quarta-feira, 23 de julho de 2008

0461) De Odessa a Beslan (10.9.2004)





A imagem de uma mãe carregando nos braços o filho pequeno, morto a tiros, é uma das mais impressionantes da cena do massacre na escadaria de Odessa, em O Encouraçado Potemkin. Quase cem anos depois (o episódio de Odessa ocorreu em 1905; o filme de Eisenstein é de 1925) a imagem se repete na escola de Beslan, invadida dias atrás por rebeldes separatistas chechenos. É bem verdade que o garoto de Odessa foi fuzilado pelos cossacos do Czar, que atiraram contra a multidão para reprimir um protesto pacífico; e que as crianças de Beslan foram mortas por fanáticos que combatiam o governo e o exército (teoricamente, os fanáticos deveriam corresponder aos marinheiros revoltados do Potemkin). Mas... faz diferença? Quando é o filho da gente que morre com um tiro, faz diferença se a bala veio do Governo ou da Oposição?

O que se passa na cabeça de sujeitos que dizem amar a Deus e explodem aviões cheios de civis inocentes, sujeitos que dizem lutar pela liberdade e massacram minorias étnicas, sujeitos que dizem defender a democracia e bombardeiam sem dó nem piedade cidades inteiras? Tem alguma coisa errada. Eu ainda acho que quem descreveu de maneira mais lúcida o que acontece com esse pessoal foi justamente Karl Marx, que deve dar umas trinta voltas no túmulo todo dia, devido às impropriedades que se cometem em seu nome.

Marx criticava no capitalismo industrial a alienação, o estranhamento, o distanciamento total entre o operário e aquilo que ele produz. Um operário numa linha de montagem se concentra no que está fazendo, e perde de vista o sentido humano daquele trabalho. Lembro de uma historieta que li num manual político anos atrás, sobre um sujeito que trabalhava numa indústria, onde sua função principal era produzir pequenas roldanas de metal, muito fininhas. Ele trabalhou ali durante anos sem saber para que serviam. Um dia, em casa, seu barbeador elétrico pifou, e ele o abriu, para ver se conseguia consertá-lo. E descobriu dentro do barbeador justamente aquelas roldanas que ele fabricava!

Trabalho alienado é todo aquele do qual perdemos o espírito e nos limitamos a seguir instruções ao pé da letra, sem entender, sem perguntar. É todo aquele em que a divisão do trabalho se sofistica a tal ponto que nenhum dos envolvidos tem a visão geral do que está acontecendo: aquilo vira um processo mecânico que se auto-executa às cegas, sem ninguém para corrigir-lhe os rumos quando ele se desvia do objetivo inicial. É muito irônico que hoje o mais grave exemplo de trabalho alienado seja a Guerra Revolucionária – cujas sementes Marx plantou. A Alienação nos revolucionários é o resultado de muitos fatores combinados, entre eles: hierarquização rígida, lavagem cerebral, incapacidade para o diálogo político, facilidade de aquisição de armas, militarização... Os separatistas pensam que estão fazendo uma Revolução. E estão apenas repetindo a escadaria de Odessa.

0460) Burocracia (9.9.2004)



A vida da gente é cheia de enfurecimentos periódicos; é algo como as secas do Nordeste ou as inundações da Índia. De tempos em tempos, lá vem de novo aquele flagelo, tão familiar, estragar nosso humor e nosso dia de trabalho. Um dos que me perseguem com mais insistência é a burocracia. A toda hora estou me deparando com algum bloqueio mental humano relacionado a documentos. Vou dar um exemplo. Ligou para mim um moça de uma gravadora de São Paulo, dizendo que precisava da autorização para uma música minha ser gravada. Anotei os dados (a música, o artista, o disco, a gravadora, o endereço) e mandei a autorização. Dias depois ela volta a ligar: “O senhor esqueceu de reconhecer a firma da autorização.” Expliquei que não tinha esquecido, tinha achado desnecessário. Mas ela fez finca-pé. É necessário, sim, tem que reconhecer, senão como nós vamos provar que a assinatura é sua?

Expliquei que o cartório onde tenho firma reconhecida fica no centro do Rio, e “reconhecer uma firma” para mim significa pegar um ônibus, pegar o metrô, andar dois quarteirões, esperar na fila, fazer o reconhecimento, caminhar dois quarteirões, pegar o metrô, pegar o ônibus. Não dá menos de duas horas. Se eu estivesse sem nada urgente, até faria. Mas naqueles dias eu estava “por aqui” de trabalho atrasado, e não dispunha de duas horas para fazer uma coisa que aos meus olhos era desnecessária. Mas eu ia dar um jeito.

O jeito que eu arranjei foi o seguinte. Eu tenho (virginiano que sou) uma porção de cópias de uma folha onde mandei xerocar frente-e-verso, e autenticar, minha carteira de identidade e meu CPF. Nessa folha estão, portanto, meus principais documentos, onde minha assinatura é claramente legível. Peguei uma dessas cópias, e escrevi a mão, embaixo: “Autorizo a gravação da música tal, pela gravadora tal...” Assinei, e mandei. Dias depois me liga a moça de novo. “O senhor desculpe, mas não é esse documento que nós precisamos. Precisamos é da autorização com firma reconhecida, e a firma não foi reconhecida.”

Para encurtar a novela: eu me recusei a reconhecer a firma, e disse que por mim a música não seria gravada. Pois sabem o que a moça fez? Ela pegou duas fichas de um cartório de São Paulo, mandou para mim pelo Correio, eu assinei as fichas, devolvi pelo Correio, e ela mandou reconhecer nesse tal Cartório a primeira autorização que eu tinha enviado. E essa desespero todo por quê? Era a escritura de uma mansão em Paris, de um prédio na Quinta Avenida? Era o recibo de uma herança de 100 milhões de dólares? Era um desses documentos que, fazem a independência financeira de um falsificador? Não. Era eu autorizando um artista (que é amigo meu) a gravar uma música minha. Olhe... eu não simpatizo com as pessoas que pirateiam discos, que sonegam direitos autorais. Mas é por estas e outras que as gravadoras, como os dinossauros, estão afundadas num pântano, de onde só sairão para os Museus do futuro.

0459) A eternidade dos pássaros (8.9.2004)




(o manuscrito do poema de Keats)

Um dos meus contos preferidos sobre Realidade Virtual (mundos criados em computador) é “In the Upper Room” de Terry Bisson (Playboy, abril 1996), cujo texto completo pode ser obtido em: http://www.freesfonline.de/authors/bisson.html

É a história de um cara que se perde no interior de um catálogo virtual da Victoria´s Secret, a famosa loja de lingerie. Nesse catálogo virtual, o cliente, em vez de folhear uma revista com fotos das mulheres usando aqueles trajes provocantes, “entra” numa mansão e percorre quartos onde encontra simulações de belas modelos trajando coisas mais provocantes ainda. 

Um crítico chamou a atenção para um detalhe que revela o caráter serial, repetitivo, mecânico daquele mundo. Diz o narrador: “I stood beside her at the window watching the robins arrive and depart on the grass. It was the same robin over and over.” (“Fiquei ao lado dela, observando os tordos chegarem e partirem do gramado. Era o mesmo tordo, que ia e voltava, ia e voltava.”) 

Esse passarinho, sempre o mesmo, revela a natureza artificial daquela paisagem; e o escritor destaca isto com sutileza, com o uso de verbos ( “arrive”, “depart”) que usamos normalmente para aviões, não para aves.

Que frio na espinha, que calafrio na alma não sentiríamos se percebêssemos, em nosso mundo real, que certos elementos se repetem em “loop” interminável, como os figurantes de filmes como Cidade das Trevas ou O 13o. andar

As pessoas acostumadas a jogar jogos em CD-Rom (de The Sims a Zoo Tycoon ou a Great Theft Auto) estão acostumadas à presença desses figurantes cibernéticos: pessoas, carros ou animais que estão sempre passando ao fundo, sempre os mesmos, cumprindo as mesmas ações e os mesmos gestos, para nos dar a ilusão de Vida Real.

O que não deixa de me trazer à memória a famosa “Ode to a Nightingale” de John Keats (1819), em que o grande poeta romântico sente-se desprendido da realidade terrena ao escutar o canto de um rouxinol, cuja beleza o liberta por alguns instantes das tristezas da vida e da fragilidade do corpo (Keats morreria de tuberculose dois anos depois, aos 26 anos). 

Ele se sente transportado para um plano fora do espaço e do tempo ao escutar aquela canção que, sem dúvida, é a mesma que os rouxinóis cantam desde que o mundo é mundo. Keats percebeu (embora não nos termos que aqui coloco) que um pássaro não passa de um corpo físico descartável que executa um software musical repetitivo, sempre o mesmo, e que nunca se extingue: “Thou wast not born for death, immortal bird!” 

O pássaro não morre, porque é um figurante virtual em nosso mundo; cada rouxinol de hoje é o mesmo que cantou na Antiguidade remota. O poeta percebeu que era o mesmo rouxinol que ia e voltava, cantando para indivíduos únicos, efêmeros, mortais, conscientes da existência do Tempo, e de que só deixariam na Terra a sua canção. 

O rouxinol de Keats continua cantando, mas me consola pensar que Keats também.









0458) Skull and Bones: a máfia de Bush (7.9.2004)


(a "tumba" que serve de sede à S&B em Yale)

Eu me interesso muito pelas “Teorias da Conspiração”, essas hipóteses mirabolantes segundo as quais o mundo é governado por irmandades ocultas, grupos de indivíduos poderosíssimos e mal-intencionados, que (segundo alguns) foram capazes de afundar o Titanic somente para que um cofre com documentos comprometedores, que vinha no porão de carga, não chegasse às mãos da Justiça dos EUA. Meses atrás vi na TV-a-cabo um documentário sobre uma dessas sociedades secretas: a “Skull and Bones”, que recruta estudantes da Universidade de Yale.

A “Skull and Bones” tem interesse neste momento pelo fato de ter entre seus membros o nosso ilustre George W. Bush, presidente dos EUA, candidato à reeleição. Fiquei surpreso ao ver que Michael Moore, em seu filme Fahrenheit 9/11, não menciona este grupo, que parece ter uma verdadeira rede de membros espalhados em postos-chave dos EUA: no Governo, no mercado financeiro, nos serviços de inteligência como a CIA. Há um livro a respeito, Secrets of the Tomb: Skull and Bones, the Ivy League, and the Hidden Paths of Power, de Alexandra Robbins, que tem um saite em: http://www.secretsofthetomb.com/. E quem quiser informações ainda mais detalhadas pode ir ao saite: http://www.parascope.com/articles/0997/skullbones.htm.

Sociedades secretas costumam forjar vínculos emocionais muito fortes entre seus participantes, através de rituais de iniciação, que são testes de coragem, de capacidade e de caráter a que o neófito é submetido para ser considerado digno de pertencer ao grupo. Existem rituais periódicos de reafirmação e fortalecimento dessa união. Esses indivíduos, que têm origem social e formação ideológica semelhante, adquirem um vínculo implícito de lealdade. A “S&B”, fundada em 1832, tem entre seus membros indivíduos de algumas das famílias mais influentes nos EUA: Whitney, Harriman, Russell, Taft, Stimson, Lovett, Bush.

Não acho que esses sujeitos sejam satanistas, ou neo-nazistas, ou que tenham sofrido lavagem cerebral por parte de espiões alienígenas. Não é nada disso. Sociedades assim captam jovens brilhantes, ambiciosos, de famílias ricas, e criam entre eles uma cumplicidade que lhes será muito útil daí a algumas décadas, quando estiverem todos nos postos mais altos do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, das Forças Armadas, do mercado de capitais, da diplomacia, da indústria. Uma sociedade assim, na verdade, não manipula seus membros: é, sim, manipulada por eles. São eles que se servem dela, da lealdade tácita que ela gera entre seus participantes, para facilitar o jogo do poder, o tráfico de influências, a troca de favores, a concessão de pistolões, os acordos de interesses. Todos se conhecem (a “S&B” não tem mais do que 600 membros vivos), mesmo que não pessoalmente; e sabem com quem estão lidando. E, aliás, não adianta alguém ir se queixar ao Senador John Kerry. Ele também estudou em Yale, e também é membro da “Skull and Bones”.