quinta-feira, 21 de junho de 2018

4359) Oito ilusões (21.6.2018)




(ilustração: Ahnet Richard)

1
Betinho Vilaverde, 21 anos, estudante, menino-prodígio musical, meio nerd, meio tímido, na noite do seu aniversário de maioridade foi convidado por um grupo de colegas do curso de Direito para um jantar comemorativo no melhor restaurante da cidade, onde depois de vinhos e discursos elogiosos ele, ainda eufórico diante daquela primeira incursão na vida noturna, acabou se vendo, madrugada adentro, num terraço discreto onde batia o luar, numa mesa com quatro casais atracados aos beijos enquanto ele, de violão em punho, desfiava seu repertório, desde “Samba em Prelúdio” até “Here, there and everywhere”.

2
Lindaura Dias da Costa, 41 anos, dona de casa em Uberlândia (MG), tem uma tia idosa que mora em Belo Horizonte numa casa com dez cachorros e quatro criadas. A tia vive de uma pensão de montepio que data da Era Vargas, e mal se mantém, mas Lindaura crê firmemente que quando Dona Eulália (pois este é o seu nome) passar desta para melhor deixará para ela, Lindaura, a casa, a mobília, e todo o dinheiro que hipoteticamente está entesourado em algum colchão ou cofre-forte. Esse dinheiro inexiste; a velha mal sustenta o próprio canil, mas esse sonho dá a Lindaura forças para persistir na batalha, ainda mais num tempo como o de hoje.

3
Valtemir Ferreira dos Santos, 28 anos, auxiliar de escritório, voltava para casa num domingo à noite, no Grajaú, quando ao pegar uma rua lateral viu dois caras empurrando um carro enguiçado, ia até passar direto, mas um deles disse, “ajuda aí, campeão!”, e ele que estava há dois meses numa academia, julgou ser este o momento adequado para demonstrar seus recentes superpoderes, e aplicou os bíceps à traseira do veículo, para daí a menos de um minuto ver uma viatura da PM dobrar a esquina cantando pneu, parar junto com uma freiada e com o grito “todo mundo encostado no muro!” e ele abrir seu sorriso mais amarelo para dizer: “olha, eu tava só empurrando, viu?”.

4
José Carlos Belarmino Padilha, 61 anos, dono da cadeia de lojas Girassol, presidente da Associação Comercial do município, um belo dia (uma bela noite), numa mesa discreta na boate Feelings, tomou coragem depois do quinto uísque e segredou, à beldade de bustiê, minissaia e botinhas que pousara na cadeira ao lado, alguma ânsia secreta que lhe palpitava no peito desde a adolescência, e experimentou a epifania de vê-la afastar a orelha do seu bigode grisalho, sorrir, passar de leve pelo rosto dele as unhas cobertas de esmalte fúcsia, e dizer com sorriso maternal: “Não tem problema, bem, eu também adoro.”

5
Vivi da Cunha Silveira, 9 anos, estudante, recebeu da mãe uma nota de 50 reais e a incumbência de trazer da farmácia algo anotado num papel, mas logo depois da esquina viu um belo rapaz de olhos azuis chorando e aproximou-se compadecida, sabendo então que era um príncipe europeu cujo trono fora invadido por um cruel país beligerante, e agora estava precisando de dinheiro para comprar a passagem de ônibus de volta à capital onde tentaria recuperar a Presidência da República, uma história que a deixou de lágrimas nos olhos e a mãe de olhos fuzilantes e mãos nos quadris dizendo: “diga logo que perdeu, você acha mesmo que eu sou assim tão besta?!”.

6
Paulo Roberto Barbosa Lemos, 61 anos, professor no curso de Letras da USP, certa vez fez uma viagem na ponte aérea SP-Rio ao lado do escritor Rubem Fonseca, tendo os dois conversado sobre assuntos gerais, entre eles o uso de armas brancas para a prática de assassinatos; um ano depois deu-se a publicação do romance “A Grande Arte”, cuja leitura proporcionou a Paulo o deslumbramento revelatório, que dura até hoje, de ter dado ao grande ficcionista o tema de sua obra-prima, mal sabendo ele que na época daquele voo o livro já estava praticamente concluído.

7
Maura dos Santos Villarim, 61 anos, professora aposentada em Blumenau, grande leitora de Agatha Christie e de Jane Austen, escreve há décadas um volumoso diário íntimo com reflexões e revelações que jamais teria coragem de publicar em vida, mas imagina que após sua morte os filhos descobrirão tudo aquilo, maravilhar-se-ão, e providenciarão o lançamento que irá catapultar para a fama póstuma a tímida professora; mal sabe ela que quando morrer, em 6 de novembro de 2027, os herdeiros jogarão aquela tralha toda na lixeira, e a Natureza se encarregará do resto.

8
Suyung N-Kat-48, habitante de Bgront-bg, planeta arquipélago no sistema das Plêiades, passou mais de doze wytungs à espera de que aparecesse algum randomjob capaz de assegurar sua sobrevivência e a de quatro garynths, dois markumbellis, três e meio sempawqs e uma vrimbuliana que eram seus dependentes; coube-lhe, contudo, a dúbia honra de ser o único de sua categoria numérica a morrer de fome nos últimos trinta e três foltaimes desde a Revolução do Prego Envenenado.