segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

5131) A queda de Ícaro (9.12.2024)

 

 
Wystan Hugh Auden foi um dos grandes poetas da língua inglesa do século 20. Para mim, leitor distante, tem a mesma importância de um T. S. Eliot.  Assinava-se W. H. Auden, seguindo essa moda britânica de usar duas iniciais e um sobrenome. Os dois tinham temperamentos diferentes, e alguns elementos poéticos em comum.
 
Biograficamente, foram de certa forma o avesso um do outro: Eliot (1888-1965) era um norte-americano que migrou para a Inglaterra, um ambiente sisudo e engravatado onde se sentia mais à vontade. O inglês Auden (1907-1973) era mais cosmopolita e extrovertido, e fez o percurso inverso, fugindo da Europa para os EUA às vésperas da II Guerra Mundial.
 
Acho que o primeiro poema de Auden que li, numa antologia de bolso, foi um dos mais conhecidos dele: “Musée des Beaux Arts”, no qual ele comenta a queda de Ícaro, o personagem mitológico que voou com asas postiças mas aproximou-se muito do sol e acabou caindo – o calor derreteu a cera que lhe prendia as asas.
 
O poema de Auden descreve a cena, mas dando, por assim dizer, um passo atrás, para se distanciar: descreve um quadro de Brueghel (“Paisagem com a queda de Ícaro”) que retrata o episódio mitológico. Cria, de certo modo, uma “construção em abismo”. Alguém poderia transformar o poema de Auden numa canção. E depois alguém poderia usar essa canção (com seus versos e sua melodia) para criar um balé. E depois outra pessoa poderia produzir um filme documentando (ou ficcionalizando) esse balé... As possibilidade, como sempre, são infinitas.



(Ícaro, no canto inferior direito do quadro)

 
O quadro de Brueghel mistura a lenda mitológica com uma ambientação realista. Ícaro, o personagem mais importante, está quase sumido no canto inferior direito. Brueghel mostra como mesmo os fatos mais momentosos, aqueles que serão lembrados e recontados por milhares de anos, ocorrem num ambiente humano, misturado a detalhes banais.
 
O Realismo (na pintura, na literatura, etc.) se baseia nessa percepção – de que nada acontece num vácuo.  Cada narrativa célebre ocorreu de mistura a outras narrativas menores, que se perderam.
 
O poema aparece na ótima edição bilingue da poesia de Auden (Poemas, Companhia das Letras, 1986, trad. José Paulo Paes e João Moura Jr.). Há outras traduções na Web, inclusive um trabalho meticuloso e bem argumentado de Alexandre Bruno Tonelli (UFRJ), “W. H. Auden em tradução: o verso livre de “Musée des Beaux Arts”.
 
Fiz esta tradução com algumas pequenas interferências. (Não, não é uma “tradução livre”: nenhuma tradução é livre, ou talvez todas o sejam por igual.) Quebrei algumas linhas que me pareceram longas demais (as palavras em português são em geral compridas demais comparadas ao inglês).
 
Auden não usa um esquema regular de rimas; a rima aparece em seu texto quase como por um acaso, caída do céu como o próprio Ícaro. Deixei que a versão em português ficasse aberta a essas casualidades, com eventuais rimas internas brotadas da própria língua, em diferentes pontos do texto.





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No Museu de Belas Artes
(W. H. Auden – trad. BT)
 
Sabiam tudo sobre o sofrimento,
os Antigos Mestres; como ele se mistura
à condição humana;  como acontece
enquanto alguém almoça, ou abre janelas,
ou apenas caminha sem pensar;
como, enquanto os idosos aguardam
cheios de reverência e paixão
o miraculoso parto, sempre haverá
crianças, que nem se importam com isso,
patinando no lago à beira do bosque;
eles nunca esqueceram
que mesmo o martírio mais tremendo
acaba acontecendo em um recanto, algum lugar encardido
onde os cachorros vão levando
suas vidinhas de cachorros, e o cavalo do torturador
esfrega o traseiro inocente no tronco de uma árvore.
 
No “Ícaro” de Brueghel, por exemplo: como todas as coisas
dão as costas ao desastre, e o lavrador
pode até ter escutado o mergulho, o grito impotente,
mas para ele era um acidente sem importância; o sol
brilhou nas pernas brancas que sumiam na água
esverdeada; e aquele navio de luxo deve ter avistado
algo incrível, um rapaz caindo do céu,
mas estava indo para outro lugar
e continuou velejando em paz.
 
 
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Musee des Beaux Arts
W. H. Auden
 
About suffering they were never wrong,
The old Masters: how well they understood
Its human position: how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.
 
In Breughel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water, and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.
 



(W. H. Auden)