sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

3398) "Mais um dia de vida - Angola 1975" (17.1.2014)



Pelas praças, ruas e avenidas da capital, principalmente as que convergem para o aeroporto ou para o cais, por entre as casas e edifícios de pedra, começa a surgir uma outra cidade de madeira, uma cidade de caixotes, de contêiners, de todo tipo de embalagem sólida onde os milhares de fugitivos possam embalar e amontoar seus televisores, seus sofás, candelabros, roupas de cama e mesa, porcelanas, flores artificiais. É uma cidade de madeira que brota em poucas semanas, e que vai fazer-se ao mar para sempre. Mais um dia de vida – Angola 1975 (Lisboa: Tinta da China, 2013, tradução de Ana Saldanha), de Ryszard Kapuscinski, é a reportagem dos últimos três meses da guerra civil em Angola, entre a evacuação catastrófica dos portugueses e dos angolanos brancos, e as batalhas finais entre os exércitos do MPLA, da FNLA e da UNITA, que lutavam pelo poder.

Kapuscinski, correspondente de guerra polonês, atuando em vários continentes, já foi acusado de falsear os fatos, mas não de escrever livros insípidos. Ele mostra a crueza da guerra com descrições cruas mas imperturbáveis, mesmo quando afirma que se perturbou quando aquilo aconteceu. Um repórter com estilo suficiente para transformar aquilo num thriller de campo de batalha e ao mesmo tempo no olho investigativo de um polonês sobre a sociedade, a mente e os valores dos angolanos, tanto brancos quanto negros.

Luanda é evacuada, as duas ofensivas convergem para a capital que o MPLA tenta manter sob seu domínio. FNLA ao norte e UNITA ao sul, com tropas sul-africanas, convergem para a capital, e Kapuscinski fica saltando pelo país de jipe, de avião, de comboio, tentando ver com os próprios olhos a situação no front Sul, e voltar a Luanda para transmiti-la por telex. E a cada passo a terrível gratuidade da morte, a morte aleatória, a morte por coincidência, a morte individual desnecessária a qualquer vitória coletiva.

Um cinema drive-in reexibe sem parar Emmanuelle, a única cópia que ficou em suas mãos. Sem água, sem luz, sem lixeiros nem bombeiros, a cidade arde e apodrece. Ele diz que “embora os dois mundos, o conforto e a pobreza, se encontrem a dois passos um do outro e ninguém esteja a guardar o bairro rico dos europeus, os negros das cubatas de adobe não tentaram mudar-se para lá. A idéia não lhes passou pela cabeça”. Depois, Kapuscinski, na estrada, pergunta a Diógenes, um líder, por que eles andavam em caminhões tão precários quando as cidades estavam cheias de veículos em bom estado, deixados pelos portugueses. O outro responde que esses veículos eram propriedade dos portugueses. Não poderiam tocá-los. E de fato não tocam. Guerreiam com o que têm.