quinta-feira, 18 de julho de 2024

5083) As Bibliotecas Fantásticas (18.7.2024)



 
Alguém já descreveu a tendência pós-moderna da literatura como um Labirinto de Espelhos, para se referir à frondosa ramagem fractal das histórias que têm como tema outras histórias, os livros a respeito de livros, os escritores que têm escritores como personagens, e assim por diante. 
 
Nesse contexto de verdadeira bibliomania, ao qual não me considero imune, estão as Bibliotecas como o símbolo maior desse universo feito apenas de coisas que deram certo. Por pior que seja um livro, o simples fato de ter sido publicado e depois conservado numa biblioteca já lhe dá uma vantagem incalculável sobre todas as obras geniais que nunca chegaram ao papel. 
 
E assim como os homens imaginam livros, podem imaginar bibliotecas, como faz José Roberto Torero nesse precioso livrinho de cabeceira, As Bibliotecas Fantásticas (São Paulo: Padaria de Textos, 2023). 
 
É um livro de invenções – tal como as Cidades Invisíveis (1972) de Ítalo Calvino, que em vez de imaginar bibliotecas imagina cidades, cidades improváveis, cidades impossíveis, cidades cuja realidade é apenas a realidade conceitual e estética de um desenho, de uma pintura. 



(ilustração: Eloar Guazzelli)


Desenhos estão no livro de Torero (ilustrado por Eloar Guazelli), reforçando o caráter lúdico e imaginativo dessas coleções de livros, cada uma delas obedecendo a uma diferente contrainte, uma diferente restrição, uma característica que a define e limita, mas limitando-a dá-lhe a possibilidade de ser infinita dentro do âmbito do seu conceito. 
 
Como por exemplo a biblioteca de Mjeiak, a biblioteca soterrada sob a areia de um deserto; a busca de um livro depende totalmente da memória do bibliotecário, que aconselha cavar o chão “à esquerda da terceira duna”, ou algo parecido. 
 
Ou a biblioteca de Tuzla, uma cidade afligida pela superpopulação e pela carência de empregos, e que resolveu colocar pessoas servindo de prateleiras para os livros. Quando alguém percorre a biblioteca, as “estantes” interferem o tempo todo, fazendo propaganda dos livros que suportam, para que sejam levados para leitura. 
 
Ou a biblioteca de Komok, onde os livros estragados não são simplesmente jogados fora; as páginas em bom estado são arrancadas e coladas no interior de outros livros. 
 
Assim, se você está lendo o Gênesis, pode se deparar com uma página sobre o Big Bang. Se estiver folheando um adocicado romance, pode tropeçar numa página do Kama Sutra. Se está lendo um tratado de física nuclear, uma poesia sobre Chernobyl; no meio de um ensaio sobre política, a biografia de um torturador; e assim vai. (p. 43) 

 




(ilustração: Eloar Guazzelli) 

 
O perfil de cada biblioteca tem muitas vezes algo de metáfora da escrita, da criação literária, ou do próprio ato da leitura. Pode ser também uma alusão ao mundo exterior à escrita, como é o caso da Biblioteca Tríplice de Jerusalém, dividida em três setores independentes – um apenas com Bíblias, outro com Torás, outro com Corões. A convivência, num só edifício, parecia a princípio acenar com a possibilidade de integração pacífica. Mas... 
 
Certa vez, um desses bibliotecários sugeriu que houvesse uma única entrada e se misturassem as três coleções. No dia seguinte foi encontrado com três adagas nas costas. (p. 89) 
 
O uso da biblioteca como alegoria do mundo, como um microcosmo que reflete o mundo, foi proposta de forma definitiva por Jorge Luís Borges, que em “A Biblioteca de Babel” (1941) a usou numa fábula perversa sobre linguagem, probabilidades, estatística, ordem e caos. A idéia de uma biblioteca contendo todas as combinações possíveis de todas as letras do alfabeto assusta pela sua enormidade, mas assusta ainda mais pelas suas “léguas e léguas de cacofonias insensatas”. Como se nos dissesse que qualquer arremedo de ordem e de significado que ocorre no Universo não surge por desígnio divino nem por imposição das leis naturais, e sim por mero acaso, mera fatalidade estatística. 
 
Outra biblioteca que rapidamente adquiriu o status de símbolo em tempos recentes foi a do mosteiro cristão de O Nome da Rosa (Umberto Eco, 1980), um gigantesco repositório das ciências, da filosofia e de outras disciplinas, tesouro ciumentamente preservado pela Igreja e que nos episódios finais é consumido pelo fogo. 
 
Mesmo ambientada na Idade Média, a narrativa de Umberto Eco é um comentário ácido sobre a cultura universitária contemporânea. Em seu Viagens na Irrealidade Cotidiana (Ed. Record, 1984, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade), ele faz uma divertida comparação entre o isolamento físico e mental dos mosteiros da Idade Média e os nossos modernos campus universitários, ambos repletos de sabedoria e ambos inacessíveis a uma população despreparada e desinformada. 
 
O livro de Torero tem a vantagem de, em vez de propor uma gigantesca metáfora, propõe dezenas de metáforas pequenas, localizadas, algumas totalmente absurdas ou bizarras, outras que às vezes acabam soando, mesmo em sua possibilidade fantástica, como uma boa idéia. 



(ilustração: Eloar Guazzelli)


É o caso da leitura interrompida que ele indiretamente aconselha através da Pequena Biblioteca do Farol de Tourlitis, onde a luz giratória da torre é a única disponível para a leitura do visitante. 
 
Assim, ele lê um tanto e logo vem a escuridão, quando ele aproveita para pensar no que leu, relembrar alguma expressão mais saborosa, imaginar as intenções do autor e repetir as frases dos personagens. Na volta da luz, ele lê mais um pouco e logo volta para o breu, quando não lê, mas, de certa forma, relê.  (p. 135)
 
Pergaminhos, papiros, cascas de árvores... a substância física das bibliotecas geralmente é a mesma, mas ele também pervê inovações capazes de abrir terrenos insuspeitados da leitura. Como na Biblioteca do Meio do Caminho, especializada em livros que ainda estão sendo escritos, onde  
 
...por meio de uma avançada tecnologia tipográfica (ou, talvez, de uma magia antiquíssima) os leitores podem ver as letras  surgindo nas folhas assim que os autores as escrevem. E também podem vê-las sendo apagadas, riscadas, corrigidas.  (p. 78) 

No prólogo ao livro, diz Alberto Manguel:
 
Portanto, não deve ser uma surpresa que uma biblioteca imaginária faça o papel de espelho em constante mutação, refletindo o que é vivido por nós como fato ou sonho, como pensamento ou como realização material. As palavras nos permitem nomear o que é tangível e o que não é, a girafa e a mantícora, e dar vida ao que caprichosamente sonhamos em nossa imaginação. (p. 6-7) 
 
Toda biblioteca é fantástica, quando mais não seja pela sua heterogeneidade, seu acúmulo de pensamentos que se desconhecem uns aos outros, sua preservação de idéias pelas quais ninguém pergunta ou responde, pela latência de grandes verdades à espera de seu redescobrimento, pela multiplicação de versões de tempos que já se foram, pela garantia de que faz parte da essência humana esse diálogo permanente com o passado. 
 
E ergamos um brinde às bibliotecas de empréstimo, às bibliotecas ambulantes, às bibliotecas de circulação. Elas nos ajudam a pular as fichas dos catálogos ou os ficheiros eletrônicos, nos deixam manusear os livros propriamente ditos, devorá-los com os olhos, estabelecer com eles aquela primeira relação de paixão e curiosidade sem a qual a leitura vale muito pouco, e depois levá-los para passar uns dias conosco. 
 
Porque (é o que nos ensina o triste exemplo da Biblioteca Inexpugnável de Ulan-Kalai),
 
...se os livros não são emprestáveis, a biblioteca é imprestável. (p. 150)