quarta-feira, 26 de agosto de 2020

4614) Para ler a Odisséia (26.8.2020)





O tradutor Rafael Brunhara, que mantém o blog “Primeiros Escritos”, dedicado à tradução poética, teve a idéia de reunir 23 diferentes exemplos de tradução de um mesmo trecho da Odisséia, de Homero. É o proêmio, ou versos iniciais, do grande poema épico.
 
Pelo que sei, os poemas homéricos são compostos em versos hexâmetros, que consistem em seis “pés” de duas sílabas. São versos dodecassílabos, portanto, mas diferentes (por uma questão de acentuação e cadência, imagino) do dodecassílabo usado na poesia brasileira – o famoso “verso alexandrino”, muito usado pelos simbolistas e pelos parnasianos, embora menos que o decassílabo.
 
Enfim: só quem se preocupa com essa questão de número de sílabas são os poetas e os críticos. Os leitores querem saber o que a poesia está dizendo, e se o diz de um jeito interessante. Mais nada.
 
Nunca li os poemas de Homero. Uma grave lacuna, reconheço. Mesmo para mim, que sou também poeta e tradutor, muitas traduções pareciam impenetráveis. Por ser um poema clássico, os tradutores se sentem, compreensivelmente, na obrigação de usar um vocabulário elevado, erudito. Ficamos com o livro sobre a perna direita e o dicionário na perna esquerda.
 
Vejamos o exemplo da primeira tradução que tentei ler, aos 20-e-poucos anos. Provavelmente foi esta, a do famoso Carlos Alberto Nunes:
 
5.Carlos Alberto Nunes (1941)
Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito
peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Troia;
muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes,
como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma,
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta.
Os companheiros, porém, não salvou, muito embora o tentasse,
pois pereceram por culpa das próprias ações insensatas.
Loucos! que as vacas sagradas do Sol Hiperiônio comeram.
Ele, por isso, do dia feliz os privou do retorno.
Deusa nascida de Zeus, de algum ponto nos conta o que queiras.

Por ser verso de forma fixa, a constrição da métrica obriga o poeta a um certo contorcionismo para que as palavras caibam no procustiano leito. (Olha aí, só de ler um trecho já vou entrando no clima.) Pelo que vejo, o tradutor optou pelo verso de 16 sílabas, onde cabem mais coisas.
 
Este proêmio faz um breve resumo das aventuras de Ulisses, e desde logo adverte que os companheiros dele não se salvaram porque comeram os “bois do sol” de Hiperion, episódio que no poema será explicado mais adiante. Por mim a linguagem está tranquila, mas a gente precisa explicar que “dês que esfez” significa “desde que desfez”, ou seja, “desde que destruiu (as muralhas de Tróia”).
 
No mais, a linguagem é bastante compreensível. Um pouco mais difícil é a de Odorico Mendes, outro ínclito cultor do lavor apolíneo:
 
3. Odorico Mendes (1928)
Canta, ó Musa, o varão que astucioso,
Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,
Viu de muitas nações costumes vários.
Mil transes padeceu no equóreo ponto,
Por segurar a vida e aos seus a volta;
Baldo afã! Pereceram, tendo, insanos,
Ao claro Hiperiônio os bois comido,
Que não quis para a pátria alumiá-los.
Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra.

Neste caso, eu teria que negociar de verso em verso. Explicar que “rasa Ílion santa” pode ser por sua vez traduzido para “depois de destruída a cidade sagrada de Tróia”. O “equóreo ponto” é o mar. “Baldo afã” (que ecoa o “doudo afã” de Castro Alves) quer dizer “esforço feito em vão, trabalho perdido”. Só não decifro mesmo é esse “prole Dial”, que pela estrutura é um vocativo dirigido à Deusa, basta ver a derradeira linha dos outros exemplos.
 
Uma coisa importante em traduções assim é quando percebemos a existência de um termo bem específico, no original, cuja importância obriga o tradutor a não omiti-lo, e vertê-lo seja como for. Por exemplo: logo no começo Ulisses (ou Odisseu) recebe em grego um qualificativo  que os diversos tradutores interpretam como: “astucioso”, “astuto”, “fértil em expedientes”, “de talento multiforme”, “industrioso”, “engenhoso”, etc.  Esses exemplos me dão uma noção do que está sendo dito – e me ajudam a entender o que outros traduzem como “multívio”, “multiversátil”, “o muitas-vias”, “multimodal”, etc.
 
A obrigação de contar sílabas leva um tradutor a chamar Tróia de “sacra pólis”, quando a outros basta dizer “cidade sagrada”, e estamos conversados.
 
Outro qualificativo recorrente é o dos companheiros de Ulisses, que morrem por imprudência no curso das aventuras. O termo grego original deve ter conotações de inexperiência, inocência, imprudência juvenil, porque os tradutores recorrem a: “loucos”, “insanos”, “insensatos”, por um lado, e por outro a “fracalhões”, “tolos”, “crianções”, “pueris”.
 
Esse elenco de opções mostra bem que a palavra original admite uma série de conotações, e cada tradutor escolhe a sua em função dos problemas imediatos com que se depara: a contagem métrica, a acentuação, a posição da palavra dentro da linha, a possível rima, etc.
 
Traduzir uma obra épica como a Odisséia coloca uma escolha-de-Sofia para o tradutor. O que deve ser sacrificado: a melodia do verso ou a eficácia dramática da narrativa? Porque muitas vezes uma delas só pode ser mantida e realçada às custas da outra.
 
É poesia: tem imagem, tem som e tem idéia. É narrativa: tem personagens, peripécias, aventura e suspense. A qual dos dois o tradutor quer dar ênfase?
 
Por isso muitos radicalizam e decidem esquecer o verso, e traduzir em prosa. A métrica e a rima vão para o espaço, a “textura poética” se restringe às belas imagens inventadas pelo poeta (“os dedos cor-de-rosa da aurora”), mas o mais importante é contar a história.
 
Como simples leitor, minha curiosidade quanto à Odisséia não se volta para a palavra poética, mas para o enredo épico. Numa primeira leitura, eu abriria mão de saborear os hexâmetros e daria preferência às peripécias. Gostaria de ter uma primeira visão do livro como narrativa; ler a Odisséia como se fosse uma espécie de Moby Dick ou de Vinte Mil Léguas Submarinas, uma prosa a serviço de um enredo.
 
Talvez, então, eu prefira conhecer o poema homérico através de uma tradução limpa e fluente como me parecem as de Jaime Bruna e Fernando Araújo:
 
9. Jaime Bruna (1968)
Musa, narra-me as aventuras do herói engenhoso, que após saquear a sagrada fortaleza de Troia, errou por tantíssimos lugares vendo as cidades e conhecendo o pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no coração, tentando preservar a sua vida e o repatriamento de seus companheiros, sem, contudo, salvá-los, mau grado seu; eles perderam-se por seu próprio desatino; imbecis, devoraram as vacas de Hélio, filho de Hipérion, e ele os privou do dia do regresso. Começa por onde te apraz, deusa, filha de Zeus, e conta-as a nós também.

10. Fernando C. de Araújo (1970)
Eis a história de um homem que jamais se deixou vencer. Viajou pelos confins do mundo, depois da tomada de Tróia, a impávida fortaleza. Conheceu muitas cidades e aprendeu a compreender o espírito dos homens. Enfrentou muitas lutas e dificuldades, no esfôrço de salvar a própria vida e levar de volta os companheiros aos seu lares. Fez o que pôde, mas não conseguiu salvá-los. Pereceram devido à sua própria loucura, por terem matado e devorado os bois de Hiperion, o Deus-Sol, e este diligenciou para que eles jamais vissem de novo seus lares. Ao começar a história, (...)

 

Aqui no link abaixo, os comentários argutos de Rafael Brunhara sobre as 23 versões. Entre as quais recomendo as de Milton Marques Júnior, cujos artigos no Correio das Artes muito me ensinam, e de Guilherme Gontijo Flores, cujas aventuras tradutórias acompanho fielmente via Facebook.