quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

4060) Um Eco aberto (26.2.2016)



O recentemente falecido autor de O Nome da Rosa tem sido saudado na imprensa como um “Homem Renascentista”, igualmente capaz e talentoso em numerosas atividades complexas, daquelas que em muitos casos basta apenas uma para ocupar pelo resto da vida um intelecto robusto. Eu diria que Umberto Eco pertenceu a um tipo de intelectual contemporâneo que herdou o humanismo iluminista moderno mas sempre soube manter um olho atento para atividades ou temas considerados menores. Não é todo “Renaissance Man” que escreve sobre programas de TV, sobre orixás ou sobre torcidas de futebol. Os livros técnicos de Eco são opacos para mim (tentei ler 200 vezes A Estrutura Ausente) mas nos seus escritos para o leitor comum (como eu) ele é uma perfeita ilustração da máxima de Isaac Asimov, de que quem pensa com clareza consegue escrever com clareza.

Eco, daqui de onde o leio e observo, é um desses intelectuais de ampla erudição que não perderam o senso de humor, o interesse pelas coisas pequenas ou banais, a vocação lúdica, a capacidade fabulatória. São capazes de rir com as banalidades do cotidiano; mas não é o riso “blasé” e cínico de tantos pseudo-intelectuais de hoje, que se acham superiores ao seu próprio país ou mesmo ao mundo inteiro. Para os intelectuais, o mundo é uma fonte de diversão, de indignação, de prazer, de medo, de mistério. Vejo muito do seu espírito em Raymond Queneau, diretor editorial da coleção “Pléiade”, romancista (Zazie no Metrô), poeta, letrista de MPF (música popular francesa), matemático amador, ex-surrealista, amante dos trocadilhos e dos jogos verbais. Vejo-o em Julio Cortázar, capaz de construir pirâmides como O Jogo da Amarelinha e ao mesmo tempo de criar seus “almanaques” de microtextos e as divertidas Histórias de Cronópios e de Famas.

Outro que corre na mesma raia é Ítalo Calvino, leitor de vasta cultura, compilador de folclore (Fábulas Italianas), autor de romances metalinguísticos ou fantásticos, ensaísta literário capaz de reunir no mesmo texto profundidade de visão e clareza cristalina de exposição (Seis Propostas Para o  Próximo Milênio).  Ou então o também semiólogo Roland Barthes, cuja obra conheço menos, mas que influenciou o começo da carreira semiológica de Eco, com suas Mitologias. Barthes é dono de um humor mais contido e mais austero, mas sua percepção emotiva dos conflitos humanos, expressa com riqueza de filigranas mentais em Fragmentos do Discurso Amoroso, mostra (como Eco) que o verdadeiro intelectual é capaz de enxergar o que todo mundo viu e não percebeu, e ao dizê-lo pela primeira vez fazer aquilo parecer uma verdade eterna.