sábado, 19 de julho de 2014

3555) João Ubaldo (19.7.2014)



O falecimento de João Ubaldo Ribeiro entristeceu todo mundo que gosta de literatura, inclusive eu, que conheço tão pouco sua obra. Nunca li Viva o Povo Brasileiro, por exemplo, que dizem ser o seu “grande livro”, o que não duvido, pelos longos trechos que cheguei a conhecer aqui e ali. Li o Sargento Getúlio nos anos 1970 e achei extraordinário. Li uma porção de contos, e depois me habituei a ler suas crônicas na imprensa. Li em parte seu romance de ficção científica, O Sorriso do Lagarto, de que não gostei muito, mas merece ser reavaliado.  Mas não posso dizer que conhecia bem a obra dele. Conhecia o estilo, que era exuberante, aos borbotões, baianamente derramado, cheio de malícia, de irreverências divertidas, de uma ironia com os poderosos bem próxima à de Jorge Amado. Como este, ao que parece, tinha o hábito de citar pessoas reais nos seus romances, recurso que (já me disseram) é receita infalível de sucesso, pois cada cidadão citado torna-se um entusiasta divulgador do livro.

Ubaldo traduziu, ele próprio, seu romance principal para o inglês, com o título An Invincible Memory – uma façanha espantosa. Vi-o dizer, numa entrevista, que foi uma doidice e que jamais faria aquilo de novo. Talvez tenha preferido isto por não saber se um tradutor estrangeiro seria capaz de encontrar equivalentes à altura para seu vastíssimo vocabulário de termos, entonações, sintaxes e prosódias populares.  Ele misturava esse português inculto e plebeu ao português castiço.  Gente da geração dele (e da minha) assimilou os clássicos lusitanos no colégio, viu depois que não tinha nada a ver com a língua falada na rua pelo povo de verdade, mas resolveu manter como uma língua paralela. No Brasil a gente tem a liberdade de usar “xibiu” e “circunlóquio” na mesma frase! Uma espécie de miscigenação linguística, um contubérnio adúltero entre a retórica do invasor e o fraseado do invadido.

Ubaldo era um sujeito sem papas na língua (acho que ouvindo esta expressão ele daria uma risada grossa e faria uma piada eclesiástica qualquer). Queixou-se uma vez de que entregou à editora o primeiro rascunho de um livro, pra dar uma idéia do que seria, viajou para descansar, com idéia de fazer revisão do texto na volta, e ao chegar encontrou o livro nas livrarias, com o texto-bravio “ipsis litteris”. Brigou? Não, deu uma gargalhada e ficou mangando.

Minha última leitura dele foi A Casa dos Budas Ditosos, um livro-de-safadeza bom danado, muito correspondente às fotos do autor que na manhã de hoje brotam por toda a imprensa eletrônica, uma cara sorridente, maliciosa, regozijada, com um riso quente e uma voz de quem já foi e já voltou.