segunda-feira, 27 de novembro de 2017

4290) Traduzir e retraduzir (27.11.2017)



No artigo cujo link vai aqui embaixo, Rachel Cooke medita sobre os caminhos da tradução literária. Ela começa se referindo ao romance de Françoise Sagan Bom dia, tristeza (“Bonjour, tristesse”), grande sucesso dos anos 1950.


Meus comentários neste artigo vão ficar engraçados porque ela questiona duas traduções diferentes, do francês para o inglês; e eu aqui vou retraduzir estas para o português, mas procurando ficar o mais próximo possível da forma de cada uma.

Rachel Cooke diz que amou o romance de F. Sagan desde a adolescência, e desde que que leu pela primeira vez a famosa frase de abertura do livro:

« Sur ce sentiment inconnu dont l'ennui, la douceur m'obsèdent, j'hésite à apposer le nom, le beau nom grave de tristesse. »

Uma frase que eu poderia, numa primeira tentativa, traduzir aproximadamente, procurando manter inclusive sua estrutura :

Sobre este sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me obcecam, eu hesito em apor o nome, o belo e grave nome de tristeza.

Meio desajeitadão, até porque “obcecam” é uma palavra meio opaca, a gente tem que pensar um segundo a mais para poder entender, e “apor” é um verbo que eu evito mais do que beco escuro de madrugada. Uma solução parcial destes dois problemas poderia ser, numa segunda tentativa:

Neste sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me inquietam, eu hesito em colocar o nome, o belo e grave nome de tristeza.

Ficou mais legível, mas resta a questão de fidelidade. Em todo caso, como diz um tradutor amigo meu sem papas na língua, “de graça, só vou até aí.”

Mas preciso lembrar que nossa amiga Rachel leu o livro em inglês. A tradução que ela diz que leu na adolescência foi a de Irene Ash, que abre o livro desta forma:

“A strange melancholy pervades me to which I hesitate to give the grave and beautiful name of sadness”

Uma estranha melancolia se apodera de mim, à qual eu hesito em dar o nome grave e belo de tristeza.

Traduzir essas palavrinhas que envolvem sentimentos é sempre uma coisa traiçoeira, porque nem sempre palavras parecidas, em dois idiomas, correspondem a todas as nuances do que a gente descreve como o mesmo sentimento.

Lembro-me de Gregory Rabassa, o tradutor norte-americano de Cien Años de Soledad de Garcia Márquez, explicando por que o “soledad” em castelhano virou “solitude” em inglês, e não “loneliness”.

No caso da frasezinha de Sagan, “melancolia” e “tristeza” já são duas esquinas onde é preciso parar e observar o trânsito com cuidado; mas é o tal do “pervades me” que me deixa encucado.

Que eu saiba, não temos em português (ou pelo menos no português do meu Dicionário Houaiss) o verbo “pervadir” e o adjetivo “pervasivo”; temos invadir e invasivo, que não são a mesma coisa. Invasivo é um exército ou uma cirurgia; pervasivo é um perfume ou uma lembrança.

Traduzi “pervades me” por “se apodera de mim”, mas isso contamina o texto de uma conotação diferente. A tristeza, no original algo indefinível que aos poucos impregna uma mente ou uma sensibilidade, passa a ser algo que “se apodera”, conquista, arrebata, adquire poder... Não é a mesma coisa, em termos exigentemente tradutórios.

Mas olhe... nem é esse o problema. O problema, para Rachel, é quando ela, querendo reconstituir seus sentimentos de juventude, pegou de novo o livro de Sagan – só que agora em outra tradução inglesa, a de Heather Lloyd. E descobriu que este novo livro começava assim:

This strange new feeling of mine, obsessing me by its sweet languor, is such that I am reluctant to dignify it with the fine, solemn name of ‘sadness’.

Mais uma vez tento arremedar passo a passo a ordem sintática do original, o que nos dá mais ou menos:

Este meu novo e estranho sentimento, que me obceca com sua doce languidez, é tal que me deixa relutante em dignificá-lo com o nome delicado e solene de tristeza.

Rachel Cooke recuou diante dessa frase como se o livro a tivesse mordido, e comenta: “Ela soava aos meus ouvidos como se tivesse sido escrita por um robô”.

A comparação entre essas opções – no contexto de uma simples frase, embora uma frase de abertura, uma frase com altas reponsabilidades – mostra: 1) a dificuldade de encontrar um equivalente exato ao que foi dito, e sugerido, e implicado, e referido no original; e 2) a quantidade de soluções diferentíssimas a que diferentes tradutores podem chegar e geralmente chegam.

Uma matéria que peguei agora na web, da revista Exame, assim reproduz a frase numa tradução em português, sem citar o tradutor:

Sobre esta estranha sensação de que o tédio, a tranquilidade me obcecam, hesito em colocar o nome, o belo nome sério da tristeza. 

Data venia do nobre colega autor dessa tentativa, eu ainda ficaria com a minha que foi exemplificada acima, e que copio de novo:

Neste sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me inquietam, eu hesito em colocar o nome, o belo e grave nome de tristeza.

E para quem ficou curioso a respeito do caso de Gregory Rabassa traduzindo Garcia Márquez, vai aqui o arrazoado dele, extraído do seu livro de memórias If This Be Treason (New York: New Directions, 2005):

(...) Chegando a soledad, temos um caso de ambiguidade bem semelhante. (...)  A palavra em espanhol tem o sentido do seu cognato em inglês, mas também carrega em si algo de “loneliness”, e admite tanto os sentimentos negativos quanto os positivos associados à condição de estar sozinho. Preferi solitude porque é um termo mais abrangente, e porque contém em si o gérmen de loneliness, se levado até os limites, como Billie Holliday já demonstrou de forma tão eloquente.

Ele se refere à gravação de “Solitude”, que pode ser escutada aqui:


Meu comentário sobre isto é que “loneliness” é uma palavra muito focada no indivíduo, na sensação de estar sozinho no mundo, mas “solitude” é mais amplo, dá uma escala social, coletiva e até cósmica à condição de um povo que está sozinho no mundo porque “não tem quem puna por ele” e vai ter que se virar sozinho mesmo.

Rabassa comenta que no caso de Cem Anos de Solidão ele não seguiu seu método habitual de pegar o livro “do zero” e ler à medida que traduzia. Ele já havia lido o livro, sem saber que pouco tempo depois seria contratado para traduzi-lo; e talvez ao iniciar a tradução, e pensar no título, ele já tivesse em mente a escala majestosa de tempo, destino e fatalidade em que Garcia Márquez envolve, ao longo de toda a narrativa, seus personagens e sua cidade imaginária.

Sobre o livro de Rabassa, falei mais demoradamente aqui:


Ele traduziu também Clarice Lispector, e quando a conheceu pessoalmente num Congresso literário disse: “É aquele tipo raro de pessoa que parece com Marlene Dietrich e escreve como Virginia Woolf.”