segunda-feira, 1 de março de 2010

1730) O fantasma de Joan Burroughs (27.9.2008)



(Joan Vollmer Burroughs)

Não acredito em fantasmas. Acredito que os mortos têm uma sobrevida em nossa mente, uma existência residual que independe deles, da pessoa que foram. Continuam em nossa memória como imagens autônomas, indiferentes à dissolução da pessoa que lhes deu origem. Vem daí a tradição da literatura fantástica em mostrar imagens que se libertam do espelho e ganham vida própria, a sombra que se desprende do corpo, a figura que sai da pintura.

Como dizia Drummond, em “Convívio”, “eles não vivem senão em nós, e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil”. Esse poema sempre me lembra um poema (“Dream Record: June 8, 1955”) que Allen Ginsberg escreveu sobre Joan Burroughs, a esposa do seu amigo, o escritor William Burroughs. Joan morreu de maneira patética quando o casal morava no México. William tinha mania de revólveres, estava bêbado, e quis brincar de Guilherme Tell. Pôs um copo sobre a cabeça de Joan e tentou acertar um tiro nele. Acertou a testa da esposa, que morreu na hora. Burroughs comentou, na velhice, que isto foi um dos impulsos para que ele se tornasse escritor. Escreveu (talvez) para que um dia fosse julgado por outras ações além dessa.

Diz Ginsberg que adormeceu bêbado e sonhou com Joan Burroughs, sentada num banco do jardim, e seu rosto tinha readquirido a beleza que tinha, “uma beleza estranha devido ao sal e à tequila, antes do tiro na testa”. Os dois começavam a conversar. Joan pedia notícias dos amigos – e Ginsberg respondia, como acontece em todo reencontro de quem não se vê há muito tempo.

 “O que Burroughs anda fazendo agora? / Bill continua na Terra, agora anda pelo Norte da África. / Ah, e Kerouac ainda mantém / o mesmo gênio “beat” de antes, / com cadernos cheios de budismo. / Tomara que ele se acerte, riu ela. / E Huncke, ainda está na cadeia? Não, / a última vez que o vi estava em Times Square. / E como está Kenney? Casado, bêbado / e bronzeado, no Leste. E você? Novas paixões / no Oeste...”

Diz Ginsberg que nesse momento percebeu que era um sonho, e perguntou-lhe:

“Joan, que tipo de conhecimento têm / os mortos? Você ainda ama / os mortais que conheceu? / Lembra o quê, de nós? / E ela se desvaneceu à minha frente – e no instante seguinte / tudo que vi foi sua lápide manchada pela chuva / com um epitáfio ilegível / sob um galho retorcido / de uma árvore, entre o mato selvagem / de um cemitério esquecido no México”.

Nunca vi um fantasma, e acredito que nunca verei. Mas já me ocorreu sonhar com alguém morto e só lembrar dessa morte lá pelo meio do sonho. Meu cuidado, então, era para continuar agindo normalmente, para que a pessoa não percebesse que já tinha morrido. Ao conversar com os mortos, tocar no assunto da morte é como tocar numa bolha de sabão. Eles desaparecem, porque uma pergunta é algo muito sólido e muito brutal para o que são, e os arremessa de volta para o lugar, dentro de nós, de onde vieram.





1729) Simetrias secretas (26.9.2008)




(Clennon e Dysart)

Há coisas que só um cinéfilo muito do desocupado percebe. Podem não ter e provavelmente não têm importância alguma: mas são simetrias secretas. 

É como encontrar duas árvores exatamente iguais. Qual a probabilidade disto acontecer? O mundo é cheio de rimas, escritas não sei por quem.

Ontem assisti na TV Muito Além do Jardim (Being There, 1979), de Hal Ashby. Nele, Peter Sellers faz o papel de um jardineiro retardado. Por uma série de acasos, ele é recolhido como hóspede na casa de um bilionário, em Washington, e acaba se transformando em conselheiro do Presidente dos EUA e sendo cotado para sucedê-lo.

É uma sátira excelente, e foi o último filme de Sellers, que concorreu ao Oscar, e morreu um ano depois.

Dois coadjuvantes tinham rostos que me pareceram familiares, e fui ver quem eram. Eram David Clennon, que faz um advogado, e Richard Dysart, que faz o médico particular do bilionário (Melvyn Douglas).

Fui no Internet Movie Data Base, e descobri uma coisa curiosa. Depois desse filme os dois trabalharam também em O Enigma do Outro Mundo (The Thing, 1982) de John Carpenter, como dois dos cientistas que, numa base na Antártica, combatem um alienígena.

O mais estranho é que esses dois atores fizeram papéis parecidos em dois filmes parecidos.

Em Muito Além do Jardim eles são os únicos personagens que não acreditam que Chauncey (Peter Sellers) seja de fato o gentleman intelectual e “zen” que todos (inclusive o Presidente dos EUA) imaginam. Eles sabem que Chauncey é vazio, é uma mente “em branco”, que está ali representando um papel sem nem saber que o faz, de tão vácuo que é. Ele impersonou involuntariamente um tipo humano, e todo mundo comeu corda. Todo mundo olha para Chauncey, e vê nele uma pessoa que ele não é.

Em O Enigma do Outro Mundo, os cientistas na base da Antártica descobrem uma nave enterrada, e um alienígena perigosíssimo que é um “shape-changer”, uma criatura que “muda de forma”, capaz de absorver partes de qualquer outra criatura, sintetizar seu DNA, e, de forma quase instantânea, se metamorfosear, adquirindo a aparência daquela criatura.

O monstro vai devorando os cientistas um por um (inclusive os interpretados por Clennon e Dysart), e o suspense da história é não sabermos, quando Fulano aparece, se Fulano é ele mesmo ou já é o monstro.

Há um conto de FC de Bob Shaw (“Reprise”, 1970) em que uma nave extraterrestre se acidenta perto de uma vila inglesa. O único sobrevivente, um “shape-changer”, se refugia num cinema e, para passar despercebido, adota a aparência de algum dos atores coadjuvantes do filme que está passando naquela noite. É descoberto por um cinéfilo que acha estranho ver na platéia, toda noite, um coadjuvante do filme que acabou de passar, alguns deles mortos há muitos anos...

Acho que existem criaturas, entre nós, que não são o que parecem, que adquiriram um poder desmedido em nosso mundo, e usam estes filmes para revelarem aos poucos sua presença e nos anunciarem seu Reino.





1728) Os colecionadores de sonhos (25.9.2008)




Quando eu era pequeno havia na minha casa um costume de eventualmente contarmos uns aos outros o que havíamos sonhado à noite. Minha tia Adiza, que morou muitos anos na casa dos meus pais, costumava perguntar o que a gente tinha sonhado, e às vezes contava seus próprios sonhos. 

Uma coisa que desde cedo me chamou a atenção era o tempo verbal em que os sonhos eram contados (pelo menos na minha família), que era sempre o imperfeito do indicativo. A gente não dizia: “Eu entrei numa casa, encontrei Fulano, ele me entregou um pacote”. Era assim: “Eu entrava numa casa, encontrava Fulano, ele me entregava um pacote...” 

Acho que essa mudança de tempo ficava subentendida porque no início se colocava o ato de sonhar no pretérito perfeito: “Eu sonhei que entrava numa casa...”, e daí todo o resto mudava.

Muitos autores que admiro (Graham Greene, Georges Perec, Jack Kerouac, William Burroughs, etc.) publicaram coletâneas de seus próprios sonhos. Outros incluíram relatos desse tipo em volumes autobiográficos ou ensaios (Freud, Jung, Luís Buñuel, Jorge Luís Borges, R. L. Stevenson, etc.). 

Em muitos casos os sonhos serviram como ponto de partida para contos, livros, filmes. Os três maiores clássicos do terror foram baseados em pesadelos dos seus autores: o Frankenstein de Mary Shelley, O Médico e o Monstro de Stevenson e o Drácula de Bram Stoker.

No prefácio de A World of my Own (1992), sua coletânea de sonhos, Graham Greene comenta que alguns dos seus contos (“Dream of a Strange Land”, “The Root of all Evil”) saíram direto do sonho para a página, com pequenas alterações. Conta também que sonhou com o naufrágio de um navio na noite em que o Titanic afundou. 

Esta observação nos leva ao assunto dos sonhos proféticos, que são objeto de um dos livros mais fascinantes que já li, Man and Time de J. B. Priestley (1964). Priestley acreditava nas teorias expostas por J. W. Dunne em seu clássico visionário An Experiment with Time (1927). A teoria é basicamente de que existem “camadas de tempo” superpostas umas às outras. Quando dormimos, nossa mente se liberta da camada em que está nosso corpo e se transfere para uma camada imediatamente superior, de onde é capaz de vislumbrar fatos futuros.

Eu acho que a teoria tem um grão de possibilidade, mas o sonho de Greene não tem nada a ver com ela. O Titanic era, como se sabe, o maior navio construído no mundo naquela época. Sua construção, seu lançamento e sua primeira partida para o mar foram alvo de grande cobertura da imprensa. 

Ele afundou em abril de 1912; Greene tinha, então, oito anos incompletos. Para mim é perfeitamente explicável que um garoto imaginativo ouça falar na partida iminente de um navio proclamado “não-afundável” e, à noite, sonhe que o navio afundou. Imagino que quando a Apollo 11 partiu para a Lua em 1969 muita gente deve ter sonhado com variados desastres. Como a nave foi e voltou, os sonhos passaram em branco.






1727) Machado: Uma Excursão Milagrosa (24.9.2008)



(Machado, por Marcos Guilherme)

Já comentei a relação difícil de Machado de Assis com a literatura de fantasia. Não é que não gostasse dela. Machado cita autores como Julio Verne ou Edgar Allan Poe (chegou a fazer uma tradução sofrível de “The Raven”). Seu papel, contudo, foi o de combater o exagero superficial do romantismo e do melodrama, com suas paisagens orientais e exóticas, seus cemitérios, suas assombrações, suas viagens alucinatórias e fantásticas. Queria produzir um realismo voltado para a vida da burguesiazinha financeira da corte, descobrindo por trás da sua empáfia e superficialidade profundezas insuspeitadas do espírito humano.

Vai daí que grande parte das incursões de Machado pelo fantástico eram meros entretenimentos para descontrair. Era um escriba de revistas e jornais, tendo que inventar alguma coisa a toda hora, e nem sempre com a concentração e o foco mental ideais. Em “A Chinela Turca” ele parodia e satiriza o “ultra-romantismo” dos melodramas teatrais da época. Em “Uma Excursão Milagrosa” (Jornal das Famílias, 1866) ele se serve do personagem Tito, um poeta desempregado, esnobado pelos colegas, e que, para seu próprio desgosto, vende poemas para que um ricaço os publique dizendo que é o autor. Depois de uma extensa introdução (que dá a impressão de que o autor improvisava, estendendo-se o mais que podia por não saber ainda que história iria contar), o narrador dá a voz a Tito, que passa a contar com suas próprias palavras o que lhe aconteceu.

Durante uma madrugada, entra-lhe de casa adentro “uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem névoas”, que o arrebata consigo rumo ao céu. É mais uma das viagens delirantes de Machado (Brás Cubas, “A Segunda Vida”, etc.), em que mesmo nas asas da Fantasia o personagem não evita dizer: “Eu, que me havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que naquele subir contínuo breve chegaríamos a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera”. Tal não ocorre, e os dois, após cruzar os planetas, chegam ao País das Quimeras, ou Reino das Bagatelas.

Ali tudo é cercado de rituais e rapapés, como no Oriente. O país é habitado por Utopias e Quimeras, que são “moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras”. Tito percorre aquele país, conhece a Moda, cercada “de suas trezentas belas, caprichosas filhas”; testemunha a fabricação da “massa quimérica”, uma massa “branca, leve e balofa”, destinada a preencher as mentes de estadistas, poetas e namorados. Acaba caindo de volta à Terra, e pertinho de casa. O narrador comenta que Tito passou a ser ainda mais marginalizado do que o era, pois agora não resiste à tentação de denunciar quimeras e fantasias onde as avista. Fica evidente, no conto, a leveza, o humor e a ironia casual de Machado para com as convenções da fantasia romântica. Num contozinho tapa-buraco, ele acaba deixando escapar uma profissão de fé.