O tradutor Rafael Brunhara, que mantém o blog “Primeiros
Escritos”, dedicado à tradução poética, teve a idéia de reunir 23 diferentes
exemplos de tradução de um mesmo trecho da Odisséia,
de Homero. É o proêmio, ou versos iniciais, do grande poema épico.
Pelo que sei, os poemas homéricos são compostos em versos
hexâmetros, que consistem em seis “pés” de duas sílabas. São versos dodecassílabos,
portanto, mas diferentes (por uma questão de acentuação e cadência, imagino) do
dodecassílabo usado na poesia brasileira – o famoso “verso alexandrino”, muito usado
pelos simbolistas e pelos parnasianos, embora menos que o decassílabo.
Enfim: só quem se preocupa com essa questão de número de
sílabas são os poetas e os críticos. Os leitores querem saber o que a poesia
está dizendo, e se o diz de um jeito interessante. Mais nada.
Nunca li os poemas de Homero. Uma grave lacuna,
reconheço. Mesmo para mim, que sou também poeta e tradutor, muitas traduções
pareciam impenetráveis. Por ser um poema clássico, os tradutores se sentem,
compreensivelmente, na obrigação de usar um vocabulário elevado, erudito. Ficamos
com o livro sobre a perna direita e o dicionário na perna esquerda.
Vejamos o exemplo da primeira tradução que tentei ler,
aos 20-e-poucos anos. Provavelmente foi esta, a do famoso Carlos Alberto Nunes:
5.Carlos Alberto Nunes (1941)
Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso
que muito
peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas
de Troia;
muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus
costumes,
como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na
alma,
para que a vida salvasse e de seus companheiros
a volta.
Os companheiros, porém, não salvou, muito embora
o tentasse,
pois pereceram por culpa das próprias ações
insensatas.
Loucos! que as vacas sagradas do Sol Hiperiônio
comeram.
Ele, por isso, do dia feliz os privou do
retorno.
Deusa nascida de Zeus, de algum ponto nos conta
o que queiras.
Por ser verso de forma fixa, a constrição da métrica
obriga o poeta a um certo contorcionismo para que as palavras caibam no
procustiano leito. (Olha aí, só de ler um trecho já vou entrando no clima.)
Pelo que vejo, o tradutor optou pelo verso de 16 sílabas, onde cabem mais
coisas.
Este proêmio faz um breve resumo das aventuras de
Ulisses, e desde logo adverte que os companheiros dele não se salvaram porque
comeram os “bois do sol” de Hiperion, episódio que no poema será explicado mais adiante.
Por mim a linguagem está tranquila, mas a gente precisa explicar que “dês que
esfez” significa “desde que desfez”, ou seja, “desde que destruiu (as muralhas
de Tróia”).
No mais, a linguagem é bastante compreensível. Um pouco
mais difícil é a de Odorico Mendes, outro ínclito cultor do lavor apolíneo:
3. Odorico Mendes (1928)
Canta, ó Musa, o varão que astucioso,
Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,
Viu de muitas nações costumes vários.
Mil transes padeceu no equóreo ponto,
Por segurar a vida e aos seus a volta;
Baldo afã! Pereceram, tendo, insanos,
Ao claro Hiperiônio os bois comido,
Que não quis para a pátria alumiá-los.
Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra.
Neste caso, eu teria que negociar de verso em verso.
Explicar que “rasa Ílion santa” pode ser por sua vez traduzido para “depois de
destruída a cidade sagrada de Tróia”. O “equóreo ponto” é o mar. “Baldo afã”
(que ecoa o “doudo afã” de Castro Alves) quer dizer “esforço feito em vão,
trabalho perdido”. Só não decifro mesmo é esse “prole Dial”, que pela estrutura
é um vocativo dirigido à Deusa, basta ver a derradeira linha dos outros
exemplos.
Uma coisa importante em traduções assim é quando
percebemos a existência de um termo bem específico, no original, cuja
importância obriga o tradutor a não omiti-lo, e vertê-lo seja como for. Por
exemplo: logo no começo Ulisses (ou Odisseu) recebe em grego um
qualificativo que os diversos tradutores
interpretam como: “astucioso”, “astuto”, “fértil em expedientes”, “de talento
multiforme”, “industrioso”, “engenhoso”, etc.
Esses exemplos me dão uma noção do que está sendo dito – e me ajudam a
entender o que outros traduzem como “multívio”, “multiversátil”, “o muitas-vias”,
“multimodal”, etc.
A obrigação de contar sílabas leva um tradutor a chamar
Tróia de “sacra pólis”, quando a outros basta dizer “cidade sagrada”, e estamos
conversados.
Outro qualificativo recorrente é o dos companheiros de
Ulisses, que morrem por imprudência no curso das aventuras. O termo grego
original deve ter conotações de inexperiência, inocência, imprudência juvenil, porque
os tradutores recorrem a: “loucos”, “insanos”, “insensatos”, por um lado, e por
outro a “fracalhões”, “tolos”, “crianções”, “pueris”.
Esse elenco de opções mostra bem que a palavra original
admite uma série de conotações, e cada tradutor escolhe a sua em função dos
problemas imediatos com que se depara: a contagem métrica, a acentuação, a
posição da palavra dentro da linha, a possível rima, etc.
Traduzir uma obra épica como a Odisséia coloca uma escolha-de-Sofia para o tradutor. O que deve
ser sacrificado: a melodia do verso ou a eficácia dramática da narrativa?
Porque muitas vezes uma delas só pode ser mantida e realçada às custas da
outra.
É poesia: tem imagem, tem som e tem idéia. É narrativa:
tem personagens, peripécias, aventura e suspense. A qual dos dois o tradutor
quer dar ênfase?
Por isso muitos radicalizam e decidem esquecer o verso, e
traduzir em prosa. A métrica e a rima vão para o espaço, a “textura poética” se
restringe às belas imagens inventadas pelo poeta (“os dedos cor-de-rosa da aurora”),
mas o mais importante é contar a história.
Como simples leitor, minha curiosidade quanto à Odisséia não se volta para a palavra
poética, mas para o enredo épico. Numa primeira leitura, eu abriria mão de
saborear os hexâmetros e daria preferência às peripécias. Gostaria de ter uma
primeira visão do livro como narrativa; ler a Odisséia como se fosse uma espécie de Moby Dick ou de Vinte Mil
Léguas Submarinas, uma prosa a serviço de um enredo.
Talvez, então, eu prefira conhecer o poema homérico
através de uma tradução limpa e fluente como me parecem as de Jaime Bruna e
Fernando Araújo:
9. Jaime Bruna (1968)
Musa,
narra-me as aventuras do herói engenhoso, que após saquear a sagrada fortaleza
de Troia, errou por tantíssimos lugares vendo as cidades e conhecendo o
pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no coração,
tentando preservar a sua vida e o repatriamento de seus companheiros, sem,
contudo, salvá-los, mau grado seu; eles perderam-se por seu próprio desatino;
imbecis, devoraram as vacas de Hélio, filho de Hipérion, e ele os privou do dia
do regresso. Começa por onde te apraz, deusa, filha de Zeus, e conta-as a nós
também.
10. Fernando C. de Araújo (1970)
Eis a história de um homem que jamais se deixou vencer. Viajou pelos confins do
mundo, depois da tomada de Tróia, a impávida fortaleza. Conheceu muitas cidades
e aprendeu a compreender o espírito dos homens. Enfrentou muitas lutas e
dificuldades, no esfôrço de salvar a própria vida e levar de volta os
companheiros aos seu lares. Fez o que pôde, mas não conseguiu salvá-los.
Pereceram devido à sua própria loucura, por terem matado e devorado os bois de
Hiperion, o Deus-Sol, e este diligenciou para que eles jamais vissem de novo
seus lares. Ao começar a história, (...)
Aqui no link abaixo, os comentários argutos de Rafael
Brunhara sobre as 23 versões. Entre as quais recomendo as de Milton Marques
Júnior, cujos artigos no Correio das
Artes muito me ensinam, e de Guilherme Gontijo Flores, cujas aventuras
tradutórias acompanho fielmente via Facebook.