segunda-feira, 3 de junho de 2019

4473) "Do amor e outros demônios" (3.6.2019)



Os estudiosos da obra de Gabriel Garcia Márquez citam o parágrafo de abertura de Cem Anos de Solidão (1967) como um dos mais brilhantes da literatura. É o famoso trecho onde ele se refere ao gelo e ao pelotão de fuzilamento.

Numa entrevista a Armando Durán, em Caracas (1968), o escritor comentou um aspecto importante de sua técnica de escrita.

O problema mais árduo é escrever o primeiro parágrafo. Pode levar muitos meses, e inclusive muitos anos, até que eu tenha a noção exata de como deve ser. Só quando está escrito o primeiro parágrafo se pode decidir, de forma definitiva, se a história tem futuro, e só então sabemos qual será seu estilo e sua extensão, e quanto tempo será necessário para escrevê-la.

Parece um exagero, mas isto tem muito a ver com a curiosa personalidade desse autor, uma mistura interessante de objetividade e fantasia.

Li há pouco sua novela Del Amor y Otros Demonios (1994), um relato de paixão sexual e possessão diabólica que poderia ser comparado, por um resenhista menos respeitoso, a um cruzamento entre Lolita e O Exorcista.


É a história de Sierva Maria de Todos los Ángeles, uma menina de doze anos, com uma cabeleira que lhe desce abaixo da cintura, e da paixão catastrófica que ela desperta no padre Cayetano Alcino del Espíritu Santo Delaura y Escudero, encarregado de seu exorcismo.

A menina não está propriamente possuída pela demônio. Seu pai, um nobre de Cartagena das Índias, tem motivos para supor que ela contraiu hidrofobia, mas os acessos a que ela é sujeita levam o bispo local a providenciar para que ela seja exorcizada, pois a mera raiva não seria capaz de produzir os fenômenos ofensivos que a acometem.

Eis o primeiro parágrafo do livro (tradução de Moacir Werneck de Castro):

Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loterias, e de passagem mordeu quatro pessoas que se atravessaram no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva Maria de Todos los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada mulata comprar uma fieira de guizos para a festa de seus doze anos.


Garcia Márquez era um cinéfilo, fez crítica de cinema, deu cursos de roteiro, foi um dos criadores de uma famosa escola de cinema em Havana. O livro Como Contar um Conto transcreve suas conversas com seus alunos dos cursos de roteiro, e mostra o modo descontraído, tentativo, sempre aberto e sempre crítico, com que ele procura abordar as possibilidades de uma história a ser contada.

Esse primeiro parágrafo é muito cinematográfico ao descrever uma ação veloz e contínua, a disparada do cachorro através do mercado, como se a câmera o estivesse seguindo de perto. E ao mesmo tempo ele vai temperando a ação física imediata com aquelas informações gerais que só um ponto de vista distanciado, como o da literatura, pode fornecer: “filha única do marquês”, “para a festa de seus doze anos” – informações que daria muito trabalho “mostrar” e é mais simples “dizer”.

A história se passa em Cartagena das Índias, a cidade-porto onde Márquez viveu em diferentes períodos de sua vida, e já neste trecho inicial temos a convivência misturada entre marqueses e escravos, um dos eixos da narrativa.

E o cachorro-doido nos conduz, nesse trecho, à protagonista da história, essa menina de doze anos que se torna o epicentro de um torvelinho social, sexual e religioso.

Sierva Maria de Todos los Ángeles é filha de um nobre arruinado e depressivo, e de sua esposa espertalhona, uma matrona ninfomaníaca viciada em “mel fermentado e barras de cacau”. Os pais não gostam da menina. Esta é “adotada” pelos escravos, dorme na senzala com eles, canta suas cantigas, fala sua língua. E tem um temperamento indomável.


A mordida do cachorro produz suspeitas de hidrofobia que se estendem por toda a primeira metade do livro e levam o pai arrependido a pedir o socorro de um médico agnóstico e do bispo local. A menina é refratária a qualquer tratamento, e quando está ensandecida dana-se a praguejar em iorubá. O bispo diz que é caso de exorcismo, e a garota se transforma numa Linda Blair que precisa ser amarrada à cama.

Até que entra a segunda peça mais importante do jogo, o padre Cayetano Escudero que, encarregado de exorcizar a possessa, acaba deixando-se possuir (espiritualmente, pelo menos) por ela. E aí fecha-se um nó esboçado nas primeiras linhas do livro, porque, tal como o cachorro-doido, o padre Cayetano tem cabelos negros e com uma mecha branca por cima da testa. É ele, na verdade, e não o cachorro, o desencadeador da desgraça final.

O ambiente colombiano descrito por Garcia Márquez lembra muito o universo “casa grande e senzala” de Gilberto Freyre, com aqueles nobres cultos que falam latim e nunca trabalharam, vencidos pela indolência, amorrinhando-se na rede o dia todo à sombra das mangueiras, cedendo à promiscuidade com os escravos, vivendo em mansões semi-desmoronadas por onde passeiam galinhas e bodes.

Europa e África são os dois polos culturais da história, e Sierva Maria acaba se tornando um corpo europeu de menina branca, com quilométrica cabeleira ruiva, possuído por superstições africanas, folguedos africanos, um certo desprezo pela dor física e uma certa indiferença ao sofrimento moral.


Esse magnetismo africano é sugerido no terceiro parágrafo, quando se fala que naquele mesmo dia estava sendo posta à venda no mercado

...uma única abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha o nariz afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro.

Essa escrava reaparece perto do fim do livro, quando o Vice-Rei passa pela cidade e o governador lhe oferece um jantar. A escrava é trazida nua à sua presença, e o Vice-Rei, perturbado, afasta os olhos e diz: “Tirem essa mulher daqui”.

"Essa mulher" reflete, de algum modo, a potência do desejo sexual reprimido que leva à desgraça a menina selvagem de doze anos e o padre exorcista que se apaixona pelo demônio que o encarregaram de expulsar.