quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

2769) A palavra peneirar (18.1.2012)




Grande parte do nosso vocabulário se forma através de estágios sucessivos. No primeiro, usa-se uma palavra para fazer uma alusão direta a alguma coisa concreta e familiar a todos. No segundo, essa palavra é transposta para significar algo também concreto, mas completamente diferente, por um processo de semelhança, alusão, associação de idéias, etc. No terceiro, passa a designar uma noção abstrata que já não tem nada a ver com a coisa concreta original; ninguém seria capaz de traçar o percurso até a imagem que deu origem a tudo. Toda aquela rede de utilizações anteriores produziu um sentido genérico que justifica o uso, mas fica difícil entender como o significado “Z” veio do significado “A”.

Usarei o exemplo do verbo “peneirar”, tão nordestino. Ele indica os movimentos circulares que uma peneira faz nas mãos de uma cozinheira; este é o primeiro estágio. Num segundo estágio, passa a indicar qualquer movimento parecido, daí o uso feito por Luiz Gonzaga em “Marimbondo”: “O marimbondo vindo peneirando as asas / pra entrar em nossa casa / chega chuva pro sertão...”. A origem do verbo fica ainda mais clara na canção “Peneirou Gavião”, em que Jackson do Pandeiro compara diretamente os dois movimentos: “Peneirou, peneirou, peneirou gavião / nos ares para voar; / tu belisca mas não come, gavião / da massa que eu peneirar”. O gavião é um exemplo melhor que o marimbondo, porque se parece mais com uma peneira com aquele seu jeito de planar baixo, oscilando horizontalmente, sem subir nem descer.

Ora, daí a pouco qualquer movimento circular começa a ser açambarcado por esse verbo, por associação de idéias – como o dos quadris de uma mulher que dança ou se rebola. Em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar Pimentel, vê-se uma fala assim: “ROSINHA - O que é seu tá guardado, meu fio. Eu me chamo Rosinha, né Quitéria não. Vamo, seu tocadô, qu'eu quero penerá uma coisinha! (A música recomeça e ela dança) Ai, ai, ai meu tempo!”.

O verbo acaba assumindo a conotação de “mulher rebolando, atraindo atenções masculinas”, como na canção “O mistério do fundo do olho” de Lula Queiroga: “Tô peneirando, peneirando / Bar da Mira, Burburinho / Pina de Copacabana / Galeria Joana Darc, peneirando / Essa menina tem classe / até quando me deixa sozinho”. E desse sentido erótico, provocativo, o verbo ganha um sentido semelhante mas abstrato, também como “oferecer-se de maneira explícita, não disfarçada”: “Fulano está há anos no PDT mas agora vive se peneirando para ir pro PSD”. Cada novo significado abre caminho para novas associações de idéias serem feitas, cada vez mais afastadas do sentido inicial.