segunda-feira, 20 de outubro de 2008

0611) É Carnaval! (4.3.2005)




(BT e Tide)

Lá vem de novo essa história de carnaval fora de época, micarande, micaroa, carnatal, recifolia. Não vejo graça nessas festas, e me desculpem os amigos que não sabem passar sem elas. Para certas coisas na vida, sou um conservador incorrigível. Não por simples saudade do passado, mas porque o que era festa amadorística virou indústria, e em alguns casos virou gangsterismo econômico, que ao que parece é o destino final de toda indústria na casa-de-mãe-joana que é este país. Criou-se um conceito de Carnaval onde você se diverte, mas paga caro por isto.

Carnaval pra mim é bagunça, é surrealismo do cotidiano, é happening dadaísta. 

Respeito mas dispenso aquele show-da-churrascaria-Plataforma que virou o desfile das Escolas de Samba. Não gosto de festinha fechada a céu aberto, com cachê, crachá e cordão de isolamento. Carnaval de trio é o velho carnaval dos Clubes aristocráticos invadindo a coitada da rua, já que os clubes vivem às moscas. O pessoal endinheirado fecha a rua e sai brincando, e se pobre chegar perto tem os seguranças para afugentar. 

Isso não é carnaval fora de época, é uma festa fora de si.

Quando meus pais já estavam velhos, com os filhos todos criados e morando fora, o carnaval deles se resumia a uma tocaia solerte. Meu pai ficava lendo no terraço, minha mãe na cozinha administrando as coisas. De vez em quando parava um carro e um amigo deles subia a escada até o terraço, para um dedo de prosa. Minha mãe vinha, havia aquela troca de cumprimentos, ficavam por ali, jogando conversa fora. 

Meu pai perguntava: “E tu, Fulano, tás brincando?” Quando o incauto respondia que sim, sua sorte estava selada. Meu pai fazia um sinal imperceptível, minha mãe pedia licença e ia lá dentro. O papo prosseguia, sobre assuntos variados, até que Mãe vinha lá da cozinha, às vezes ajudada pela empregada, trazendo um enorme caldeirão-de-fazer-buchada cheio dágua, que era despejado sobre a cabeça do visitante. 

O sujeito quase enfartava do susto, ficava tirando água dos olhos, apalpando o cigarro, a carteira e as roupas empapadas, enquanto Dona Cleuza e Seu Nilo se abraçavam com ele, pulando, às gargalhadas: “É Carnaval! É Carnaval!”

Carnaval é bagunça. Um dos melhores carnavais que já brinquei foi o de Olinda entre 1978-1983, quando a cidade ainda não tinha virado um imenso mictório com orquestra. Era o tempo em que a gente fazia um bloco com dez violões e duzentas latas vazias, e brincava três dias sem parar. 

O cara podia se fantasiar de índio peruano e passar o carnaval inteiro batendo num tambor inaudível pendurado ao pescoço. 

Ou então se vestir de mulher, sair pra tomar cachaça, e dois dias depois perceber que ainda estava com a mesma roupa. 

Ou então pegar um coco-verde, começar a jogar bola com outros bêbos, e vir driblando a multidão da Rua do Amparo até a Praça do Jacaré, ida e volta, a noite toda, sem que ninguém me tomasse a bola. Não me perguntem como, nem por quê. É Carnaval.




0610) O Rock, a Direita e a Esquerda (3.3.2005)




Para muita gente estes termos designam dois partidos políticos, mas na verdade eles expressam algo que vai muito além da política. São visões do mundo que impregnam tudo, da Estética à Religião. 

Tentando resumi-las da maneira mais sintética possível, eu diria que a Direita acredita que as Elites devem governar as Massas, e a Esquerda crê que as Massas devem governar as Elites. 

Claro que, numa arena inflamada como a da política, termos como “elite” e “massa” acabam ganhando conotações pejorativas ou auto-glorificatórias.

Uma das classificações mais divertidas do pensamento da Direita e da Esquerda é a de Quaderna, o protagonista do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, comentando as brigas ideológicas de seus mestres Clemente e Samuel:

“De modo semelhante, tomavam, furiosamente, partido em tudo. A Sociologia era da Esquerda, e a Literatura fortemente suspeita de direitismo. O “riso satírico e a realidade” eram da Esquerda, a “seriedade monolítica e o sonho”, da Direita. A Prosa era da Esquerda e a Poesia, da Direita; mas, mesmo ainda dentro do campo da Poesia, tomavam partido, pois a lírica era considerada “pessoal e subjetiva, e portanto direitista e reacionária”, enquanto que a satírica, “social e moralizante, didática” era considerada progressista e da Esquerda.

A Natureza, com “a luta pela vida, dura e cruel, com a selvageria, a desordem, a sobrevivência do mais forte e as marcas que ainda guardava do Caos e do negrume”, era da Direita. A cidade, “organizada, baseada no progresso, no trabalho e na máquina”, era da Esquerda.

Do ponto de vista social, o sexo masculino, mais forte, dominador e explorador do outro, era da Direita, e o sexo feminino, explorado, fraco, ressentido e revoltado, da Esquerda. Mas, do ponto de vista do gosto, o sexo masculino, sóbrio e despojado, era da Esquerda, enquanto o feminino, com o amor pelos tecidos e pelas jóias, era da Direita. E assim por diante, em tudo e por tudo”. (Folheto 34)

É uma sátira, claro, mas distinções deste tipo podem ser multiplicadas a tal ponto que parecem pertencer a um movimento instintivo da mente humana. Servem para qualquer coisa. 

Se os padrinhos de Quaderna fossem versados em rock-and-roll, por exemplo, o elitista Samuel diria que o rock é de Esquerda, porque expressa o primitivismo musical das massas urbanas, o nivelamento-por-baixo da arte de combinar letra e música, e a rebeldia-sem-causa de adolescentes incomodados com a autoridade paterna. 

E o marxista Clemente diria que o rock é de Direita, porque expressa os interesses das mega-corporações da indústria fonográfica, a lavagem cerebral de-cima-para-baixo promovida pelos meios de comunicação, e a promessa de enriquecimento fácil desviando a juventude da verdadeira luta política. 

Os Beatles (comportadinhos, condecorados pela Rainha) são de Direita, e os Rolling Stones (sujos, mal-educados, agressivos) são de Esquerda. 

E assim por diante, em tudo e por tudo.