quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

4650) "Os Párias do Átomo" (10.12.2020)




É um exercício interessante pegar um livro que a gente leu na infância e tentar lembrar os detalhes dele. Ainda mais se é um livro que a gente gostou, que leu mais de uma vez, etc.
 
Já me ocorreu (me ocorre ainda, principalmente em sebos) pegar num livro e pensar: “Caramba, esse livro é MUITO bom, eu adorei”. E se me perguntarem: “Como é a história?”  Eu digo: “Não faço a menor idéia. Só ficou a sensação.”
 
Talvez isto seja um critério a considerar (entre muitos) quando a gente analisa a experiência literária. Um livro tem uma história. Ela nos produziu uma impressão positiva, profunda. A história migrou por completo para o inconsciente e deixou só a impressão, como uma pegada na areia.
 
Houve uma época em que eu comprava por 5 reais um desses livrinhos, e em casa anotava num papel as coisas que conseguia lembrar. O nome de um personagem. Uma cena. Às vezes uma piada. Um elemento de enredo. E então começava a ler, para ver se estava lembrando certo.
 
Tenho ainda hoje dezenas de livrinhos de ficção científica ou policiais que li entre os 10 e os 15 anos e que muitas vezes não reli depois. De vez em quando pego um para fazer essa espécie de “anamnese”, uma tentativa de desenterrar algo que eu mesmo enterrei mas não sei mais o que é.
 
E um outro detalhe interessante é que em casos assim sou capaz de, no instante da releitura, achar na página 20 ou 30 uma frase, um parágrafo, uma expressão qualquer que me salta aos olhos, produzindo aquela sensação: “Eita! Lembro disso aqui!”. É uma lembrança parcial, que só brota depois do estímulo; mas também vale. Porque sem dúvida li todas as páginas anteriores, mas não deixaram esse tipo de marca específica.
 
Peguei esta semana para folhear o livro Os Párias do Átomo (“Les Parias de l’Atome”) de Max-André Rayjean, Edições de Ouro, tradução de David Jardim Júnior. O livro se anuncia como vencedor do “Grande Prêmio de Ficção Científica de 1957”, e saiu no Brasil, pela famosa “Série Futurâmica”, no começo dos anos 1960.

Se me perguntassem sobre o livro antes desta releitura, eu diria:  
 
“Aparecem mutantes na Terra, em consequência de guerras atômicas. Pessoas com pele verde, que têm extrema sensibilidade no tato; pessoas com olhos esbugalhados, imensos, de visão excepcional; pessoas com alterações grandes no nariz e aumento de olfato, ou nas orelhas e aumento da audição. Em todos os casos, os mutantes são pessoas de aparência repulsiva mas com uma espécie de super-poderes. O principal deles chama-se Monrow, o primeiro a descobrir que é capaz de matar alguém emitindo ondas mentais. Ele se torna depois o líder mundial dos mutantes, que entram em guerra com a humanidade.”
 
Tudo isto está de fato no livro. É uma espécie de X-Men “avant la lettre”. Mas coisas igualmente importantes tinham sumido da minha memória.
 
Por exemplo: os livros da coleção tinham uma “chamada de capa”, relativa ao enredo. Neste, a chamada de capa diz:
 
Só no vale azul de Vênus existia um minério especial que era capaz de neutralizar as usinas atômicas da Terra.
 
Isto não me trouxe nenhuma recordação, e ao pegar o livro dias atrás fiquei a imaginar o que diabo teria Vênus a ver com a história, que para mim era uma série de confrontos entre os mutantes e as polícias terrestres.
 
Bem: a verdade é que quando os mutantes começam a se multiplicar são todos deportados para Vênus, cuja capital, Venustown, é uma colônia terrestre. Ali se instala o Conselho que governa as hordas de mutantes recém-chegados. O “Vênus” da história é um planeta meio nublado mas cheio de árvores, rios, etc., como é comum na pulp fiction:
 
O jantar, realizado no Palácio da Presidência do Conselho, estava no fim. As largas sacadas da sala de jantar davam para jardins magníficos, onde repuxos luminosos mantinham uma umidade permanente.
 
Na noite, totalmente escura, grandes borboletas de asas roxas e azuis voavam de flor em flor. Não se via uma única estrela. Uma névoa opaca, estagnada a cinco mil metros de altura, cercava o planeta. No entanto, durante o dia, essa névoa deixava filtrar o calor do sol, mas a luz chegava com dificuldade até o solo. Vênus gravitava numa semi-penumbra, como num dia de nevoeiro espesso.  (pág. 88-89)
 
Vítimas de preconceito na Terra, onde são chamados de “tarados” e “anormais”, os mutantes se instalam nesse Vênus e planejam vingança. Descobrem que no tal Vale Azul existe um metal, que eles batizam de “neutratom”, capaz de interromper as reações atômicas – e consequentemente paralisar a Terra. Desenvolvem em seguida o “verroplex”, uma substância capaz de isolar o neutratom.
 
Veio aí um dos trechos que fui capaz de recordar, na releitura:
 
O acaso fizera-o descobrir o metal azul.
 
No decorrer de um voo de reconhecimento, um helicab de propulsão atômica caíra numa das regiões mais desoladas de Vênus. Estratônibus militares foram imediatamente enviados para o local do acidente e seus pilotos, surpreendidos, verificaram que desde que começavam a sobrevoar a região do Vale Azul, os motores nucleares deixavam de funcionar normalmente. Sérias perturbações obrigaram as aeronaves a recorrer aos reatores auxiliares de hidrogênio líquido.
 
Por que este trecho me meio imediatamente à memória, agora, sessenta anos depois, no instante da releitura? O resto eu não lembrava.
 
Provavelmente lembrei porque na minha cabeça de leitor de 1960 ele criou uma sinapse em conjunto com outra imagem, lida posteriormente, e que me impressonou igualmente. É no livro A Filha do Inca (1930) de Menotti del Picchia, onde o autor descreve no interior do Brasil  descoberta do que parece ser uma muralha, mas vista de perto revela-se como uma montanha linear de esqueletos, que vão desde dinossauros até onças e seres humanos. Esses esqueletos indicam a presença, ali, de um “campo de força” que mata instantaneamente qualquer ser vivo que o tocar. Uma falha providencial faz com que os protagonistas consigam atravessá-lo, mas um pequeno avião que vem para resgatá-los tenta atravessar a barreira aérea invisível justo quando ela é restaurada:
 
Súbito, porém, um espetáculo atroz eletrizou-o! Quando o aparelho ia cruzar a barreira de esqueletos, uma fulmínea pane paralisou o motor. Capotou, desequilibrado. Num tombo perpendicular, como um peso largado no vácuo, o aeroplano despencou. Com um estrondo esborrachou-se na faixa sinistra das ossadas, desarticulando-se em lascas e farrapos de lona, subindo do motor, ágil e rubra, a língua de uma chama.  (Cap. IV)
 
A descrição vigorosa, nítida, adequada, grava essas imagens na memória, e acho que grava em retrospecto as imagens semelhantes que a precederam.
 
Outro momento crucial de Os Párias do Átomo ocorre quando um grupo de dezesseis mutantes consegue voltar clandestinamente para a Terra, com o intuito de sabotar as centrais atômicas (que no fim das contas são a razão de sua “diferença” e de sua marginalização).
 
Eles viajam para pontos diferentes da Terra, e cada um leva consigo um pedaço considerável de neutratom, protegido numa caixa de verroplex. Num horário combinado, abrem esses invólucros para com isso paralisar todas as usinas atômicas terrestres. Este é outro trecho que, ao ler as primeiras frases, me veio inteiramente à cabeça, não palavra-por-palavra, mas a narração em si, as pausas, o distanciamento, a separação dos parágrafos:
 
Enquanto fumava, Monrow examinava um mapa-múndi. Vastos círculos, em número de quinze, exatamente, cobriam a superfície do mapa. Cada círculo correspondia a um ponto para onde deveria ir cada componente do grupo. Monrow sabia que, àquela hora, cada um de seus homens, espalhados pela superfície do globo, esperava, com o olhar fixo no cronômetro adaptado à hora local.
 
Às dezesseis horas, exatamente, a “operação” seria lançada.
 
(...) Com uma serra minúscula, cortou uma das arestas do cubo. A caixa de verroplex se abriu sem dificuldade.
 
Monrow tirou o fragmento do mineral azul e contemplou-o. Sabia que, naquele momento exato, todas as atividades da Terra cessavam, abruptamente.  (pág. 110)
 
Existe vigor melodramático nessa descrição de um gesto simples desencadeando forças invisíveis, mas científicas, capazes de influenciar todo o planeta.
 
Finalmente, houve dois detalhes que me chamaram a atenção por insignificantes. Logo no capítulo I, um médico volta para casa e a esposa o recebe bem à moda dos anos 1950:
 
Dirigiu-se à sala de estar e sentou-se numa poltrona, perto do ventilador.
– Que calor hoje! – lamentou-se, desfazendo o nó da gravata.
Françoise estava preparando a laranjada. Abriu a geladeira e colocou um cubo de gelo no copo.
– Tome, beba... Isso lhe fará bem.
Fridman sorriu e com deleite mergulhou os lábios no líquido gelado. Até o vidro estava frio. 
(pág. 14)
 
Por que gravei isto com tanta precisão? Certamente porque a geladeira era uma novidade lá em casa; me lembro como-se-fosse-hoje da sua chegada.
 
E outro detalhe, que revela a sensibilidade epidérmica dos mutantes, no Capítulo VIII:
 
O comissário acendeu um cigarro. Quando riscou o fósforo, a pele verde de Monrow foi percorrida por um arrepio.
(pág. 62)
 
Se  um detalhe como esse se fica na lembrança de um leitor, houve eficácia literária, pelo menos para o tipo de percepção desse leitor. Vale mais uma informação concreta, vazada em termos simples como estes, do que uma longa explicação aludindo a “ondas térmicas” ou “atrito vibratório de moléculas” ou sei lá o que.
 
Não temos um controle consciente do que vai ficar em nossa memória. Como dizia José Paulo Paes, “cultura é o que a gente consegue recordar depois que fecha o livro”.