domingo, 23 de agosto de 2020

4613) Eu Me Lembro -- 19 (23.8.2020)



(Colégio Estadual da Prata, anos 2000)

1
Eu me lembro de Professor Almeida, que ensinava Ciências Naturais no Estadual da Prata. Ele era pai de D. Nora, uma professora que tive no primário, no Colégio Alfredo Dantas, que era muito apegada a mim, e eu a ela. Prof. Almeida tinha a didática tradicional: descrevia uma experiência científica (p. ex., como um alambique destila água) num texto decorado, para a gente copiar, enquanto fazia desenhos e diagramas no quadro. Depois, pedia para a gente repetir. Uma vez ele me escolheu: “Venha ao quadro!” Lá fui eu, apontando o desenho e explicando. Nessa vez, era alguma experiência de laboratório, eu expliquei: “Coloca-se ambas as substâncias no mesmo tubo de ensaio”. Ele: “E depois?”. Eu: “Depois, precisa misturar bem, então a gente sacode o tubo.” Ele, com cara de espanto, apontando: “Sacode o tubo lá na porta, e manda um moleque buscar, é isso?”.
 
2
Quando a gente tem uma irmã mais velha, como ocorria comigo e Tide (Clotilde) a gente assimila coisas que fazem parte da cultura de garotas adolescentes, por mero efeito de proximidade e espírito de imitação. Eu me lembro que ela e as amigas (elas teriam 12 ou 13 anos, eu teria uns 9 ou 10) usavam uma “simpatia” (não sei se é esse o nome adequado) que consistia em contar quantos urubus a gente via pousados numa casa, num muro, árvore, etc.  Havia uma correspondência numérica que era: 1-gosto, 2-desgosto, 3-carta, 4-convite, 5-casamento (de seis em diante voltava ao início: 6-gosto, 7-desgosto, etc.).  Com isso as garotas adivinhavam “o que estava para acontecer”. Eu ouvia a conversa delas e aderia silenciosamente à brincadeira, que para mim só tinha sentido nos dois primeiros: gosto e desgosto são eventos comuns, ninguém me escrevia cartas, ninguém me fazia convites, e eu não tinha propriamente planos de me casar. Mas ainda hoje vejo às vezes um urubu solitário, ou uma parelha, em cima de um muro, e penso automaticamente: “Gosto... Desgosto...”.
 
3
Eu me lembro que minha mãe fez uma vez um curso de bordado no SESI, era bordado feito com a máquina de costura. Eu ficava brincando no chão e vendo ela costurar, e evidentemente nas horas vagas em sentava no pedal grande da máquina e usava a roda de metal como se fosse volante de um carro. Toda criança faz isso. Eu ficava curioso com os carretéis de linha “mesclada”, que eram de uma cor apenas mas variando a intensidade (verde claro, verde escuro, verde muito escuro, etc.) e depois eu ia checar no bordado se isso fazia diferença no desenho final. Uma vez ela fez uma toalha de mesa copiando um molde com papel carbono, mas copiou invertido; eram desenhos de rapazes e moças vestidos de portugueses, e embaixo tinha uma faixa dizendo: O VIRA (o nome da dança), mas ela tinha copiado invertido e ficou ARIV O. Mesmo assim a toalha ficou ótima e usou-se por muito tempo nos dias de festa.
 
4
Quando a gente morava na Rua Miguel Couto (entre os meus 6 e 10 anos, mais ou menos) eu gostava de brincar embaixo da mesa da sala, meu esconderijo preferido, juntamente com o birô onde Seu Nilo escrevia. Ali eu me entrincheirava com meu armamento e dali fuzilava sem piedade soldados alemães, índios apaches e granadeiros prussianos (eu era pró-Napoleão). A mesa da sala era uma mesa simples, de madeira pintada de escuro, e na face inferior, virada para o chão, as tábuas eram quase brancas. Ali eu escrevia bobagem com carvão ou giz de cera, fazia desenhos, etc., como se pintasse o teto de uma caverna. Quando a gente se mudou por volta de 1960 ou 1961 para a Vila dos Motoristas (atrás do campo do Treze), a mesa foi desmontada, e chegando na casa nova foi montada de novo. Qual não foi minha surpresa ao perceber que as pessoas que a remontaram não deram nenhuma atenção às obras de arte pintadas na face mais clara das tábuas. Para eles, o que contava era a face virada para cima, que era escura, lisa. Isso fez com que meus desenhos, meus mapas e meus escritos ficassem todos fora de ordem, porque a posição das tábuas foi trocada. Reencontrei essa sensação de aparvalhamento momentâneo quando conheci os cut-ups de William Burroughs.
 
5
Eu me lembro que outro professor de Ciências Naturais nessa época foi Zé Lucas, conhecido como Zé do Bode, cuja mãe era amiga de minha mãe, e que depois que fiquei adulto ficamos amigos e chegamos a tomar algumas cervejas juntos. Ele distribuiu com a classe uma apostila maciça, super organizada, com os assuntos de física, biologia, etc., tudo bem dividido e explicado, e olha que era ainda o curso ginasial. Houve uma polêmica acalorada entre os alunos quando alguém descobriu um erro na apostila, mas ninguém tinha coragem de questionar o professor cara a cara. Na parte relativa a Ótica, ele falava que “um raio de luz era refletido quando atingia uma superfície sólida, p. ex., um espelho, um líquido...”  O pessoal dizia: “Oi, e como um líquido pode ser sólido?” Eu embatucava, mas sentia que mesmo assim a apostila estava certa. Hoje acho que ele deveria ter escrito: “quando atingia um objeto material”.
 
6
Outra brincadeira de infância era uma parlenda que se dizia enquanto se jogava uma bola de encontro a um muro e pegava de volta. Joguinhos que ajudam a coordenação motora (no meu caso, sem grandes resultados). Ao jogar a bola na parede a gente dizia em voz alta os comandos, e os obedecia antes que a bola voltasse. A lista que guardo de memória (varia muitíssimo de pessoa pra pessoa – já conferi) era: “Ordem... Seu lugar... Sem rir... Sem falar... Com um pé... Com o outro... Com uma mão... Com a outra... Bate palma... Pirueta... Trás adiante... Queda...” As ações estão mais ou menos explicadas; “trás adiante” era jogar a bola, bater palmas com as mãos às costas, depois à frente, e pegar a bola de volta. A única coisa que isso me rendeu foi que aprendi a jogar a bola na parede (era sempre de baixo pra cima, num ângulo de uns 45 graus) dando um efeito adicional com a ponta dos dedos, que fazia a bola bater no muro e subir pegando efeito, demorando um ou dois segundos a mais para cair, e aí dava tempo de executar o comando.