segunda-feira, 15 de junho de 2015

3841) O guitarrista Ivinho (16.6.2015)




A morte anda solta, ceifando gente da música popular, e nos últimos dias, por enquanto, lá se foram o grande jazzista Ornette Coleman, o poeta do Clube da Esquina, Fernando Brant, e o guitarrista Ivinho, do Recife.  Falarei um pouco, então, sobre o menos famoso dos três.



Ivinho surgiu para nós-o-público ao tocar sozinho no Festival de Montreux, na Suíça, no seu velho violão de 12 cordas com o tampo quebrado, produzindo longos improvisos como as 23 minutos estonteantes de “Partida dos Lobos” (aqui: http://tinyurl.com/odgrtuj) onde se sucedem ponteados nordestinos, frevo, temas de flamenco, riffs roqueiros, o escambau. (Saiu depois em disco; está em mil lugares na web.) Ele se tornou um dos músicos geniais que acabaram meio que pirando, como Lanny Gordin (o guitarra-chefe do Tropicalismo) e Arnaldo Baptista, dos Mutantes, para não falar em Brian Jones (Rolling Stones), Syd Barrett (Pink Floyd) e mil outros que chegaram perto demais do fogo que os aquecia.



Fez parte da geração psicodélica da música recifolindense, que incluía bandas como Ave Sangria e Batalha Cerrada, e malucos geniais como Lula Cortes, Lailson, Marconi Notaro, Marco Polo, Flaviola e tantos outros. O espesso caldo cultural de onde emergiram nomes como Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Robertinho do Recife. Todos reproduziam o clima maluco-beleza da época e cada um tinha um perfil único.


Os improvisos de Ivinho mostram como a arte de improvisar música é dependente da arte de estudar música, da arte de dominar o instrumento, aquilo que chamamos de “praticar escalas” ou “exercícios de digitação”, aqueles sons aleatórios que não têm propósito musical mas visam a tornar os dedos mais flexíveis, mais precisos, mais rápidos. Ninguém pagaria ingresso para ver um saxofonista ou um guitarrista praticando escalas, mas todo mundo se deslumbra quando vê um músico de talento utilizando esses trajetos-um-milhão-de-vezes-percorridos para produzir algo que está um degrau acima em termos de criação, colagens de melodias caídas-do-céu, tendo o palco como laboratório e a platéia como a turma de estudantes de medicina que vê o professor deitar um Frankenstein na pedra e extrair dali uma Isadora Duncan. Os dedos de Ivinho recorriam à memória pessoal e ao inconsciente musical coletivo, e ouvindo-o tocar (o primeiro brasileiro a tocar em Montreux, reza a lenda) a gente percebe que ele está fazendo, no que era então o palco mais disputado da Europa, o mesmo que fazia na sala de casa e no terraço dos amigos, mergulhando nas harmonias, mergulhando nas cadeias melódicas, mergulhando na bricolagem de ritmos, um mergulho tão profundo que só acabou agora.