sábado, 9 de janeiro de 2010

1499) Os triângulos sagrados (2.1.2008)



Dentro do misticismo cristão, há dois conjuntos de símbolos sagrados que sempre chamaram minha atenção pela sua aparente simetria, mas uma simetria que num segundo exame se mostrava imprecisa ou incompleta. Refiro-me aos dois triângulos formados pela Santíssima Trindade e pela Sagrada Família. Ambos sugerem o triângulo familiar básico (pai, mãe, filho), mas em ambos falta ou sobra um elemento. Por quê?

Vejamos a Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e – no lugar da mãe – o Espírito Santo. Esta última entidade é para os não-cristãos a mais enigmática, a mais difícil de visualizar. No triângulo antropológico da família, ele é uma entidade misteriosa cuja função mais aparente é ocupar o lugar da mãe. Alguns analistas (especialmente da ala feminista) vêem nisso um sinal da impossibilidade da cultura judaica de colocar a mulher numa posição de destaque. Uma cultura patriarcal como a do Velho Testamento talvez ficasse pouco à vontade para definir Deus como “o Pai, a Mãe e o Filho”.

Comparada à Trindade, a Sagrada Família (Jesus, Maria e José) reproduz a estrutura real de uma família humana. Sua incompletude só se revela quando lembramos que, de acordo com os Evangelhos, coube a São José apenas o papel de pai adotivo de Cristo, sendo que a paternidade real é atribuída justamente ao Espírito Santo, emanação da Divindade.

Ao que parece, o Espírito Santo é uma metáfora para algo que a religião se sentia desconfortável em admitir: a relação fecundante que se dá entre o homem e a mulher. Se a Santíssima Trindade fosse composta por “o Pai, o Filho e a Mãe” isto implicaria na presença de uma relação sexual no cerne mesmo da Divindade. Isto foi evitado – talvez por preconceitos de ordem moral, talvez para evitar que a Trindade, uma entidade puramente espiritual, fosse contaminada pela sugestão de um processo reprodutivo típico dos seres de carne e osso.

No caso da Sagrada Família, o processo reprodutivo era indispensável, de vez que a intenção era fazer de Jesus Cristo um ser humano de origem divina mas de carne e osso. Desta vez, em vez de se suprimir a Mãe suprimiu-se o Pai, e mais uma vez suprimiu-se com isto a necessidade da relação sexual. O Espírito Santo encarregou-se da paternidade. Ele não está diretamente presente na Sagrada Família, mas está subentendido na figura de São José, pois cumpriu a função que teoricamente seria deste.

O Divino Espírito Santo é uma essência misteriosa cuja realidade é reconhecida e louvada pela cultura que produziu esses triângulos sagrados. É uma entidade que produz êxtase, iluminação, transcendência; que é capaz de iluminar as pessoas com um fogo sagrado e de fazê-las falar em línguas diferentes. Ele é a Esposa na Santíssima Trindade, e é o Marido na Sagrada Família. É a União Mística do homem e da mulher, o símbolo insolúvel mas evidente que conecta os triângulos do Espírito e da Matéria. Quem já o experimentou não precisa de provas de sua existência.

1498) Feliz Dois Mil e Outro (1.1.2008)



Os anos estão passando cada vez mais depressa desde que virou o milênio. Já repararam? Vapt! O reveillon emenda com o Carnaval, cujos derradeiros clarins já se misturam ao “Olha pro céu” do São João, aí vem a campanha política azucrinando corações e mentes. Quando sai o resultado e os garis varrem os panfletos, os shopping-centers já estão cheios de Papais Noéis. Vupt! Algumas teorias dizem que a Terra está se aproximando do Sol num trajeto em espiral para dentro, o que faz com que cada volta que ela dá seja um pouquinho menor que a anterior. Um ano hoje dura muito menos tempo do que um ano dez anos atrás.

Às vezes enxergamos o tempo como uma reta, e nós um ponto que se desloca da extremidade A, o passado, rumo à extremidade B, o futuro; e o local que ocupamos transitoriamente é o presente. Outras teorias nos ensinam a ver o Tempo como uma transformação de algo imóvel, e não como um deslocamento. Pense na exibição, em câmara acelerada, de uma planta brotando no solo, elevando-se, erguendo um talozinho verde, brotando folhas, encorpando-se, virando arvorezinha, brotando flores, abrigando passarinhos... (Um gremlin maldoso me sugere a próxima frase: “Sendo abatida por uma motosserra...”, mas não lhe demos ouvidos.) O tempo não é o percurso retilíneo de algo imutável, mas as transformações internas que, independentemente de deslocações externas, transportam uma coisa para o próximo estágio dela mesma.

Outra imagem que me ocorre com freqüência é a da coexistência de vários futuros encangados uns aos outros. Imaginem um cacho de bolhas de espuma, de diferentes tamanhos, coladas umas às outras. Cada uma delas é um dos universos possíveis que atravessamos com o transcurso do tempo; nós somos o ar que infla essas bolhas, e podemos passar de uma para outra sem transição intermediária, como num salto quântico. Cada vez que nos defrontamos com uma escolha (“passar o reveillon em casa, tomando vinho e ouvindo música, ou ir para a farra com os amigos?”) temos duas bolhas à nossa escolha, e quando por fim optamos por uma delas fazemos com que ela cresça e se desenvolva, porque somos nós o ar que a expande e a torna mais real.

Pois é, amigos. Final de ano, todo mundo me mandando mensagens de Feliz Ano Novo, de saúde e paz, de mais amor entre as pessoas e mais diplomacia entre as nações... e eu aqui, mais preocupado em entender o formato do Tempo do que em buscar a felicidade. Fazer o quê? Cada qual ostenta as deformações do seu ofício como se fossem outras tantas medalhas de honra ao mérito ou uma camisa em azul-claro que ganhou de presente no Natal. Nunca saberemos o que é o Tempo, talvez porque estejamos impregnados dele, assim como um peixe só percebe que a água existia no instante em que um anzol o arrebata para fora dela. Brindemos ao Tempo e seus mistérios. Melhor que o ponto final das respostas é a melodia inquisitiva das perguntas que nos mantêm vivos e acesos. Feliz Mistério Novo, tin-tin.

1497) O estrangeiro e o estranho (30.12.2007)


(Jamie Bishop, R.I.P.)

Meses atrás um estudante coreano meio descompensado pegou em armas e fuzilou dez ou quinze colegas num campus universitário dos EUA. A notícia me chocou, acompanhei a cobertura, coisa e tal. Um mês depois, li na revista Locus que uma das vítimas fatais era Jamie Bishop, estudante de cinema de vinte e poucos anos, e filho do escritor de ficção científica Michael Bishop. Só então o verdadeiro horror do crime se abateu sobre mim. Por que? Porque Michael Bishop eu sei quem é, já li pelo menos dois grandes livros escritos por ele (Transfigurations e Apartheid, Superstrings and Mordecai Thubana). Bishop, e por tabela seu filho Jamie, pertencem ao meu mundo. As outras vítimas, não. São uma lista de nomes, uma sucessão de fotos. São (aos meus olhos solipsistas, que só reconhecem o que já me pertence) uma mera ficção.

Comentei nesta coluna o quanto fiquei chocado com os atentados a bomba em Bagdá que mataram gente durante as comemorações de uma vitória da seleção iraquiana de futebol. É a mesma coisa. A morte alheia só nos fere e só nos incomoda quando existe um fio invisível, por mais tênue que seja, nos ligando à pessoa que morreu. Pode ser um fiozinho da finura de um fio de aranha e com mil quilômetros de extensão, mas se esse fio sofre qualquer estremeço na outra extremidade isso nos toca, nos modifica, nos faz sentir alguma coisa. Não havendo esse fio, meu amigo, é como alguém dizer: “Morreram 20 milhões de russos na II Guerra Mundial”. Sim – e daí?

Encontrei na Wikipedia uma citação de uma frase anônima na Revue de Paris referindo-se à peculiaríssima moral dos cidadãos de Roma Antiga. Diz o texto: “Os romanos, que tinham apenas uma palavra, ‘hostis’, para designar tanto ‘estrangeiro’ quanto ‘inimigo’, esses romanos, que se riam nos espetáculos da arena, esses romanos ainda assim choravam, como qualquer outro, quando ouviam no teatro um ator recitar: ‘Sou homem, e nada do que é humano me é estranho’”.

Parafraseando Orwell, é o caso de dizermos que todos os homens são humanos, mas alguns são mais humanos do que os outros. Nosso sentimento de clã, de tribo, de família, depende desses filetes de sentimento e de identificação simbólica que nos unem a algumas pessoas mas não a outras. O curioso da citação é que a palavra latina “hostis” signifique ao mesmo tempo “estrangeiro” e “inimigo”. Percebe-se que nessa época conceitualmente nebulosa quem não era um dos nossos estava contra nós. Foi preciso uma certa evolução civilizatória para que os dois conceitos se apartassem. Curiosamente essa duplicidade de sentidos da palavra latina “hostis” nos deu termos que a refletem de forma distante: “hostil” (alguém que nos ameaça), e a palavra inglesa “host”, anfitrião (aquele que recebe estranhos em sua casa). Do mesmo radical vieram, via “hospitus”, os termos “hóspede” e “hospitalidade”, e “hóstia” (simbolicamente, o objeto que recebe em si um espírito estranho, algo que vem de outro mundo).

1496) Repentes sob encomenda (29.12.2007)





É fácil escrever poesia de improviso, e sob encomenda? Parece que sim – aí estão os milhares de violeiros repentistas nordestinos. 

Um professor de uma escola pública em New Jersey pegou um grupo de estudantes do 2o. grau e lhes colocou essa tarefa: praticariam durante algum tempo, e num certo dia iriam instalar umas barracas no centro da cidade, oferecendo-se para escrever poemas na hora, conforme os pedidos dos transeuntes.

O professor Douglas Goetsch publicou um artigo em The American Scholar contando todos os detalhes do projeto. 

Os estudantes colocaram algumas questões logo de cara. Cobrariam dinheiro pelos poemas? “Não,” disse Goetsch. E se não aparecer ninguém para pedir um poema? “Faz parte do risco”. E se pedirem um poema rimado, que eu não sei fazer? “Vamos treinar”. E se não soubermos dizer nada sobre o assunto que pedirem? “Vamos treinar”.

O treinamento era em forma de exercícios obrigatórios, imaginados por ele. 

“Uma mulher tem um primo que está lutando no Iraque e vai dar baixa daqui a três meses. Ela quer um poema desejando-lhe boa sorte e boa volta à casa”. 

“Um torcedor do time de basquete da escola quer um poema para uma garota da torcida uniformizada chamada Francine. Ele quer um poema rimado. Você tem dois minutos”. 

“Um homem quer um poema para a esposa dele, pedindo desculpas por ter criticado seus talentos culinários; é a primeira briga conjugal dos dois”. 

O professor queria desenvolver neles aquilo que Keats chamava de “negative capability”, algo como “aptidão, ou capacidade para lidar com situações negativas” – o mistério, o conhecimento insuficiente. Ou seja: trabalhar, sem reclamar, com os dados disponíveis.

As primeiras semanas de treino foram duras. Diz Goetsch que os alunos tinham 16, 17 anos, e eram talentosos, mas tinham pouco conhecimento de técnica (tipos de poema, de métrica, de rima). Nunca tinham praticado a poesia a sério. 

O professor ensinou-lhes a praticar o hai-kai, o soneto, a vilanela, o limerick, a ode, a balada. No dia em que foram para a rua, atenderam todos os pedidos. Apareceu até um “freguês”, um professor da universidade local, que pediu uma vilanela tendo como assunto “macacos”. Uma das garotas produziu em poucos minutos o poema pedido: 

“Monkeys swinging in the trees 
small and brown with lots of hair 
staring strangely down to me...” 

O relato de Goetsch mostra como pessoas com talento podem, se treinadas, produzir improvisos de boa qualidade.

O que é preciso para fazer poesia assim? 

Primeiro: vasto repertório de técnicas, formas, recursos, truques criativos. 

Segundo: prática constante. 

Terceiro: a “negative capability” necessária para saber que naquele instante o mais importante não é produzir um grande poema, mas um poema rápido, legível e coerente, dentro do tema solicitado e do tempo disponível. 

Um dia, um desses poemas improvisados poderá ser um grande poema.