quarta-feira, 10 de junho de 2020

4588) A Chegada ("Arrival") (10.6.2020)






Fiquei um tempo muito longo sem querer ver este filme de Denis Villeneuve, porque gosto tanto do conto original (“Story of Your Life”, Ted Chiang, 1998) que não queria ter raiva.

Acabei não tendo tanta raiva assim, porque é um filme com beleza e eficiência plástica (fotografia, música, design), os atores dão conta, detalhes importantes do conto são desenvolvidos com habilidade.

Se alguém não assistiu ainda, se prepare porque vou revelar segredos da trama. Vou contar o futuro. O que está de acordo com o espírito desta história, que mostra uma mulher contando o próprio futuro a uma pessoa que ainda não nasceu.

Um dos segredos da vida é o fato de que não conhecemos o futuro por antecipação. Uma parte considerável da nossa vida é voltada para compensar essa deficiência, ou até para mostrar que ela é falaciosa.

Daí que fazemos planos, fazemos promessas, assumimos compromissos, organizamos cronogramas, tocamos projetos a longo prazo, administramos nossos próximos dias, meses, anos – tudo como se o futuro fosse apenas uma extensão assegurada do presente.



Temos fé na continuidade do tempo e dos fenômenos físicos e sociais, por mais que a gente saiba que “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, que a continuidade dos fatos faz ziguezagues o tempo inteiro. Mas sem essa fé na repetição cíclica do tempo (que absorvemos ao contemplar a natureza), nunca sairíamos da estaca zero.

Como dizia o poeta Bandeira Sobrinho:

Tenho fé em que o Sol
amanhã nasce no Leste;
vai cruzar o dia inteiro
a abóbada celeste
e, como sempre tem feito,
vai se pôr no lado Oeste.

A Chegada  se constrói em cima desse paradoxo, do fato de que podemos e não-podemos prever o futuro.

O filme de Denis Villeneuve tem aquelas qualidades que citei acima, mas na verdade só decola no terço final. Os primeiros dois terços são uma versão domesticada de Independence Day e tantos outros filmes de invasão repentina e inexplicável. No terço final, aí decola a narrativa de Ted Chiang, o problema linguístico da comunicação com os alienígenas, e o fato de que ao usar a linguagem deles a nossa percepção do Tempo se altera.

Os dois primeiros terços do filme parecem muito com qualquer filme norte-americano sobre militares pressionando cientistas por respostas. Cientistas praticamente sequestrados e trancafiados num bunker ou num acampamento, mal comendo, mal dormindo, mal pensando, correndo contra o relógio. (Não é um defeito do filme. Digamos que esta parte é incomodamente realista, apenas.)

Essa parte não tem nada a ver com o conto de Ted Chiang, a não ser a premissa básica. Primeiro, naves alienígenas se postam imóveis e enigmáticas em vários pontos da Terra. É a grande sacada de Arthur C. Clarke em O Fim da Infância (1953).

O terço final do filme é dedicado a duas coisas: o começo da comunicação direta com os alienígenas, e a transformação da consciência da cientista, Dra. Banks (Amy Adams) que passa a pensar como os alienígenas pensam: num tempo não-linear.

O cinema, essa máquina maravilhosa de subestimar inteligências, omitiu neste filme o exemplo mais didático que Ted Chiang apresentou no seu conto para ilustrar a linguagem dos “Heptápodes”: o da trajetória da luz refratada.



Chiang explica isto como o teorema de Pierre Fermat sobre a propagação da luz. A velocidade da luz no vácuo é uma constante do universo. É um limite (nada pode se mover mais rápido do que ela) e ao mesmo tempo é invariável. Um raio de luz não acelera ou retarda (a não ser quando sai do vácuo e começa a esbarrar em partículas de alguma coisa).

Fermat mostrou que quando a luz entra na água, que é um meio mais denso que o ar, ela muda de direção: é o exemplo da vareta que parece estar “quebrada”. Um índio acerta a flecha no peixe disparando “meio de banda”, porque sabe que a imagem do peixe é ilusória, o peixe não está fisicamente ali onde a imagem parece mostrá-lo.



Fermat observou que a luz ao passar do ar para a água muda seu trajeto como se já soubesse onde ele vai terminar. Na ilustração abaixo, a linha de “A” para “B” representa o trajeto real de um raio de luz, levando em conta essa diferença de densidades; as linhas pontilhadas representam trajetos mais longos, que a luz “descarta”.


E ela os descarta como se já soubesse, ao sair do ponto “A”, que vai tocar lá na frente o ponto “B”.

É essa a comparação que os cientistas fazem com a linguagem dos Heptápodes, os alienígenas do filme. A frase deles não é linear como a nossa, uma linha sequencial que vai se construindo palavra-por-palavra, começo-meio-fim, passado-presente-futuro. Ela brota inteira. (No filme, isto é recriado elegantemente com os círculos que os Heptápodes produzem: a “frase” se forma no ar, numa lenta explosão de tinta, toda ao mesmo tempo.)


Como diz a dra. Banks no conto:

Isto quer dizer que o heptápode tem que saber como será a frase completa antes de escrever o primeiro traço.

Não é tão estranho assim. A língua alemã tem o costume de usar os verbos no final, e a gente tem que esperar a frase inteira para entender de fato o que foi dito. Um general alemão, neste filme, teria dito algo como: “Dra. Banks, amanhã a senhora em missão científica por ordem do Governo devido ao aparecimento de naves alienígenas viajará”.  

O humorista Mark Twain tinha horror à língua alemã, e dizia que se um norte-americano entrasse no Atlântico, a pé, pronunciando uma frase em alemão, o verbo só apareceria quando ele emergisse na costa ocidental da Europa.

Aconselho a leitura do conto de Ted Chiang (do livro todo, aliás: História da Sua Vida e Outros Contos, Ed. Intrínseca, Rio, trad. Edmundo Barreiros), onde tudo isso vem mais esmiuçado.



Aconselho também este artigo (em inglês) sobre o aspecto científico do conto e do livro, de Israel A. C. Noletto (IFPI) e Sebastião Alves Teixeira Lopes (UFPI):


O aprendizado e o uso da língua dos Heptápodes faz com que a Dra. Banks, que é a narradora do conto, passe a enxergar passado, presente e futuro como uma coisa só – o que o filme reproduz com competência, através de falsos flash-backs de sua vida com a filha, que morreu na adolescência – e que, só ficamos sabendo no final, não tinha nascido ainda quando ela começou a entender Heptápode.

Perguntaram uma vez a Jean-Luc Godard, no auge dos seus filmes fragmentados e descontínuos da Nouvelle Vague: “Por que o senhor não faz um filme com começo, meio e fim?”, e ele respondeu: “Posso fazer, desde que não seja nessa ordem”. Foi isso que Ted Chiang e Denis Villeneuve fizeram.