sábado, 31 de outubro de 2009

1339) Prêmio de “Melhor Depoimento” (28.6.2007)


(Eduardo Coutinho)

Tenho visto muitos documentários ultimamente, de curta e de longa metragem, e fico pensando nas pequenas coisas que fazem do documentário uma arte totalmente diversa da arte do filme de ficção. Nos festivais que envolvem filmes de ficção, por exemplo, dá-se prêmio para Melhor Ator, Melhor Atriz, etc. Prêmios cuja justificativa é óbvia: cabe aos atores e às atrizes encarnar a condição humana naquelas histórias, passar para nós toda a complexa urdidura de emoções em que a história se revela, e assim por diante. Se existem “prêmios técnicos” como Melhor Fotografia, Melhor Montagem e assim por diante, poderíamos dizer que os prêmios para os atores são os “prêmios humanos” de um Festival.

Pois quando existem documentários envolvidos, a coisa muda de figura. Ali não há atores, há pessoas de verdade relacionando-se com a câmara e mostrando, da maneira que podem e que o diretor orienta, a sua verdade pessoal. Sugiro, portanto, que nos festivais de cinema onde concorrem documentários seja criada uma nova categoria de premiação: Melhor Depoimento.

Porque, ao fim e ao cabo, muitos documentários bons não são outra coisa senão um longo e editado depoimento. Uma câmara e um gravador ligados, um cineasta sugerindo temas ou fazendo perguntas específicas, e um entrevistado que, no centro da imagem cinematográfica, revela seu rosto e sua alma, com todas as suas rugas e verrugas.

Em festivais recentes como o Cine-PE de Recife e o Cineport de João Pessoa vi filmes notáveis que nada têm de excepcional em sua fotografia, roteiro, trilha sonora ou qualquer outro quesito técnico, mas não obstante tornam-se grandes filmes devido às pessoas que prestam seu depoimento. São documentos humanos, centrados na pessoa dos entrevistados, e a competência da equipe se revela justamente em sua sabedoria de não interferir com piruetas ou malabarismos de câmara, de edição, etc.

Pessoas falando com intensidade suas verdades pessoais e contando suas histórias de vida podem resultar em grandes filmes com um mínimo de firulas de linguagem. Em casos assim, o que mais importa é saber escolher o ambiente e o momento, estabelecer com o entrevistado um contato fraterno e respeitoso que lhe dê liberdade total para falar e a segurança de saber que o que disser não será usado de forma leviana. Como exemplo de documentarista especializado nesta difícil arte da empatia e da confiança, posso citar Eduardo Coutinho (Santo Forte, Cabra Marcado para Morrer, Edifício Master, O Fim e o Princípio, etc.).

Quando um documentarista consegue esse grau de empatia, consegue fazer um grande filme quase sem tirar a câmara do lugar. O filme pode não ter brilhantismo técnico, mas tem qualidade humana, e muitas vezes um júri, comovido ou entusiasmado pelo que viu, sente-se parcialmente frustrado por não dispor de nenhuma categoria para premiar aquele filme, porque suas qualidades específicas não estão previstas na grade de premiação.

1338) Máquina de escrever e mediunidade (27.6.2007)




Existe coisa mais fascinante do que a mente humana? Duvido. Ela é como aquelas casas antigas, imensas, labirínticas, onde a gente se perde com facilidade, e onde, quando menos espera, descobre um aposento onde jamais havia entrado. Ao que parece, a invenção da máquina de escrever produziu um novo aposento nas mentes humanas, gerando uma experiência de dissociação psíquica talvez comparável à que outros indivíduos experimentaram em períodos remotos da História quando a escrita se impôs como um veículo para a produção de um texto a sós.

Uma resenha de Joan Acocella sobre o livro The Iron Whim: A Fragmented History of the Typewriter, de Darren Wershler-Henry, cita uma porção de episódios curiosos na história deste nobre instrumento. Escritores sempre cultivaram uma relação de enfrentamento físico com a escrita, mas essa relação sempre foi íntima, quase sensual, com a ponta úmida da pena rascando de leve a epiderme do papel, deixando ali as senhas manuscritas através das quais os pensamentos do autor podiam ser reconstituídos. A escrita se assemelhava um pouco ao desenho. Era uma relação íntima, silenciosa.

Chegou a máquina de escrever com seus mecanismos e seu estardalhaço, e pareceu que o mundo ia se acabar. Era preciso dar uma pancada com o dedo, fazendo o martelinho desferir outra pancada no papel, amortecida pela fita úmida que imprimia o negror da letra. Em meus bons tempos de tradutor-por-sobrevivência, já trabalhei de 8 a 10 horas por dia numa máquina de escrever mecânica: quando ia dormir, as unhas estavam em frangalhos, os dedos inchados e insensíveis. Mas o mais interessante é que a máquina exigia outro tipo de relação mental. O livro de Wershler-Henry fala que após a morte de Henry James, sua datilógrafa,Theodora Bosanquet, dizia continuar ouvindo a voz do escritor ditando-lhe textos, e que outros escritores já mortos, como Thomas Hardy ou John Galsworthy, também estavam querendo ditar-lhe textos.

Wershler-Henry afirma que “as pessoas acreditavam que o que era escrito numa máquina era ditado, por uma voz que não era a mesma da pessoa que datilografava; mesmos as pessoas que compunham seus textos diretamente na máquina achavam que estavam seguindo um ditado vindo de outra parte”. Bastava isto para um escritor meio visionário como William S. Burroughs inventar em alguns de seus romances fantásticos uma máquina que ele chamava The Soft Typewriter (“A Máquina-de-Escrever Mole”), uma espécie de máquina orgânica que escrevia não só nossos livros como nossas próprias vidas.

Pode ser mediunidade; ou pode ser simplesmente um processo esquizóide benigno brotado na nossa mente, o mesmo que me permite estar agora datilografando uma frase que já pensei enquanto com o mesmo cérebro já estou tentando pensar a próxima. Cada nova tecnologia-de-pensar cria um novo puxado em nossa mente, esta casa infinita que malassombramos com nossa alma.





1337) Let’s hablar Europanto! (26.6.2007)



No websaite “Metafilter”, um dos meus bancos-de-idéias preferidos, encontrei pouco tempo atrás um comunicado nestes termos: “Que would happen if, wenn Du open your Metafilter, finde eine message in esta lingua? No est Englando, no est Germano, no est Espano, no est keine known lingua - aber Du understande! Wat happen zo! Habe your computero eine virus catched? Habe Du sudden BSE gedeveloped? No, Du esse lezendo la neue europese lingua: de Europanto!”

That’s right! Es mucho posible understand qualquiera cosa che se parle de mode organized, empleando palavras avec un sonido vaguely familiar. Mas, como isto é uma idéia dos europeus, deixemo-los às voltas com seu babelismo bem intencionado e restrinjamo-nos ao nosso belo idioma, capaz de verbos barrocos como o que acabei de exemplificar, e que europeu algum entenderia.

Tenho uma certa impaciência com as pessoas que querem entender tudo e que, ao ler um livro, empacam diante da primeira palavra cujo sentido não compreendem. Se não houver um dicionário à mão, interrompem a leitura ali mesmo. Eu acho que gente que faz isto é porque não gosta de ler. Quem gosta, passa por cima de palavras desconhecidas, de frases incompreensíveis, parágrafos obscuros, páginas tediosas. Quem gosta de ler passa por dentro do texto sem parar para checar “o cunho vernáculo de um vocábulo”.

De vez em quando me chega pela Internet uma mensagem curiosa. Diz ela que podemos ler sem porblema farses intieras com palarvas onde as letars estão mistruadas no miolo, mas mantendo a letra inicial e a última. Por quê? Porque nossos olhos reconhecem “o desenho” da palavra, o seu formato geral, e passam por cima do resto. Acho que existe um processo semelhante em nosso contato com uma língua informal como o Europanto. Temos uma certa familiaridade com palavras inglesas. As palavras francesas, espanholas e italianas compartilham conosco uma base latina comum, com milhares de radicais semelhantes. Tudo isto nos permite – se não somos do tipo cri-cri que empaca diante da primeira dificuldade – passar “a vôo de pássaro” por um texto escrito desta forma, como nos parágrafos iniciais deste artigo.

O Europanto não é uma língua, é uma experiência informal facilitada pela Internet (para mais informações, em http://www.neuropeans.com/topic/europanto/what/more.php há um artigo extenso e explicativo). Tem uma possibilidade razoável de “pegar” junto aos mais jovens, mais ágeis, mais informais, mais superficiais, ou seja, para essas pessoas que rapidamente aprendem a usar um celular novo. Por quê? Porque são jovens, têm curiosidade, não têm medo de errar, erram pra caramba e não esquentam a cabeça. Gente com o juízo já cristalizado fica impaciente quando erra, procede pé ante pé quando está diante de uma experiência nova. Os jovens, para quem tudo é novo, erram o tempo todo, mas vão em frente, de celular em punho, conversando em Europanto. E se entendem.

1336) O espírito americano (24.6.2007)



Lendo uma resenha sobre um livro de Danny Fingeroth a respeito de super-heróis (Superman on the Couch: What Superman Really Tells us About Ourselves and Our Society) deparei-me com esta frase, com que ele tenta explicar por que motivo os americanos se identificam tanto com esses personagens: “Nós lutamos nossas próprias batalhas, fazemos nossas próprias regras, desafiamos aquele que tentam nos destruir. Estamos sozinhos, seja para vencer ou fracassar, para triunfar ou sucumbir. Nós fazemos os nossos próprios destinos”. Essa mistura de altivez solitária com a arrogância de quem não-quer-se-misturar é um componente importante para entendermos a psicologia dos nossos coleguinhas mais ao Norte, tanto no seu modo de fazer cinema quanto na sua maneira de fazer guerras.

É até comovente a maneira como os americanos idolatram seus heróis. Na ficção científica, há um subgênero obscuro, muito em voga há cem anos, que os historiadores chamam de “Edisonades” (algo como “as edisonagens”). São aventuras cujo herói é Thomas Alva Edison, o inventor do fonógrafo e da lâmpada elétrica. Nas suas últimas décadas, Edison, que faleceu em 1931, tornou-se um grande divulgador da Ciência, viajando pelo país inteiro, dando palestras, fazendo campanhas de propaganda. Na década de 1890, contudo, ele já tinha fama internacional, e foi quando surgiu uma série de histórias em revistas (as chamadas “dime novels”, “romances de vintém”) tendo como herói Tom Edison Jr., um jovem inventor. Em 1886 já surgira na França o romance A Eva Futura de Villiers de L’Isle Adam, onde Edison produz uma espécie de andróide para substituir a noiva infiel do protagonista. Em 1898, Garrett P. Serviss escreveu Edison’s Conquest of Mars, em que o inventor lidera uma expedição ao planeta vizinho onde, munido de armas poderosas, “passa no rodo” a civilização marciana e implanta ali o domínio militar terrestre. O livro é uma clara resposta ao derrotismo de A Guerra dos Mundos de H. G. Wells, que acabara de ser publicado.

Os títulos das aventuras de Edison são muito numerosos para serem enfileirados aqui (o gênero caiu em desuso após 1940), mas eles exprimem um aspecto importante da cultura americana. Na mente do americano, um cientista pode ganhar proporções de super-herói. Até um político pode: alguém aí lembra o desenho animado Super Presidente, em que um presidente dos EUA se transformava numa espécie de Capitão Marvel? Não está muito distante disso o personagem de Bill Pullman no filme Independence Day – um presidente americano que acaba pilotando um dos caças a quem cabe destruir os alienígenas que invadem a Terra. Essa infantil capacidade de produzir fantasias heróicas a respeito de si próprios é um traço norte-americano que impulsiona tanto a sua cultura de massas quanto a sua política externa. São como milhões de crianças que pulam do alto do celeiro imaginando que podem voar, e o diabo é que de vez em quando um deles voa mesmo.