segunda-feira, 17 de agosto de 2020

4611) O consertador de potes (17.8.2020)



Existe uma tradição no artesanato japonês de barro chamada “kintsugi” ou "kinsukuroi". É a arte e a ciência de pegar um vaso de barro que se quebrou e consertá-lo, emendando de volta os cacos, reconstituindo o formato original do vaso. Acontece que as rachaduras não podem ser escondidas, pois o barro cozido e endurecido não pode mais ser moldado. O que fazem os artesãos? Eles preenchem as rachaduras com outros materiais, até mesmo com ouro, tornando-as ainda mais visíveis. Assumindo a história, sem disfarçá-la. O vaso quebrou, sim, quebrou mas foi consertado.

 

Existe uma lição nesse processo: a de reconhecer defeitos e incorporá-los à personalidade, depois de remediar a situação. Um pote de guardar água foi quebrado. Alguém juntou os cacos. Recompôs a forma. Preencheu as rachaduras com uma porcelana qualquer, um metal qualquer. As rachaduras continuam lá mas agora são inofensivas: o pote pode voltar a guardar água dentro de si. E o desenho do quebrado alerta as pessoas. Cuidado. Isso quebra.

 

Uma cicatriz, numa pessoa, conta uma história. O que aconteceu aqui? Ah, foi um acidente, foi isso, foi aquilo... Muita gente se esforça para camuflar cicatrizes, e é claro que algumas são desagradáveis de ver. Mas uma cicatriz pode ser transformada em elemento estético, numa tatuagem, por exemplo. Kintsugi.

 

Philip K. Dick tem um curioso livro de FC, Galactic Pot-Healer (1969), um dos menos comentados pelos críticos, mas que me parece um dos mais encantadores. Não é um livro que pudesse ser filmado por Steven Spielberg ou por Ridley Scott, mas eu gostaria de vê-lo adaptado pelos Estúdios Ghibli.


É um livro quase intraduzível, aliás, porque no mundo futuro que ele descreve as pessoas participam de um jogo (“The Game”) todo baseado em trocadilhos e naquilo que a gente chamada de “charadas infames”, charadas absurdas que só fazem sentido (ou um arremedo dele) na língua original.

 

Joe Fernwright é um “pot-healer”, um consertador de potes, de vasilhas de barro. Num mundo onde tudo é de plástico, artigos de barro são raros e preciosos, mas pouca gente lhes dá atenção. E Joe se dedica a consertar coisas de barro quebradas. Não se trata apenas de um artesanato visando uma função utilitária. Há toda uma filosofia.

 

Força. A força de ser, pensou ele, e em oposição a ela a paz do não-ser. Qual era melhor? A força acaba se gastando toda no fim, todas as vezes; então talvez a resposta fosse essa, e nada mais fosse preciso. A força – o ser – era temporária. E a paz – o não-ser – era eterna. Ela já existia antes do seu nascimento e recomeçaria depois de sua morte. O período entre esses dois pontos, o período da força, era apenas um episódio, o rápido flexionar de músculos recebidos de empréstimo, de um corpo que teria que ser devolvido... ao verdadeiro dono.

(p. 43, trad. BT)

 

Lembrei desse livro durante a leitura do quinto romance da série “Earthsea”, de Ursula LeGuin, The Other Wind (2001). Nele reaparece o mago Ged, conhecido como Sparrowhawk. Ele é o protagonista da série, que o acompanha desde o seu nascimento e o despertar da magia (A Wizard of Earthsea, 1968), uma aventura de sua entrada na vida adulta (The Tombs of Atuan, 1971), sua grande batalha na maturidade (The Farthest Shore, 1972), o surgimento de uma protagonista feminina (Tehanu, 1990) e finalmente sua velhice neste quinto livro.


Nele, Sparrowhawk, já com setenta anos, recebe no começo do livro a visita de Alder, um mago jovem, que está passando por um período atribulado e vem se consultar com ele. Aqui não interessa tocar no enredo central do livro, mas na figura de Alder. Ele é apresentado como um “consertador” (=”mender”), alguém com o talento especial de consertar coisas com o uso da magia.

 

Alder era um consertador. Ele era capaz de recompor. De tornar algo inteiro de novo. Uma ferramenta partida, uma lâmina de faca ou de machado que trincou, um pote de barro despedaçado: ele podia juntar de novo os fragmentos sem deixar fendas ou junturas ou pontos fracos. Seu mestre o mandou sair em busca das várias fórmulas de encantamento para consertar coisas, e ele as encontrou quase todas entre as bruxas da sua ilha, e começou a trabalhar com elas até aprender a consertar.

– Consertar é um pouco como curar – disse Sparrowhawk. – Não é um dom menor. Não é um ofício fácil.

(p. 15, trad. BT)

 

LeGuin surgiu na década de 1960 na fantasia norte-americana como um necessário contraponto a uma Fantasia Heróica em que os poderes mágicos ou tinham função militaresca (alvejar com raios, desmoronar muralhas, incendiar tropas) ou eram um instrumento de “wish fulfillment”, realização gratuita de desejos, final-feliz a custo zero: ressuscitar pessoas amadas, transformar qualquer-coisa em ouro, deletar inimigos, etc.

 

É inevitável que sua fantasia seja descrita como “feminina”, porque ela volta conscientemente sua atenção para o universo feminino, sua cultura, suas atividades. Num dos ensaios de Dancing at the Edge of the World, ela questiona com bom humor a visão masculina (ilustrada em 2001, uma Odisséia no Espaço) de que o primeiro instrumento usado pelos antropóides que deram origem ao homem tenha sido o bastão, a clava, o instrumento de bater e de matar. “Por que não teria sido alguma coisa côncava?”, pergunta ela. “Para guardar água, para guardar sementes?...”




A discussão pode ser ociosa para antropólogos ou historiadores, mas para ficcionistas, capazes de impor suas próprias regras, desde que sua ficção as sustente, é essencial.

 

E nessa de ter potes para água e sementes eu acho que não teria passado despercebido a LeGuin um título como o do livro de Philip K. Dick: O Consertador de Potes da Galáxia. Ela admirava demais Dick, a quem chamou “o nosso Jorge Luís Borges, cria de casa”. E o personagem de Alder em The Other Wind é uma versão mágica do Joe Fernwright do autor californiano.

 

Em certo momento, Sparrowhawk, que está hospedando Alder em sua choupana (é um Mago humilde, estóico) pede-lhe que conserte um vaso de barro que pertenceu a sua esposa.

 

Pouco tempo atrás ele lhe escapara das mãos, ao tirá-lo da prateleira. Ele recolheu os dois pedaços maiores e todos os fragmentos miúdos, com a intenção de colá-los de volta para que o vaso pudesse pelo menos ser visto de novo, mesmo que ficasse sem uso. Cada vez que olhava os cacos guardados num cesto ele se irritava com sua própria falta de jeito.

                Agora, fascinado, ele observou as mãos de Alder. Esguias, fortes, hábeis, sem pressa, elas rodeavam a forma do vaso, alisando, ajeitando, encaixando os pedacinhos de barro, instigando e acariciando, os polegares forçando e dirigindo os pedaços menores até o ponto certo, rejuntando todos, tranquilizando-os.

(p. 45, trad. BT)

 

É uma magia simpática, empática, que trata os objetos insensíveis como se fossem sentientes, que junta os cacos de um vaso como se fosse a patinha de um cão. Para mim o “pot-mender” de LeGuin foi inspirado, salvo melhor idéia, pelo “pot-healer” de P. K. Dick.

 

A magia literária fascina os leitores por causa desse substrato humano, que aliás muitas tradições da magia ritual clássica enfatizam. A necessidade da convivência longa e profunda com os materiais do rito (basta lembrar dos milhares de operações longas, enfadonhas, dos alquimistas com seus fornos e retortas). A familiaridade também – a antiga recomendação de que o recinto de práticas mágicas seja construído pelo próprio Mago, suas mãos abrindo o solo, misturando o cimento, assentando os tijolos.

 

A magia pode não funcionar no mundo real, concordo, mas para que funcione na literatura precisa de argumentos em que o leitor perceba um peso humano.  Não basta um abracadabra, um abre-te-sésamo.


Lord Darcy é um mago-detetive criado por Randall Garret, com interessantes histórias de um universo paralelo onde a magia funciona. Numa dessas histórias, o mago é capaz de recuperar um documento manuscrito com pena e tinta, sobre o qual alguém derramou por acidente o tinteiro. Ele pega aquela folha de pergaminho ensopada de tinta preta, e com uma fórmula pacientemente repetida retira dela toda a tinta indesejada, e deixa apenas o documento redigido e assinado, como era antes.

 

Como é possível? – pergunta alguém. E ele responde: Porque as linhas do documento e da assinatura são linhas traçadas por uma vontade humana, com uma concentração de propósito tipicamente humana; têm peso; têm força. A tinta derramada passou ali por acaso, era algo superficial, descartável, que uma fórmula mágica simples consegue remover, sem alterar o que, num certo sentido, foi gravado na pedra.



(Ursula LeGuin, foto de Dana Gluckstein)