sexta-feira, 25 de setembro de 2020

4624) As listas de Raymond Chandler (25.9.2020)




Eu sempre aconselho a quem escreve ficção o uso de cadernos (ou arquivos, tanto faz) com listas de detalhes que podem ser convocados sempre que necessário.
 
Nome de personagem, por exemplo. É uma coisa que até hoje me dá problema. Quando estou fazendo o resumo de um conto, eu saio tacando X ou Y, ou A ou B, o tempo todo – para não perder tempo pensando. O resumo fica mais ou menos assim:
 
“Plot: um cara, X, pega um voo e já dentro do avião escuta uma conversa de dois caras em assentos próximos, A e B. Essa conversa é sobre um crime planejado, e desperta a curiosidade dele. Ele resolve seguir os dois quando descerem. Digamos que descem em Congonhas. Lá, ele percebe que A e B se separam. Segue um deles, A, e a certa altura das peripécias descobre que o perigoso era o outro, B.”
 
Quando você tem uma idéia ainda tão nebulosa, nome da pessoa é o que menos importa. Nome, descrição física, idade, profissão, até mesmo o sexo do personagem, tudo isso pode ser definido depois. Nesse momento inicial, são as funções dramáticas que importam.
 
Na hora de escrever de verdade, aí você tem que definir: X pode ser uma mulher, A pode ser um padre, B pode ser um turista chinês... É outro momento, são outras decisões.
 
Somente quando a gente entra na escrita propriamente dita o nome precisa ter um peso sonoro, um peso de significado.
 
Ao se acomodar na poltrona junto à janela e colocar o cinto, ela não deu muita atenção aos dois passageiros que sentaram ao seu lado. Ela sempre ia na janela; sempre fingia dormir, para que ninguém se animasse a puxar conversa, fazer perguntas. Tanto é assim que chegou mesmo a cochilar, acordou de leve na decolagem, cochilou de novo. A certa altura despertou e de olhos fechados ouviu o murmúrio de vozes masculinas ao seu lado, vozes contidas, tensas, sussurrantes. E o que diziam a despertou por completo em dois segundos.
 
A curiosidade era o grande problema na vida de...
 
É aqui que o carro estanca e o motor morre. Como vai se chamar minha protagonista? Maria? Josefa? Sandra? Karen? Juliette? Bernadete? Wyslawa? Tábata Cylene?
 
Cada nome desses tem ressonâncias inconscientes. Nome de personagem precisa ser bem pensado, e muitas histórias minhas (e alheias, estou seguro) morrem na primeira esquina porque a gente parou pra pensar num nome, acendeu um cigarro, resolveu passear nas redes sociais em busca de inspiração, e aquele avião está gastando gasolina mental e não pousou até hoje.



Raymond Chandler era um cara metódico, tinha uma certa cabeça de escriturário, o que lhe valeu a salvação em muitas fases da vida. The Notebooks of Raymond Chandler (New York: Ecco Press, 1976) é um livro que transcreve parte do seu material de anotações que se salvou. Após a morte da esposa Cissy em 1954, Chandler entrou em depressão, passou a beber desbragadamente, e destruiu a maior parte dos seus papéis pessoais, inclusive correspondência.
 
Apenas dois dos seus numerosos cadernos de anotações sobreviveram, e foram organizados por seu biógrafo Frank MacShane nesse livro citado acima.
 
Chandler fazia listas dos seus famosos símiles ou comparações, e os inseria na narrativa quando eram necessários:
 
Silencioso como um dedo entrando numa luva.
Tão sistemático quanto uma madame contando o apurado.
Seu rosto era longo o bastante para dar duas voltas em torno do pescoço.
Tinha tanto sex-appeal quanto uma tartaruga.
Limpo como o pescoço de um anjo.
Um rosto que parecia um pulmão murcho.
 
Ele anotava gírias e expressões de grupos específicos, o que é sempre muito útil, porque nem sempre se tem a chance de convivência contínua com essas pessoas.
 
Gírias da prisão de San Quentin:
 
Beak = juiz
Buried = mantido incomunicável
Broom = desaparecer às pressas
Bonarue (francês) = bom
Box = cofre, fonógrafo
Bank = injeção de droga
Back door parole = morrer na prisão
 
Gírias de Hollywood:
 
Baggage-smasher = pessoa desajeitada
Blinker = câmera
Duchess = garota com grana
Fluff = baby-doll
Footfever = pressa
Garbo = granfino
 
Gírias de marginais:
 
Chicago lighting = tiroteio
Dip the bill = tomar um drinque
Lip = advogado
Kick the joint = entrar na marra
Under glass = na prisão


Há duas páginas somente de anotações sobre jogo de dados, o modo de jogar, de contar pontos, as probabilidades, etc. Há alguns textos longos também, contos que só foram publicados postumamente, como “English Summer: a Gothic Romance”, uma história de amor, ou “A Routine To Shock The Neighbors”, um divertido diálogo de um casal durante uma longa relação sexual.
 
Chandler listava possíveis títulos:
 
The Man with the Shredded Year
All Guns Are Loaded
Choice of Dessert
Uncle Watson Wants To Think
Twenty Minutes’ Sleep
They Only Murdered Him Once
Island in the Sky (para uma coletânea de contos fantásticos que ele nunca chegou a preparar)
Deceased When Last Seen
The Black-Eyed Blonde – usado por Benjamin Black (pseudônimo de John Banville) para uma aventura póstuma de Philip Marlowe
 
Já vi autores profissionais de longas trilogias épicas explicando que é melhor criar os nomes em primeiro lugar, e depois ir extraindo de cada um deles as conotações.
 
É bom ter listas com nomes e sobrenomes de homens, de mulheres, de famílias, de castelos, etc.  Num romance contemporâneo, nomes de lojas, de colégios, de jornais, de tudo que for aparecer na narrativa e que é melhor atribuir a uma entidade fictícia.
 
Chandler escrevia e arquivava itens como “Moda masculina”, “Descrições de mulher” e assim por diante. Lendo os romances, é possível adivinhar quando esse itens entram, porque são parágrafos inteiros, escritos no mesmo tom, no mesmo estilo dos anteriores – a escrita de Chandler, embora idiossincrática, extremamente pessoal, é bastante homogênea – mas a gente percebe que ele já tinha aquele personagem ou aquele ambiente visualizado e posto no papel, antes mesmo de começar a escrever aquela cena.
 
Isso é obrigatório? Isso é proibido? De jeito nenhum. É a técnica de cada um, o processo criativo de cada um. Já vi escritores afirmarem que se o texto não é totalmente espontâneo, não é totalmente improvisado “no calor da batalha”, ou seja, no enfrentamento com o teclado, então não presta. Boa sorte para cada um.