunk explodiu por volta de 1984, ano em que William Gibson publicou o Neuromancer; dali para cá, entraram em nosso vocabulário palavras como ciberespaço, realidade virtual, realidade aumentada (“augmented reality”), Inteligência Artificial. 
 
Também podem ser examinadas por este ângulo as obras que mostram como o espaço interior, o nosso espaço mental/perceptivo, é construído de fora para dentro e de dentro para fora com o uso das tecnologias tradicionais de comunicação: a arquitetura, a propaganda, a fotografia, a televisão, o design, etc.  



 
Autores de FC propuseram anos atrás o termo Media Landscape (“paisagem da mídia”) para descrever esse meio onde circulamos: eu traduzo esse termo em português como Mìdia Ambiente, para distingui-lo do “meio ambiente” natural. A Mídia Ambiente é esse conjunto de estímulos produzidos pela Cultura humana (e não pela Natureza), capaz de nos mergulhar numa paisagem que pode se tornar hostil, acolhedora, insidiosa, autoritária, infantilizadora, sedutora. Uma paisagem artificial, exaustivamente discutida e planejada em gabinetes, como estratégia de controle social permanente. 
 
Todos estes aspectos têm sido explorados na literatura, e não apenas na ficção científica. Basta dar uma passada-de-vista na obra de Thomas Pynchon, Italo Calvino, David Foster Wallace, Haruki Murakami, Don DeLillo, Michael Chabon, Kazuo Ishiguro, David Mitchell... Escritores que compartilham essa consciência do inevitável convívio entre Mente, Corpo e Máquina. 



Poucos escritores “mainstream” têm explorado o espaço e o tempo com a insistência e a profundidade de Jorge Luís Borges. “Funes, o Memorioso”, ao contar a história de um rapaz que tem memória total, mostra como a percepção que a mente humana tem do tempo depende de sua capacidade de lembrar e esquecer: nele, a recordação total do passado requer a eliminação do presente, por ocupar totalmente os minutos (ou horas) que dura a evocação. Em “O Milagre Secreto”, um homem consegue suspender a passagem do tempo (enquanto sua mente não pára, continua pensando) para concluir uma obra literária. Em “Utopia de um Homem Cansado” o protagonista viaja mentalmente para o futuro e de lá faz um balanço satírico do nosso tempo atual. 


 
A literatura de imaginação surgiu com as lendas e os mitos da Antiguidade, as narrativas cosmogônicas dos indígenas do mundo inteiro, as mil e uma formas da fantasia desenvolvidas na Idade Média e no Renascimento europeu, chegando modernamente até o “Scientific Romance” da Europa no século 19 e a pulp fiction norte-americana que floresceu na primeira metade do século 20. 
 
Meio “escanteada” pelos críticos, essa literatura-imaginativa, nas formas populares (folhetins de jornal, revistas, livros de bolso) era lida e admirada por esses autores que enumerei algumas linhas mais acima, autores que souberam assimilar sua ousadia imaginativa e dar-lhe um tratamento fabulatório à altura. 
 
São as Ficções do Espaço e do Tempo, e são um dos núcleos essenciais da literatura deste século que mal começou.