terça-feira, 1 de junho de 2010

2104) Kurtz (5.12.2009)



O personagem central de O Coração das Trevas de Joseph Conrad é Kurtz, que no filme Apocalipse Now de Coppola foi transformado em "Coronel Kurtz” e interpretado por Marlon Brando. Kurtz é um personagem propositalmente envolto por Conrad num véu de dúvidas, contradições e lacunas. Em primeiro lugar, porque o livro se estrutura com um narrativa-moldura: um grupo de ingleses passeia de barco na foz do Tâmisa, e um deles, Marlow, conta para os amigos a aventura que viveu na África, quando foi encarregado de comandar um barco a vapor rio acima para resgatar Kurtz, chefe de um entreposto comercial no coração da floresta. Tudo que sabemos de Kurtz é contado por Marlow, cujo conhecimento também está contaminado por todas as histórias, elogiosas e terríveis, que ouve a respeito de Kurtz durante a viagem, de modo que quando os dois se encontram pessoalmente sua impressão sobre o outro já está irremediavelmente condicionada.

Kurtz é a quintessência do explorador colonialista europeu (“Sua mãe era meio-inglesa, seu pai era meio-francês; toda a Europa contribuiu para a criação de Kurtz”), e traz em si os extremos dessa contradição: o discurso civilizatório (não muito distante, em termos morais, do discurso dos navegantes portugueses que pretendiam salvar a alma dos selvagens da América através da fé cristã) e a truculência sádica de quem se vê diante de povos militarmente, culturalmente e economicamente indefesos.

Conrad dá uma indicação concreta disto quando faz chegar às mãos de Marlow um documento escrito por Kurtz, encomendado pela “International Society for the Suppression of Savage Customs”. São dezessete páginas de texto cerrado, eloquente, em que Kurtz afirma: “Nós, brancos, no estágio de desenvolvimento a que chegamos, devemos necessariamente parecer aos selvagens seres sobrenaturais – nós os abordamos com o poder de verdadeiras divindades, e pela simples manifestação da nossa vontade podemos exercer uma influência praticamente ilimitada para o Bem”. Mas Marlow, ao folhear o relatório, vê na última página um rabisco feito às pressas, com mão vacilante, que diz: “Tem que exterminar esses brutos!”. São os dois lados do colonialismo: no início as boas intenções e o altruísmo civilizatório; no fim, o horror.

O que mais impressiona Marlow a respeito de Kurtz é sua “magnífica eloquência”. Por mais de uma vez ele assim se refere a Kurtz: “Uma voz! Uma voz!” É uma repetição de rendição absoluta ante o carisma do discurso verbal de outro indivíduo; e essa repetição ecoa as últimas palavras que ele vê Kurtz pronunciar no instante de morrer, durante a viagem de volta: “O horror! O horror!”. Como disse Eliot, em “The Hollow Men”: “Nossas vozes ressequidas, quando sussurramos juntos, são quietas e sem sentido, como o vento no capim seco, ou as patas das ratazanas sobre cacos de vidro na secura do nosso porão. (...) É assim que o mundo se acaba: não com uma explosão, mas com um ganido”.

2103) Curiosidades do esporte (4.12.2009)



Diz um antigo provérbio: “Não peça nada a Deus, porque ele atende”. Fica subentendido que ele atende de acordo com a conveniência dele, não com a nossa. Pedidos atendidos assim lembram aquela história da “Pata do Macaco”, de Jacobs, em que um casal idoso empunha o objeto mágico e pede cem libras esterlinas. No dia seguinte, o filho único morre num acidente e o seguro lhes paga as cem libras solicitadas.

Devo ter rezado muito a Deus (não me lembro de ter feito isso, mas nada é impossível pra quem bebe) pedindo que o Flamengo fosse campeão brasileiro de 2009. A prova disso é que o Todo Poderoso está prestes a me atender da maneira mais achincalhante possível. Vou resumir a situação, para os que não estão a par dos acontecimentos. No domingo que vem acontece a última rodada do campeonato, na qual surgirá o campeão. O time com mais chances é o Flamengo, ao qual basta derrotar o Grêmio de Porto Alegre, jogando no Maracanã. Em princípio, um osso duro de roer – me lembro bem de uma Copa do Brasil que o mesmo Grêmio nos arrancou no Maraca, com um empate de 2x2 depois de Romário ter feito um gol prodigioso de cabeça.

Acontece que há três outros times com chances de serem campeões, caso o Flamengo perca: são o Palmeiras, o São Paulo e o Internacional de Porto Alegre. Se qualquer um deles ganhar seu jogo de domingo e os demais envolvidos (Flamengo incluso) perderem, o vencedor é campeão. E isso criou a situação surrealista em que o Grêmio, adversário do Fla, está anunciando ao Brasil inteiro (através de sua torcida, seus jogadores, sua diretoria) que prefere perder para o Flamengo e vê-lo campeão do que esforçar-se para derrotá-lo e correr o risco de ver o campeonato ir parar nas mãos do Inter, seu arqui-rival, que na mesma tarde estará enfrentando o Santo André.

A lógica dos gremistas é que se o Inter for campeão graças a uma vitória do Grêmio sobre o Flamengo isto será uma humilhação indescritível para os tricolores gaúchos: matar-se em campo para dar o título ao rival! Não, pensam eles, melhor entregar o jogo!... Perder de propósito! Melhor fazer uma marmelada, um corpo mole, como o Corinthians fez domingo passado diante do mesmíssimo Flamengo. Para os corintianos, era melhor entregar a liderança ao Fla do que derrotar o rubronegro e ver a liderança (e quase certamente o título) ir parar nas mãos do São Paulo ou do Palmeiras.

Pois é. Pedi que meu time fosse campeão, e corro o risco de vê-lo ganhar o título, não por méritos próprios, não numa disputa épica daquelas de dar nó na válvula tricúspide – mas apenas porque o lance-de-dados da tabela reservou como nossos dois últimos adversários dois times que preferem perder para nós apenas por pinimba, apenas para não dar gosto ao adversário lá do quintal deles. Se perdermos um título dado assim, de-mão-beijada, será uma catástrofe. Se o ganharmos, será um anticlímax. Como dizia o jagunço Riobaldo, Deus é muito traiçoeiro. Melhor ser agnóstico.

2102) O oceano da informação (3.12.2009)





(mapa da Internet)

A proliferação da informação parece uma coisa boa. Nossa memória guarda a lembrança traumática de um tempo em que não tínhamos muita escolha. 

Eram poucos os jornais: em geral, um que defendia o governo e outro que o atacava em nome da oposição. 

Poucas as estações de rádio: o ponteiro vertical de sintonia passava a noite percorrendo o mostrador, da esquerda para a direita, e depois voltando, em busca de algo interessante. 

Poucos os canais de TV, que eram trocados através de um enorme botão mecânico no canto superior direito do aparelho, num giro de pancadas sucessivas em busca de um programa que agradasse. 

Poucas também as livrarias, nas quais os livros no balcão e na vitrine eram substituídos muito lentamente.

Sem falar na informação que era proibida, como na época da ditadura, em que era possível um presidente da República (o marechal Costa e Silva) ter um AVC, ficar praticamente em coma, e nenhum órgão da imprensa poder noticiar este fato. 

Ou na informação fabricada, em que era possível um presidente da República (Tancredo Neves) estar à beira da morte e ser forçado a posar sorridente, ao lado da esposa também sorridente e dos médicos mais sorridentes ainda, para fazer a população crer que estava tudo bem (não estava) e que ele sobreviveria (não sobreviveu).

Vai daí que nos sentimos felizes hoje, espadanando neste mar de 70 canais de TV a cabo, centenas de rádios FM, milhares de rádios AM, internet, Google, Facebook, Twitter, MySpace, Orkut, torpedos via celular, chat-rooms... Um oceano de informação. 

O problema é que o oceano é tão grande que podemos mergulhar nele e descer verticalmente centenas de metros sem nunca abandonar a superfície. A superfície dele não acaba, é um oceano só superfície, sem profundezas. Um oceano que se auto-multiplica a cada dia que passa, cresce exponencialmente, brota e rebrota de si próprio a cada novo gadget que é adquirido por nossos incontáveis cartões de crédito.

Assim como imaginamos que ter muitos cartões de crédito é sinônimo de ter muito dinheiro, imaginamos também que ter aparelhos de transmitir e receber informações é sinônimo de estarmos bem informados, de estarmos sabendo mais coisas, de estarmos adquirindo mais conhecimentos e mais sabedoria. 

Se nos disserem que a Internet nos proporciona hoje um milhão de livros gratuitos, ficamos felizes. Se amanhã nos disserem que este total saltou para 10 milhões de livros, ficaremos dez vezes mais felizes, como se o simples fato desses livros existirem e serem “disponibilizados” tornasse possível a leitura de todos eles.

Quanto mais cresce o oceano da informação (e sua intransponível superfície de irrelevâncias) mais diminuímos. Porque a tecnologia pode aumentar em muitos milhões a quantidade de textos gratuitos, mas não pode aumentar o dia, que só tem 24 horas. 

Eu troco todos os Googles e Amazons do mundo por um dia de 36 horas, para que eu tenha mais tempo para ler. Alguém se habilita?






2101) A obrigação de escrever (2.12.2009)




Já me referi aqui, na coluna “Ou escreve ou endoidece” (em meu blog: http://tinyurl.com/y8stn4f), ao melhor conselho literário já proferido por Gabriel Garcia Márquez, e que consiste em: 

“Ficar trancado durante seis horas numa sala onde existe apenas material para escrever, mais nada”. 

Porque a grande verdade é que quem escreve, mesmo quando diz que ama o seu ofício, usa de todas as desculpas possíveis para não escrever: responder emails, ver se alguém curtiu seu post no Facebook, ler os jornais de hoje, ler os jornais de ontem... 

Sem falar na quantidade enorme de tarefas domésticas cuja urgência só se revela ao escritor no momento em que ele abre o Word: jogar fora os jornais velhos, guardar as camisas espalhadas pelos encostos de cadeira, apagar telefones inúteis na agenda do celular...

O mesmo conselho é dado por Raymond Chandler, com uma justificativa psicológica que não passa em branco. Diz ele, numa carta a Alex Barris, em 18 de março de 1949: 

“A coisa mais importante é que deve haver um espaço de tempo, digamos, de quatro horas por dia, pelo menos, em que um escritor profissional não pode fazer outra coisa senão escrever. Ele não é obrigado a escrever, e se não estiver com vontade, não precisa nem tentar. Ele pode olhar pela janela, ou plantar bananeira, ou se espojar no chão. Mas não pode fazer qualquer outra coisa produtiva, seja ler, escrever cartas, folhear revistas, preencher cheques. Ou escreve ou nada. É o mesmo princípio de manter disciplina nas escolas. Se você faz com que os estudantes fiquem bem comportados, eles vão acabar aprendendo alguma coisa da aula só para não morrer de tédio. Eu acho que este método funciona. Duas regras muito simples: a) você não é obrigado a escrever; b) você não pode fazer outra coisa. O resto vem por si só.”

Escrever criativamente requer uma energia mental que não se pode produzir com uma mera decisão da vontade. É algo parecido com tirar um automóvel do lugar: sempre que a gente liga o motor é preciso “passar primeira”, ou seja, engatar uma marcha poderosa, capaz de arrancar da imobilidade aquele monstrengo de ferro-velho, colocá-lo em movimento. 

Depois que ele já está em movimento, aí é moleza, passa-se uma marcha mais leve, depois outra... Mas a primeira tem que ser uma marcha forte.

Minha irmã Clotilde me deu outro conselho precioso: começar a escrever uma bobagem, como se estivesse se dirigindo a alguém, sem o menor compromisso. A gente logo descobre que daí a 20 ou 30 linhas já engatou o juízo num assunto qualquer e começa a desenvolvê-lo de maneira interessante. Aí é só “passar segunda” e seguir em frente; quando termina, a gente volta ao começo e apaga aquelas 20 ou 30 linhas de bobagens. 

Para escrever, o mais necessário é colocar-se no estado de tensão (quase digo “tesão”) indispensável ao processo: um estado emocional e intelectual de excitação, de envolvimento, de realização de possibilidades concretas. O resto é consequência.









2100) “M” de Fritz Lang (1.12.2009)



Revi este clássico do Expressionismo Alemão, que o diretor considerava seu melhor filme, e que hoje é ainda melhor do que quando o vi pela primeira vez numa sessão do Cinema de Arte, no Capitólio, numa tarde de 1965. No meu tempo pré-cineclubista, eu era apenas um garoto que gostava de filmes de terror e de filmes policiais, e o título M, o Vampiro de Dusseldorf me atraiu. Ao deixar a sala, no fim da sessão, senti que tinha contemplado um sótão escuro e pouco ventilado da alma humana. Esse local insalubre nunca foi tão bem expresso quanto nos olhos aboticados e nas mãos convulsas de Peter Lorre, o “serial killer” que aterroriza a população de Dusseldorf. Chega um ponto em que os próprios criminosos da cidade decidem caçá-lo, prendê-lo, julgá-lo e condená-lo à morte, para que possam voltar a jogar em paz seu jogo de compadres com a polícia e os políticos.

O filme é tido como uma prefiguração do nazismo, em sua descrição da República de Weimar, corrupta e caótica, em que o crime organizado (Hitler e seus comparsas) acaba assumindo o poder. Pode ser visto também como um ensaio metafísico sobre o crime, em suas duas variantes: o crime de raiz social, que pode ser explicado por questões econômicas e sociológicas, e o crime de raiz psicológica, que permanece um mistério. Os bandidos em M mostram ter uma capacidade de organização e de controle burocrático tão boa quanto a da polícia; o submundo é apenas um microcosmo da sociedade burguesa. O socialista Proudhon dizia que “toda propriedade é um roubo”. O primeiro “crime organizado” é a sociedade em si, a sociedade dos cidadãos comuns, ordeiros, pacatos, trabalhadores, que fingem não saber que sua prosperidade e suas oportunidades na vida são decorrência da exploração criminosa das classes inferiores. A burguesia é a Máfia das máfias. Sociedade e crime organizado toleram-se mutuamente; os bandidos são uma espécie de cisto dentro do corpo social, que não se pode extirpar mas isola-se dentro de seus próprios domínios. O “serial killer” interpretado por Peter Lorre é aquele fator incontrolável, imprevisível, o crime que não tem raízes sociais, o crime contra crianças indefesas, e que nem mesmo o seu autor consegue explicar: “Não lembro de nada... Estou andando na rua e penso: Será que aconteceu de novo?... Será que voltei a fazer aquilo?...”

Numa longa entrevista a Peter Bogdanovich, Lang dizia que o título do filme vinha da cena em que um marginal, querendo marcar o assassino para melhor segui-lo, risca com giz uma letra “M” na palma da mão e aplica um tapa nas costas do suspeito, deixando o “M” impresso no seu sobretudo. E lembra: “Aliás, todos nós temos uma letra M gravada na palma de nossa mão”. O símbolo denunciador está em cada um de nós. Quem quer que seja tocado por nossa mão é um criminoso. É uma variante da “marca de Caim” descrita na Bíblia. No mundo claro-escuro de Lang, todos somos delatores e todos somos assassinos.

2099) Instruções para o Homem-bomba (29.11.2009)



“Este é o cinturão, que deve ficar bem preso ao corpo. Aperte o máximo que aguentar, para evitar que faça volume. Cada um desses bolsos tem alguns centímetros cúbicos de explosivo plástico, e para cada um deles há um detonador. No momento em que você puxar o cordão, todos os detonadores serão acionados ao mesmo tempo. São oito; mesmo que sete deles venham a falhar, basta que apenas um deles detone. Até hoje não houve um caso em que nenhum funcionasse. Este modelo que você vai usar é o mesmo que foi usado no ano passado por seus primos, Sayd e Malek. Que Alá os recompense.

“Agora, o casaco. Você usará uma camisa escura, por fora da calça, para disfarçar o cinto, e o casaco vai por cima dela. Ele será sua garantia. Foi tirado de um dos infiéis que sequestramos. Com ele, este boné com insígnias e este crachá você se fará passar por um membro da Guarda de Segurança e terá passagem livre nos postos de vigilância em torno do Hotel. Somente no derradeiro posto eles revistam todas as pessoas. No momento em que você se aproximar dessa última barreira, um dos nossos, que você não conhece e não sabe onde estará, vai atirar uma granada. Você deve aproveitar a explosão e o corre-corre para ultrapassar a barreira. Fique de costas para o Hotel e ande apressado, recuando, gritando ordens, como se estivesse saindo do Hotel na hora da explosão e agora voltasse para se abrigar.

“Ao cruzar a porta do Hotel, enfie as mãos nos bolsos e pegue ambos os cordões do detonador. Daí em diante, qualquer local que você escolha para detonar será abençoado por Alá, mas o ideal é que pegue a escadaria do lado esquerdo, suba ao mezzanino que dá acesso às salas de reuniões, e entre em qualquer uma delas. É certo que nesse horário todas estarão ocupadas por líderes dos infiéis, e o ambiente fechado irá potencializar a explosão. Escolha qualquer uma das salas. Se alguém desconfiar e o perseguir, fique pronto para puxar os cordões, mesmo que seja atingido por um tiro.

“O momento da explosão fará com que você perca os sentidos. Quando despertar, Sayd e Malek estarão lá para recebê-lo. Aqui está um papel com os recados que as famílias dos dois estão enviando. Procure memorizar tudo, para transmitir-lhes no momento em que se encontrarem. Pode ser que quem esteja à sua espera, por alguma razão, seja um desconhecido. Nada receie, ele estará ali para cuidar de você. Assim que estiver em condições, identifique-se, diga seu nome, o nome da sua Brigada e sua cidade de origem. Você será encaminhado aos seus primos, a quem caberá sua adaptação inicial no Paraíso. Diga-lhes que estamos todos orgulhosos de vocês. Permaneça ao lado deles e siga todas as instruções que eles lhe darão, porque os primeiros momentos costumam ser um pouco difíceis. Daqui a alguns meses, será sua vez de receber o próximo enviado. Agora, vá, e que Alá o acompanhe.”

2098) Os críticos do Google (28.11.2009)



Num mesmo dia, por Acaso (ou melhor: por Convergência Estatística), dei de cara com críticas ao Google, feitas por dois sujeitos que respeito: Umberto Eco e Ruy Castro. Acho que críticas à Memória Prima feitas por estes dois obsessivos colecionadores de informações são mais procedentes do que se fossem feitas por Bob Dylan e Caetano Veloso. Ruy e Eco são do ramo, e se têm ressalvas a fazer, não custa nada dar-lhes atenção.

Numa entrevista à Der Spiegel (aqui, em português: http://tinyurl.com/yze2mxj) Eco comenta uma exposição no Louvre de que foi curador, e cujo tema são “As Listas”. Para ele, fazer listas é uma das atividades mais importantes de uma cultura. Uma lista é um corte na realidade, é uma tentativa de criar uma ordem, um viés de significado. Indagado sobre a importância do Google, ele diz: “O Google faz uma lista, mas, no minuto em que eu olho para minha lista gerada pelo Google, ela já mudou. Essas listas podem ser perigosas - não para pessoas mais velhas como eu, que adquiriram o conhecimento de outra forma, mas para os jovens, para quem o Google é uma tragédia. As escolas precisam ensinar a fina arte de discriminar”.

Algo parecido diz Ruy Castro, com bom-humor, numa entrevista ao jornal Rascunho de Curitiba: “Quando ouço alguém dizer que já ‘pesquisou’ a meu respeito no Google, já sei que vem besteira a caminho. O Google só deveria ser acessível a pessoas com, no mínimo, um Ph.D em história e filosofia. É um instrumento poderoso demais para ser usado por semi-ignorantes. E é claro que é também maravilhoso, se você souber separar o que é documento e o que é pura leviandade”.

O que eles sugerem é que o valor de uma lista é criado pelo o viés de quem a faz: seus critérios (culturais, seletivos, qualitativos) sobre o que incluir e o que deixar de fora. Como os critérios do Google são mecânicos, estatísticos, quantitativos, é necessário um segundo viés, um segundo filtro – e esse, acham eles, falta aos jovens, os quais pensam às vezes que basta uma informação ter sido fornecida pelo Google para ser a resposta de que precisavam.

O Google é uma biruta (aqueles cones de pano nos aeroportos, que viram de acordo com o vento). O Google dá respostas provisórias, colhidas ao sabor da moda e do momento. Quando a roqueira Madonna namorou com o modelo brasileiro chamado Jesus, os principais hits do Google para a palavra “Jesus” se referiam ao moço, que estava sendo falado nos jornais do mundo inteiro. (Quando acabar, o herege é John Lennon!) Anos atrás, quando comecei a trocar o Cadê, o Yahoo ou o AltaVista pelo Google, as primeiras páginas eram um matagal de irrelevâncias, vinha tudo misturado. Hoje, há um critério: aparecem primeiro as páginas que foram consideradas mais satisfatórias pelos usuários (por um critério estatístico). Mas... concordo com Eco e Ruy. O Google parece menos com uma enciclopédia do que com um oráculo grego, cujas respostas sempre é preciso decifrar.