domingo, 30 de setembro de 2012

2990) Vício digital (30.9.2012)




A Internet tanto ajuda quanto atrapalha um escritor. É como ter na mesa ao lado, no escritório, uma secretária eficientíssima, que faz tudo e sabe tudo, mas insiste em trabalhar usando fio dental. Toda vez que o sujeito faz um ponto/parágrafo, vem a precisão de dar uma olhada. E se chegou a resposta àquele email ansioso que mandei ontem para a editora? E se alguém tiver postado algo interessante no Facebook?  E se no Twitter tiver acabado de aparecer um link que vai me dar de bandeja o tema da coluna de amanhã? E se o saite da CNN tiver uma revelação bombástica sobre a campanha presidencial nos EUA? E se alguém tiver postado um comentário interessante no meu Blog? Por falar nisso, quantos acessos o blog teve hoje?



Muitos escritores experimentam isto de 10 em 10 minutos enquanto escrevem.  Um artigo no The Telegraph me faz compartilhar o calvário de alguns escritores ingleses contemporâneos, que, pasmem, chegam a instalar no computador programas destinados a atrapalhar seu acesso à Internet enquanto escrevem. Zadie Smith (White Teeth) usa dois programas, chamados Freedom (também utilizado por Nick Hornby, Dave Eggers e Naomi Klein) e Self-Control.



Quem melhor explica isso é Ned Beauman (The Teleportation Accident), nascido em 1985 e totalmente integrado no redemoinho eletrônico. “Eu uso K9, um aplicativo que bloqueia certas páginas em alguns websaites”, diz ele, “e uso um bloqueador de anúncios para bloquear a seção de comentários nos saites. Quando estou trabalhando uso Nanny, aplicativo do Google Chrome, e uso SelfControl para bloquear alguns outros saites”. Quais? Ele responde: “Virtualmente todos os saites de jornais, revistas, blogs e o Twitter”.



Está cada vez mais fácil baixar um aplicativo para amordaçar o computador do que simplesmente adquirir o autodomínio necessário para trabalhar cinco ou seis horas sem abrir um navegador. Cinco ou seis horas? Estou sendo utópico. Não me lembro a última vez em que trabalhei duas horas seguidas sem dar um pulo nos usuais suspeitos (email, Facebook, Twitter, Wikipedia, Terra, CNN, StereoMood, Mundo Fantasmo).


Que trauma será esse? Falta de vergonha, diria Seu Lunga, e o inglês Will Self, nascido em 1961, afirma: “Internet não tem nada a ver com a escrita de ficção, que é a expressão de verdades que só são obtidas através da observação e introspecção. É um instrumento incrível e seria idiotice não usá-lo, mas é uma coisa que atrapalha a escrita propriamente dita”. Não custa nada fechar todas as janelas, deixar aberto somente o Word, e dizer: “Só conecto de novo daqui a 3 horas, e durante 30 minutos”. Se não conseguir... é falta de vergonha mesmo.

sábado, 29 de setembro de 2012

2989) Antologias de FC (29.9.2012)






As antologias de contos tiveram um papel muito importante na FC ao longo de décadas.  As antologias dos “melhores” do ano, clicando uma polaróide do que foi aquele ano (o exemplo mais presente são as antologias de Gardner Dozois); as antologias de contos inéditos, revelando novas histórias e novos autores; as antologias de clássicos obscuros ou esquecidos; as antologias temáticas de todos os tipos. É justamente essa variedade de abordagens que dá a importância coletiva das antologias, porque cada uma delas faz um recorte diferente, seja na seleção do que é inédito, seja na pesquisa e escolha do que já existe.



Roger Elwood é um editor norte-americano que no espaço de poucos anos, entre as décadas de 1960-1970, lançou dezenas de antologias originais, tendo a certa altura açambarcado para si um quarto do mercado de contos nos EUA.  Fala-se que editou cerca de 80 ao todo, e surgiu até o termo “elwoodização” para descrever a saturação de um mercado editorial específico. A Encyclopedia of SF observa que ele é um cristão devoto, sendo também autor de várias obras evangélicas e inspiracionais. Não me lembro de ter alguma antologia de Elwood na minha coleção e não sei avaliar seu valor, mas o personagem mereceria uma tese. Pode ter sido uma tentativa de hubbardização.



Um dos tipos de antologias que mais aprecio é o modelo personalíssimo criado por Judith Merrill em sua série The Year’s Best S-F (é esta a grafia). Consta que foram doze volumes, dos quais tenho seis. JM fazia um balanço que ia muito além do mercado de revistas de FC (1956-1968). O volume de 1963 traz um poema de Conrad Aiken, poema em prosa de John dos Passos (um fragmento de Midcentury, de 1961), o conto (de estréia!) do físico Leo Szilard, cartum de Jules Feiffer, versos de Paul Dehn ilustrados por Edward Gorey, um conto de Lawrence Durrell – e, claro, histórias de autores como Fritz Leiber, Fredric Brown, James Blish, John Wyndham, Anne McCaffrey e Cordwainer Smith.


O que isto prova?  Para mim, prova que também é possível ter um modelo de antologia que mesmo privilegiando o conto e mesmo privilegiando a FC não vê problema em usar outros ingredientes. Não é uma antologia de contos, é uma antologia de idéias. A antologia capta e herda um certo espírito eclético (inclusive na apresentação gráfica) das revistas de FC. Uma antologia organizada pela presença de idéias-FC – e aí cabe ao organizador saber o que cada peça está fazendo ali. Uma antologia pode também ter algo de revista, ter algo de almanaque, misturar poemas, cartuns, não-ficção, fotografias, contos mainstream. Desde que tudo isso funcione dentro de um conceito geral.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

2988) A Vida e os Tempos de Ivan Denissaev (28.9.2012)







Cap. 1 – De como Ivan Davidovitch Denissaev nasceu num povoado a mil quilômetros de Moscou, numa tundra batida pelos ventos, por entre mujiques atarefados, verões tépidos, invernos massacrantes, sublevações armadas, repressão czarista, missas ortodoxas, ladainhas rezadas diante de ícones longilíneos.

Cap. 2 – De como Ivan Denissaev era de uma família tão pobre que não fazia idéia do que fosse tundra, mujique, ícone, longilíneo, essa zorra toda. 

Cap. 3 – De como o alistamento compulsório ao exército czarista ensinou a Ivan o manejo do alfabeto e da baioneta. 

Cap. 4 – De como Ivan viveu o primeiro grande momento de sua vida ao descer a escadaria de Odessa mandando bala naquele magote de desordeiros (ele é o quinto par de botas da esquerda para a direita).

Cap. 5 - De como Ivan tornou-se sub-secretário de Inteligência do Czar, e nessa qualidade sua primeira providência foi redigir e distribuir no país, misturando seu aprendizado do colégio ao do quartel, um livro com um manifesto contra o Czar, uma tortuosa análise política dos países eslavos, um hino revolucionário, e, nas últimas páginas, algumas fórmulas químicas de uso prático, numa das quais ao algarismo de um ingrediente foi discretamente anteposto outro que o multiplicou; e com isso nos dois anos seguintes três em cada quatro terroristas que tentavam fabricar explosivos iam pelos ares, poupando esse trabalho ao governo.

Cap. 6 – De como ele foi promovido a oficial do exército czarista, traiu o czar durante um chá com Kerensky, e participou de reuniões clandestinas onde nunca distinguiu com clareza o que queriam os mencheviques e o que queriam os bolcheviques. 

Cap. 7 – De como Ivan, durante a tomada do Palácio de Inverno, entrincheirou-se atrás de uma coluna e, coerente consigo mesmo, atirou nas tropas invasoras e nas tropas defensoras, esperando para ver para que lado a batalha pendia.

Cap. 8 – De como a vitória dos insurretos catapultou Ivan ao cargo de Comissário do Povo Soviético durante a Guerra Civil, quando ele aproveitou para desviar armas, munições e verbas para seu povoado, e comprar para si mesmo um automóvel, um aquecedor central e um Ovo Fabergé.

Cap. 9 – De como Ivan tornou-se o braço direito de Josef Stálin, a ponto de deixar crescer um bigode igualzinho ao do ditador.

Cap. 10 – De como os bigodes eram tão parecidos que ninguém percebeu que o verdadeiro Stálin já tinha sido degolado e substituído por Ivan Denissaev, que governou com mão-de-ferro a URSS, reuniu-se durante a II Guerra com Churchill e Roosevelt, e morreu de um derrame em 1953, sendo que suas últimas palavras foram: “Pode me chamar de Ivan O Terrível”.


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

2987) Zumbi a passeio (27.9.2012)




“Felisberto!  Leve o lixo pra jogar lá fora!”.  

Eu já estava quase no portão quando ouvi a voz de Dalva, e gritei de volta: “Não posso agora!  Estou levando Zombe pra passear!”.  

Zombe é o nome do zumbi da gente, e às vezes eu fico imaginando a cara do meu pai se ele tivesse sobrevivido à Guerra Canibal e visse nosso estilo de vida hoje. Ele provavelmente iria dizer: “Não importa quantos apocalipses a humanidade tenha que passar, ela sempre encontra um jeito de regredir à pequena-burguesia suburbana!”.  

Meu pai foi devorado quando eu tinha 12 anos mas me lembro até hoje das aulas dele, porque ele não conversava, ele dava aula o tempo todo, era incapaz de pegar um pão na mesa sem dar uma aula sobre a Crise do Trigo Asiático. Ele sempre disse que a Epidemia Zumbi era uma trama de umas organizações que eu nunca entendi. Quando cresci fiquei sabendo que foi acidente mesmo.

De qualquer modo, fui na casinha, botei a coleira em Zombe e saí. Fim da tarde todo mundo se encontra na padaria. Com uma passadinha no açougue, onde cada um compra um osso pra distrair seu pet. 

Zombe gosta de costela, bem crua. Dê aquela costeletazinha básica e ele passa meia hora de cócoras, entretido, enquanto a gente troca uma idéia, comenta o futebol. Claro, futebol acabou, mas a gente tem as gravações; eu e uns amigos do meu prédio estamos acompanhando o campeonato carioca de 2002, um jogo por dia, proibido spoilers. 

Eu saio pouco de casa; tenho 44 anos e sou o mais velho da minha rua. Só saio de casa armado e com Zombe. Gente com fome é pior do que zumbi.

Na volta dou uma passada na Praça do Por do Sol, uma colina de onde contemplo as ruínas. Antigamente era bonito, hoje é uma mistura de arquitetura e floresta. 

Sou um dos poucos que conheceram o mundo antigo, um mundo onde os zumbis eram uma ameaça e não nossos cães de guarda quimicamente domesticados. Foram vinte anos de carnificina recíproca até que conseguimos amestrá-los. Hoje, não viveríamos sem eles, que nos defendem de nós mesmos. 

O mundo colapsou, todo mundo só come o que planta, cria ou fabrica. Comércio, só de bairro. Não há mais política, indústria, capital financeiro, exércitos, guerras; e isto é um baita dum consolo por não existirem mais universidades, esportes, estações de TV, cinema, restaurantes e bares. 

Na minha cidade somos (li ontem) um milhão de humanos, e só 120 mil possuem zumbis para se defender do restante. Dalva diz que sempre haverá ricos e pobres. 

Puxo a coleira de Zombe e arrasto-o de volta para casa. Falem de apocalipse, falem que vivemos num inferno, mas para mim qualquer mundo é um paraíso se nele sou eu quem puxa alguém pela coleira.







quarta-feira, 26 de setembro de 2012

2986) O fanático sorridente (26.9.2012)




Sou agnóstico mas considero a religião uma forma importante de conhecimento intuitivo do mundo e de relacionamento interpessoal.  Sem as religiões à minha volta, minha vida ficaria empobrecida, mesmo que eu não concorde com as premissas delas (existência de mundo espiritual, existência de seres superiores que nos avaliam e nos julgam, existência do Céu e do Inferno, etc.). Fazem parte da cultura que me cerca. Por outro lado, não preciso de religião. Para explicar o Universo, a Ciência tem me quebrado o maior galho.  Para conviver com a humanidade, tenho uma espécie de humanismo doméstico, que não queima incenso em nenhum altar.  Se um dia eu mudar de idéia e me converter a alguma fé, serei o primeiro a avisar a todo mundo. Por que não?

Aqui no Brasil, uma das primeiras providências da Casa Grande foi abrir uma capela pertinho da Senzala. Quando um povo domina e escraviza outro, não basta destruir seus armamentos, é preciso destruir seus deuses também. Os espanhóis queimaram milhares de códices maias, mas se fossem os maias que tivessem invadido a Espanha teriam feito o mesmo com as catedrais (os republicanos queimaram centenas delas na Guerra Civil). Hoje circula nas redes sociais, numa campanha contra a evangelização forçada dos índios, uma imagem orgulhosa de um jovem índio brasileiro dizendo: “Seu mito não é melhor do que o meu”. O problema é que quem acredita em mitos acha sempre que mito é só o dos outros – o seu é a verdade. A fórmula de toda crença requer pelo menos um átomo de fanatismo, porque crer é ter certeza, e o fanatismo não passa de certeza. Uma certeza ansiosa para se expandir, e que não aceita ser questionada ou relativizada pela existência de certezas opostas. Não é preciso desprezar nem odiar os fanáticos. Devemos apenas enquadrá-los, impor limites civis e coletivos a sua atuação, impedir que infernizem a vida alheia com sua hipótese de Paraíso. Podemos perdoá-los, porque é evidente que não sabem o que fazem.

Vejam bem – não falo dos caras que empunham archotes acesos e enforcam gente.  Falo dos fanáticos pacíficos, cuja única arma é o altofalante na casa vizinha bradando aleluias e hosanas. (Confesso que nessas horas quem tem vontade de empunhar archotes e enforcar gente sou eu.) Alguém já disse que fanático é um sujeito que nunca muda de opinião, nem de assunto. E vou mais além – é o cara para quem o simples fato de você acreditar em algo diferente exige que você seja imediatamente convencido a mudar de idéia. O quê? Não concorda com minha definição, amigo?  Beleza!  Fique com a sua que eu fico com a minha. Basta não tocar na minha campainha, e dar uma abaixada no som.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

2985) Quero morar na Suécia (25.9.2012)


As autoridades da Suécia estão inaugurando uma experiência de engenharia social (existe este termo?) para organizar certos setores de estudo, trabalho, etc. em função dos nossos diferentes ciclos de atividade biológica.  Há pessoas que acordam a mil por hora, com a corda toda, e às 10 da noite já estão cabeceando de sono; e pessoas que se arrastam para fora da cama, de manhã, como trapos embrutecidos, mas vão ganhando forças ao longo do dia, e depois da meia-noite são capazes de qualquer façanha intelectual (sem falar nas outras). Por que isto?  Dizem os cientistas (não só os suecos) que existem dois tipos de pessoas a que eles chamam “A” e “B”.  A pessoa tipo “A” tem um ciclo biológico de 23 horas; a pessoa “B” tem um ciclo de 25 a 27 horas.  São estas pessoas “B” que são mais produtivas no final do dia e acordam com sacrifício.

Erika Augustinsson é vice-presidente da B-Samfundet (“Sociedade B”), um movimento que pretende abrir espaços para que as pessoas com estas características (e que talvez sejam uma minoria) possam estudar e trabalhar em horários mais adaptados ao seu ciclo de atividade.  Pessoas B (como é o meu caso, aliás) são frequentemente chamadas de preguiçosas porque têm dificuldade de acordar cedo para ir à aula ou ao trabalho. (Curiosamente, quando elas estão acordadas na madruga, com todas as turbinas mentais ligadas na potência máxima, ninguém vê, porque está todo mundo dormindo.)

Diz Erika: "Nosso objetivo é acabar com as rígidas disciplinas de horário da sociedade industrial, em que todos chegam ao mesmo tempo e saem na mesma hora". A industrialização exige a uniformização, ou seja, todo mundo chegando e saindo ao mesmo tempo, todo mundo se comportando de maneira ordenada e previsível.  Exceções não são bem vindas, porque para lidar com elas é preciso criar e manter diferentes cronogramas, e isso atrapalha a Produtividade (essa deusa grega invisível, que só se deixa perceber pelas benesses que distribui aos seus sacerdotes).

O esquema vai ser inaugurado com uma escola secundária de Gotemburgo, que a partir de setembro oferecerá turnos opcionais entre as 20 e as 8:00 horas.  Eu sempre fui um aluno medíocre quando estudei de manhã, e minha melhor fase estudantil foi quando passei para o turno da noite. Ainda hoje, sair da cama é como escalar um penhasco, mas depois que anoitece a única coisa que peço é que não me atrapalhem, porque preciso recuperar o tempo perdido. Assim como muita gente já conseguiu trabalhar em casa (sem perder 3 ou 4 horas no trânsito), muita gente pode vir a conseguir essa coisa tão simples: ser aproveitado durante o seu melhor momento.


domingo, 23 de setembro de 2012

2984) O fim do mundo (23.9.2012)




Peço desculpas pelo tom catastrófico deste título. Dada a importância do assunto, pensei em intitular esta coluna “Mulher pelada!”, para atrair mais leitores, mas o título acima me parece mais honesto em função do conteúdo. Ver e rever o filme Trabalho Interno (Inside Job, 2010), documentário de Charles Ferguson sobre a crise financeira de 2008 (que não acabou ainda – o mundo continua vivo, respirando com a ajuda de aparelhos) me leva a pensar neste episódio emblemático do gangsterismo denominado “capitalismo financeiro”, que arruinou centenas de milhões de famílias pelo mundo afora. O filme ganhou o Oscar de Melhor Documentário, uma atitude corajosa da Academia, ou talvez nem tanto - fico imaginando quantos dos seus membros perderam suas poupanças devido às maracutaias que o filme denuncia e expõe.

Duas coisas aconteceram. De um lado, a omissão dos governos em fiscalizar esse mercado, impor limites, atribuir responsabilidades, investigar os delitos e punir os transgressores. (É para isso que existem os governos, amigos, e isso, por incrível que pareça, não é cerceamento das liberdades individuais. Pelo contrário.) Do outro lado, a emergência de uma casta de executivos, economistas, altos funcionários, advogados e políticos que descobriram uma maneira rápida de fabricar dinheiro imaginário tendo como matéria-prima o dinheiro real dos correntistas e aplicadores.  Esse dinheiro real era multiplicado 100 ou 200 vezes numa ciranda de transações cada vez maiores, pagando dividendos fantásticos. E criando uma situação de extremo risco, porque era um castelo de cartas. No dia em que tombou a primeira, tombaram todas.

Quando os correntistas e aplicadores perguntavam timidamente se aquilo era seguro, todos os consultores diziam que sim, sem dúvida. Mesmo sabendo que não era.  É impressionante a cara-de-pau deles no filme, interrogados nas CPIs, tirando o seu da reta e dizendo que o que tinham passado para os clientes “era apenas uma opinião”, e que os clientes seguiram aquela opinião porque quiseram. Uma super-fraude organizada para enriquecer às custas dos leigos; uma farra que durou quase uma década.

Eu já tinha visto esta história por alto nos telejornais da época, mas é outra coisa ver os principais trambiqueiros (e os principais denunciantes) entrevistados por quem entende do assunto. Não vou transcrever aqui a cadeia de fatos, os números, os episódios. Está tudo no filme (em qualquer locadora, com versão comentada pelo diretor, ou para download aqui, com legendas: http://bit.ly/QseKmX), no websaite do filme (http://www.sonyclassics.com/insidejob/), e por aí afora. Poderia se intitular: ”O Começo do Fim”.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

2983) "Um Livro de Nonsense" (22.9.2012)




Entre os muitos centenários comemorados este ano (Luiz Gonzaga, Nelson Rodrigues, Adoniran Barbosa, Jorge Amado, Herivelto Martins, Mazzaropi, etc.) há um (na verdade, um bicentenário) que quase passava despercebido em nosso país, por ser de um poeta estrangeiro e obscuro. Em 1812 nasceu Edward Lear, poeta e ilustrador inglês, um dos grandes mestres do “nonsense” ou do absurdo.  Lear foi apontado como influência em autores tão diferentes quando John Lennon e James Joyce, e embora não tenha sido nunca um dos “grandes nomes” da poesia inglesa tem em torno de si um pequeno culto de admiradores dedicados.

Tão dedicados que enfrentam a complicada tarefa de verter para outras línguas os seus versinhos sem sentido, que ele mesmo ilustrava de maneira muito divertida. Lear cultivou o limerick,, uma forma de poesia inglesa que consiste numa estrofe de cinco versos onde o 1, o 2 e o 5 são longos e rimam entre si, e o 3 e o 4 são curtos e rimam um com o outro. O limerick é tipicamente uma estrofe meio absurda e meio obscena para ser cantada em público enquanto se toma cerveja num bar. Para ter uma idéia de como se canta, lembrem a melodia do desenho animado de Popeye, aquela que diz “Oh Popeye the sailor man...”  Um limerick se encaixa aproximadamente numa melodia como aquela.

Vinicius Alves arriscou-se a traduzir e homenagear Lear em seu centenário, e publicou este ano Um Livro de Nonsense (Florianópolis: Bernúncia, 2012), um livro destinado a “crianças de 8 a 88 anos”, com 44 limericks de Lear. O livro traz na página esquerda o original inglês (com a ilustração do autor) e na página oposta a tradução, que sempre toma inúmeras liberdades, mantendo uma certa semelhança com o original mas pulando para direções inesperadas. Lear empregava muitos nomes próprios (pessoas e lugares) em suas rimas, e o tradutor brasileiro vê-se forçado a inventar outros, que sugerem novas rimas, e assim por diante. Vinicius Alves também interfere (de forma positiva) na estrutura do limerick de Lear, o qual tinha o hábito de repetir na última linha a frase da primeira; alguns tradutores optam por evitar essa repetição, criando um verso novo. (Eu teria feito o mesmo.)

Veja-se este exemplo: “There was an Old Man of Berlin / whose form was uncommonly thin; / till he once, by mistake, / was mixed up in a cake, / so they baked that Old Man of Berlin”, que vira: “Havia um Velhinho em Berlim, / mais magro que o meu dedo mindim, / até que num dia errado / à massa ele foi misturado, / pelas doceiras que faziam quindim”. O divertido nessas traduções é ser fiel, não às frases, mas ao espírito lúdico, trocadilhesco e irreverente do original.

2982) Escrever e respirar (21.9.2012)



(Londres, 1940)


Suponhamos que daqui a 100 anos a atual crise ambiental se agravou a um tal ponto que a poluição envenenou a atmosfera de modo irremediável. Para sobreviver, a humanidade construiu imensas usinas produtoras de cilindros de oxigênio, que são acoplados aos nossos narizes desde o momento em que o cordão umbilical do bebê é cortado na maternidade. Todo ser humano vive feito um mergulhador, com aquele trambolho de metal numa mochila às costas e os tubos flexíveis conduzindo aos pulmões o gás indispensável à vida.  É de graça? Quem dera. As indústrias e os governos cobram, e cobram caro por isso. Mas todo mundo paga, ou melhor, quem está vivo é porque consegue pagar. Os que não conseguiram não pertencem mais à paisagem.

Um belo dia, um grupo de indústrias independentes inventa um processo químico de limpar a atmosfera e num piscar de olhos, em 20 ou 30 anos, o ar volta a ser uniformemente respirável, ou pelo menos fica igual a este ar que respiramos em 2012. E agora? O mundo entra em crise.  Dezenas de milhões de desempregados superlotam a Praça Tahir, a Plaza de Mayo, Wall Street, o Vale do Anhangabaú. “Queremos de volta a indústria do oxigênio”, bradam eles, arquejantes (e meio bêbados, claro, seus pulmões não estavam acostumados àquela overdose). Os governos arrancam os cabelos porque vão ficar sem os 71% de impostos que cobravam sobre a indústria respiratória. Filósofos ponderam: “Respirar de graça empobrece o senso de responsabilidade dos cidadãos. E esse desperdício de oxigênio não-respirado, francamente!”.

É uma crise assim que a tecnologia digital está precipitando num mundo que estava deixando de ter Cultura para ter Indústria Cultural. Os aspectos industriais e suas prioridades tomaram a frente, e a gente criou este universo surrealista em que a Cultura, que é o compartilhamento livre de informações e contatos entre as pessoas e os grupos, virou uma “commodity”, e nos preocupamos mais com a geração de empregos do que com a geração de idéias. É uma grave crise para todo mundo que ganhava dinheiro com música, filmes e livros – por uma coincidência sinistra, as três coisas com que eu próprio ganho a vida. O que fazer?  Ser contra? Não, amigo. Descobrir maneiras alternativas de ganhar dinheiro. Cultura é oxigênio, não pode ser nem estatizada nem privatizada, pertence aos animais individuais que somos, e não a Instituições. Na nossa cultura, aceitamos como normal que não se ganhe dinheiro para pular carnaval ou para fazer sexo.  Por que essa atitude não pode ser estendida a outras atividades?  Por que tudo tem que ser medido em termos de dinheiro?  Há mil outras maneiras de ganhar dinheiro.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

2981) Galera e games (20.9.2012)













Num ótimo ensaio na revista Serrote (http://bit.ly/NLRZYc), o escritor Daniel Galera examina a experiência dos videogames e procura apontar o que ela tem de diferente, de novo e de útil para nós. Essa discussão é parecida com a de quase um século atrás sobre “o específico fílmico”. O específico fílmico era, segundo os teóricos, um modo de experimentar o mundo através do cinema que não podia ser proporcionado pela literatura, pelo teatro, por nenhuma outra arte.  Claro que cada teórico via esse “específico” de uma maneira diferente.  Para Rudolf Arnheim, por exemplo, eram as limitações da imagem cinematográfica que produziam sua linguagem nova, única: o fato de ser limitada por um retângulo, de ver as coisas por um só ângulo de cada vez, etc.

Galera indica uma diferença essencial nos games, o que ele chama de “narrativa procedimental”, o fato de que cada jogo precisa ser jogado de maneira ligeiramente diferente, e que é somente jogando que o jogador aprende o modo de jogar o jogo e o objetivo do jogo.  Isso está na raiz da interatividade do jogo, do fato de que ele exige ações e decisões do jogador, coisa que o espectador cinematográfico não precisa executar. No cinema, existe apenas a ação intelectual de interpretar as imagens, mas o espectador não toma decisões sobre o que vai aparecer na tela em seguida. Nesse sentido, o “específico fílmico” requer a observação, e o “específico guêimico” (desculpa aí!) exige a interatividade.

Diz Galera: “A maioria dos ‘gamers’ nem se dá conta de que a narra­tiva procedimental é o que realmente os absorve e fascina enquanto dedicam horas a seus jogos favoritos. Isso não quer dizer que os personagens e o enredo sejam desprezíveis – ao contrário, são essenciais para disfarçar o fato de que estamos interpretando e executando um algoritmo. O enredo entra para nos fornecer tudo o que o algoritmo não pode: uma moti­vação, um início e um fim coerentes, um dilema moral, uma chave para asso­ciar a narrativa procedimental a um universo fantasioso ou a um episódio específico do mundo real. Mas o que jogamos é o jogo. O que nos move, em última instância, é o prazer proporcionado pela interpretação desse conjunto específico de regras, pela descoberta das maneiras como podemos interagir com esse mundo fictício, pelo aprendizado e pela habilidade progressivos que nos permitem, dependendo do jogo, fazer nossa parte para conduzir o programa a seu estado final, à conclusão da história, à obtenção de um desempenho distinto, ao recorde de pontos, ao esgotamento das possibili­dades, à exploração de todo o espaço de jogo, ao uso criativo das variáveis”.


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

2980) Nina vs Carminha (19.9.2012)




Não, amigos, eu não acompanho a novela Avenida Brasil. Aliás, faz anos que a única novela que acompanho é o Campeonato Brasileiro, onde também há heróis e vilões, suspenses e reviravoltas, tragédias e farsas, inícios empolgantes, barrigas intermináveis e nem sempre um final feliz. Mesmo assim, sou um admirador do gênero telenovelesco, ao contrário do que geralmente se pensa dos intelectuais. Gosto de futebol, cordel, forró, pulp fiction, de tudo que é popularesco; como não gostarei de telenovela? A diferença, acho, é que eu não gosto de qualquer telenovela, só gosto das que prestam.

Li comentários recentes de outros jornalistas, como Maria do Rosário Caetano, em seu Almanakito eletrônico, que disse dias atrás: “Que mal o ‘esticamento’ de Avenida Brasil está fazendo a esta telenovela, heim???  Sem assunto e sem poder resolver a trama, João E. Carneiro está cometendo terríveis atentados à verossimilhança e enchendo linguiça até mais não poder! Quem ainda aguenta as caretas e esgares da Carminha? E o chove não-molha do casal Caruso-Giardini? E Cadinho e suas três mulheres (aliás, este sempre foi um dos pontos fracos da novela, porque caricato demais!!!)”.

E ela cita Zuenir Ventura, que comentou, aludindo à cena do dinheiro roubado a Nina após sair do banco: “Nina, moça viajada, é, na verdade uma tonta, ou pensa que a gente é. Além de desconhecer a existência de cheque e transferências bancárias, não sabe que os bancos possuem cofres para guardar em segurança as fotos que fez de Max e Carminha se beijando e escondeu na casa dos outros".

Concordo com as críticas, principalmente esta de Zuenir, porque vi a cena do roubo e pensei o mesmo. A novela é um gênero mais visual do que o cinema, porque se dirige a uma platéia mais diluída e desatenta. Numa novela não existe dinheiro eletrônico, virtual.  Dinheiro tem que ser em espécie, algo visível, um pacote embaixo do braço. É o mesmo princípio que faz um personagem ir discutir assuntos pessoais na casa do outro, em vez de telefonar. A novela vive do confronto físico, olho no olho, mesmo quando isso impõe violações tremendas à verossimilhança. Neste aspecto, ela se parece mais com uma anedota do que com um romance. O romance, mesmo buscando efeitos, tem um certo compromisso com o real. Numa anedota, tudo que parece com real só existe em função do efeito, e assim é a telenovela. Não porque o público seja bobo. 50 milhões de espectadores devem ter dito: “Mas essa Nina é burra! Sair do banco assim, com o dinheiro na mão!”. Mas eles sabiam o efeito que isto preparava. Puseram as duas coisas na balança, fruíram o efeito e deram de ombros para a plausibilidade.



terça-feira, 18 de setembro de 2012

2979) O mundo islâmico (18.9.2012)




Fico com a pulga atrás da orelha quando leio na imprensa generalizações do tipo “os argentinos são egocêntricos”, “os baianos são preguiçosos”, “os políticos são desonestos”, “os sertanejos são simplórios”, “os cientistas são insensíveis”… Pobre imprensa: tão sufocada pelos prazos curtos, tão obrigada a traficar clichês. Todo clichê parece fazer sentido, porque (é triste, mas é verdade) o alcance mental de muita gente só vai até aí. Para quem raciocina desse jeito, todas as categorias acima são homogêneas, compartilham as mesmas características. Meus camaradas, nenhuma categoria no mundo é homogênea. Talvez os átomos de um elemento químico sejam todos iguais, mas mesmo nesse caso eu não boto a mão no fogo.

O websaite da emissora árabe Al-Jazeera publicou um artigo da antropóloga Sarah Kendzior (http://aje.me/UaDEcd) criticando o uso indiscriminado da expressão “o mundo islâmico”, um conceito que envolve numerosos países e centenas de milhões de pessoas.  Algo de uma complexidade que dá tontura só de pensar, e ainda assim lemos todo dia expressões como “as mulheres não têm liberdade no mundo islâmico…”.  Dizer isso é deixar de lado incontáveis diferenças políticas, econômicas e históricas entre todos esses países que cultivam a mesma religião.  

Diz ela: “Após a destruição da embaixada dos EUA em Benghazi e as mortes de quatro norte-americanos, aconteceu um protesto contra as pessoas que os mataram. Cidadãos líbios ergueram cartazes em inglês dizendo ‘Benghazi é contra o terrorismo’, e “Desculpem, americanos, estas não são ações do nosso Islã e do Profeta’. (…) Mas explicações assim não deviam ser necessárias. Não se deveria imaginar que pessoas comuns compartilham as idéias de criminosos violentos que pertencem à mesma fé”.

Nenhum de nós ficaria satisfeito com um julgamento moral ou psicológico sobre “o mundo cristão” que botasse no mesmo saco os países onde o cristianismo é predominante e aplicasse um julgamento a todos. Segundo Kendzior, buscando no Google a expressão “the Christian world” dá 5,8 milhões de resultados, enquanto a frase “the Muslim world” dá mais de 87 milhões. Não é preciso dizer que quem usa esta última são justamente as pessoas do Ocidente, e que grande parte delas pensa que os muçulmanos são iguaizinhos uns aos outros, como se tivessem saído de uma linha de montagem. Preconceito pessoal é uma coisa perigosa. Mais perigoso ainda é o preconceito cultural, a incapacidade, no interior de uma cultura, de alguém entender uma cultura diferente da sua. Pior: de enxergar a outra cultura, de perceber que ela é tão variada, dinâmica e contraditória quanto a sua.

domingo, 16 de setembro de 2012

2978) Tempestade de Dylan (16.9.2012)




O novo disco de Bob Dylan, Tempest está chegando às lojas (ou melhor, já pode ser ripado livremente). O Bardo aproveitou a ocasião para dar mais uma entrevista à revista Rolling Stone, na qual solta o verbo sobre os críticos com uma irritação que há um bom tempo não demonstrava (“all those motherfuckers can rot in hell”). Bem, como é tempo de política, ele deve estar se dirigindo aos críticos republicanos.

Já escutei uma faixa no YouTube, “Duquesne Whistle”, que mais uma vez não é rock, começa como uma daquelas cantigas “honey pie” dos anos 1930, com uma bateriazinha básica, guitarra slide, órgão de apoio... Tem um clima de botecos clandestinos da Lei Seca, ainda com um glitter e um charme dos anos 1920, mas já com um cheiro de fumaça, poeira e pólvora da Depressão dos 30. Não é rock, como aliás não têm sido os últimos álbuns de Dylan. É uma raiz melódica do rock, uma raiz mais remota que o blues, ainda que menos poderosa. Curiosamente, uma raiz que Dylan compartilha com os Beatles, cuja música entre 1967 e 1969 bebeu nessa fonte “antiquada”, graças principalmente a Paul McCartney, cujo pai tinha sido músico de banda nesse período.

Dylan retoma na entrevista a discussão sobre os versos que andou “pedindo emprestado” a outros autores em letras de canções recentes. Os casos mais notórios são o livro Confessions of a Yakuza de Junichi Saga e os poemas de Henry Timrod (1828-1867), dos quais Dylan teria usado frases inteiras. Diz ele:

“No folk e no jazz a citação é uma tradição rica e enriquecedora. Alguém aí já ouviu falar em Henry Timrod? Quem de vocês leu os livros dele ultimamente? E quem foi que o trouxe à evidência agora? Quem fez vocês se interessarem por ele? Perguntem aos descendentes dele o que acham dessa discussão. E se vocês pensam que é fácil citá-lo, e que isso pode lhes ser útil, vão em frente e vejam o que conseguem. Estou trabalhando dentro da minha arte, dentro das regras e das limitações dela. Existe aí gente autorizada que pode explicar isso melhor do que eu. Chama-se ‘escrever canções’. Tem a ver com melodia e ritmo, e depois disso vale tudo. Tudo que você usa fica sendo seu. Todos nós fazemos isso”.

E antes que qualquer zé-mané se meta a copiar versos alheios, faço eu minha advertência final: você só tem direito de copiar 10% do que usa, e seus 90% têm que ser melhores do que o material alheio que você vier a usar. É justamente o caso de Dylan. Ele usa o alheio, mas num contexto tal que o alheio fica valorizado e enriquecido pelo novo contexto. No caso de Junichi Saga, pelo menos, ele afirmou sentir-se honrado por ter frases suas citadas por Dylan.


sábado, 15 de setembro de 2012

2977) Na festa do mundo (15.9.2012)




(foto: "Paris, 1924", Henri Manuel)

"O mundo era uma festa, uma noite estrelada, o terraço de uma cobertura aberta para o oceano, a avenida da praia percorrida por pares de faróis em trânsito incessante, os edifícios com janelas iluminadas e terraços onde pessoas dançavam, gritavam rindo para nós, erguiam o copo numa saudação alegre à distância, sem nem saber que éramos. 

"Nós mesmos não sabíamos quem éramos, e isso não tinha importância; a vida era uma coisa tão boa que nos poupava de ser bons, era tão acelerada que nos poupava da menor iniciativa.  Erguíamos os braços com as taças se derramando, ouviam-se gritinhos femininos de prazer, e nos saudávamos como se toda noite fosse uma festa de reveillon, como se no futuro alguém fosse ler em todas as lápides: “Eles viveram como se toda noite fosse um reveillon”.  

"Isso éramos nós, na pedra, no mármore e no bronze. A vida era uma comemoração do mero fato de haver a vida.  Uma celebração abstrata, um brinde e um beijo a toda e qualquer coisa, fosse um aniversário, um casamento, uma vitória, um festejo em comum. Os seres humanos do nosso mundo não perguntavam o  antigo “quem somos, de onde viemos e para onde vamos”.  Perguntavam: Como foi a festa de ontem? Como vamos nos preparar para a festa de hoje?  Alguém sabe onde tem festa amanhã?  

"Vivíamos erguendo os copos, arremessando serpentinas do nosso balcão ao balcão do sobrado em frente, vendo a rua fervilhar de dançarinos, o mundo era uma festa, e estávamos celebrando.  As águas subiam, e estávamos celebrando. As luzes falhavam, a comida acabava, a bebida estava quente, mas tudo era motivo para novos risos, novos gracejos, e celebração. 

"Onde havia uma avenida era agora correnteza; passavam boiando reses, carros, pessoas. Tudo era espetáculo para nossos comentários espirituosos, nossas apostas repentinas, nossos brindes.  Entrava noite e saía noite, nascia manhã e findava tarde, e íamos de lancha ao clube para onde antes íamos de carro, e onde os salões superiores estavam sempre apinhados de multidão e música, mesmo que lá embaixo a piscina estivesse submersa no lamaçal. Subiam colunas de fumaça, e apostávamos se o vento as empurraria para o nascente ou o poente. Prédios ardiam, e alguém murmurava um verso sobre “a beleza ancestral do fogo”.  As tropas chacinavam multidões famintas e tudo parecia um videogame.  Da vida só entendíamos o que ela tinha de festa, e é no espírito de festa que hoje, entre as ruínas, tomamos a sopa rude dos desabrigados que nos acolheram em seus barracos, e brindamos, com estes canecos enferrujados e esta cachaça impura, ao mundo que deixou de existir." 







sexta-feira, 14 de setembro de 2012

2976) "Trabalho Interno" (14.9.2012)






Em setembro de 2001, as Torres Gêmeas de Nova York foram derrubadas por aviões terroristas e o mundo inteiro ficou chocado. Dá para entender – morreram quase 3 mil pessoas, o prejuízo material foi enorme, e tudo isto foi obra de um atentado feito com enorme frieza e desprezo pela vida humana. 

Sete anos depois, um atentado de proporções muito maiores, inimagináveis, foi cometido. Em vítimas fatais deve ter feito um número equivalente; quanto ao prejuízo material, foi milhares de vezes maior.  No atentado das Torres, algumas centenas de empresas tiveram um forte abalo. No de 2008, bilhões de pessoas foram (e ainda estão sendo) sacrificadas.

O “atentado” de 2008 foi a queda de dominós provocada por especulações financeiras de Wall Street e arredores. A coisa explodiu em 2008, mas os “aviões” já vinham nessa direção há muito tempo.  Muita gente alertou, mas o enriquecimento brutal de alguns milhares de financistas e executivos funcionou como uma espécie de droga. Estava todo mundo bêbado de dinheiro, todo mundo cheirado de dinheiro.  Dinheiro é a mais viciante das drogas. Quando veio a rebordosa, milhões de norte-americanos perderam suas casas, seus empregos, suas economias da vida toda.  Se a gente juntar os suicídios, os enfartes, as mortes por causa da brusca penúria financeira de quem perdeu a poupança de toda a vida, dá mais vítimas do que a queda das Torres.

O filme Trabalho Interno (Inside Job, 2010) de Charles Ferguson é um documentário com entrevistas com os envolvidos (claro que nem todos aceitaram falar) e explicações simples de economia que até um leigo absoluto como eu entende por alto. O que aconteceu, basicamente, foi que o governo deixou aos poucos de regular as atividades financeiras e permitiu operações de alto risco,que enriqueciam os primeiros operadores e deixavam a conta para ser paga por quem viesse depois. É o famoso golpe da “pirâmide” (ou “Ponzi scheme” como se diz em inglês) que no Brasil se conhece tão bem.

O filme de Ferguson passa um pente fino na farra financeira, que aliás não terminou, pois o esquema (que não se limita aos EUA) foi criado no governo Reagan, fez seu carnaval nos governos Bush 1/ Clinton /Bush 2, e foi reconduzido ao poder por Barack Obama. Logo Obama?! Por que? Um entrevistado diz: “É um governo governado por Wall Street”. As finanças do mundo foram consertadas, às custas de alguns trilhões de dólares e das economias dos gregos, dos espanhóis, etc. e outros que vêm por aí. A economia globalizada é agora um avião cujas asas caíram e foram colocadas de volta com esparadrapo, fita crepe e Super-Bonder. O avião levantou voo de novo, e estamos todos dentro.


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

2975) "Godard: The Game" (13.9.2012)



"É irônico que um dos videogames mais populares de 2031 se baseie, ao invés de numa HQ de super-heróis, na obra de um diretor tido como um dos mais herméticos e de menor índice de entretenimento do século 20.  

"Explica-se pelo fato de que Jean-Luc Godard, que em seus filmes cultivava uma intenção fanática de não emocionar o público, baseava-se quase sempre num tipo de literatura que visava o contrário.  Pode-se assim dizer (como grande parte da “intelligentzia” tem se queixado) que o game é infiel ao espírito de Godard; mas a verdade é que ao lançar mão de suas fontes de inspiração (o romance e o filme “noir” americanos, as histórias em quadrinhos, a cultura de massas, etc.) os produtores e game designers da Omegaville Inc. produziram um dos mais excitantes conjuntos de aventuras dos últimos tempos.

"Aqui, os godardmaníacos encontrarão inúmeras narrativas entrecruzadas, numa webwork hábil e que felizmente não se sente obrigada a dar muitas explicações.  

"O jogador que perseguir a trama policial de Made in USA pode se envolver a qualquer instante no thriller político de O Pequeno Soldado, e sair deste para um ambiente de guerra de Les Carabiniers.  Nana, a prostituta de Viver a Vida, é inteligentemente utilizada como ponte por onde o jogador passa de uma para outra das histórias parisienses: a aventura criminal de Acossado, os pequenos delitos de Bande à part, as conspirações subversivas de A Chinesa, as intrigas amorosas de Masculino Feminino, Uma mulher é uma mulher, etc.

"Há tiros, socos e perseguições na medida certa para os que não passam sem isso; discussões existencialistas e políticas podem atrair o leitor mais “old fashioned”, enquanto que as cenas de sexo (não apenas com Nana) são de uma franqueza quase jornalística, o que de imediato fez do game um divisor de águas.  

"A lamentar apenas a ausência de uma trama de FC: os direitos de Alphaville foram comprados por outra empresa e deverão resultar num game independente.  Mas Lemmy Caution, personagem daquele filme, é uma figura onipresente, com sua imagem de avatar frankmilleriano.  

"Só resta avisar ao jogador que quando os desfechos de todas as tramas se entrelaçam e elas começam a colapsar uma a uma, entramos no universo de O desprezo, o universo de um filme (no caso, um videogame) que está sendo feito, e todos os mistérios se esclarecem nessa nova situação.  

"Um final metalinguístico (que não é nem um pouco prejudicado por essa revelação) bem à altura do diretor que fez do cinema o tema principal de seus filmes. Aqui, o game é o tema principal do game, e o jogador sabe disto desde os primeiros movimentos.  Cotação: 5 estrelas."







quarta-feira, 12 de setembro de 2012

2974) Paralímpico? (12.9.2012)




Não sou a única pessoa que se surpreendeu ao ser avisado, pela TV, que os Jogos Paraolímpicos chamam-se agora Jogos Paralímpicos. Não vi a menor razão para isso, porque mesmo que fosse necessário eliminar uma dessas vogais do meio da palavra (“...ao...”) o resultado, ao meu ver, deveria ser algo como “parolímpico”.  Por que?  Porque olímpico vem de Olimpíadas, palavra que por sua vez vem de Olimpo, o monte Olimpo da Grécia, onde viviam virtualmente os deuses antigos. Pra mim não faz o menor sentido mutilar a raiz da palavra amputando esse “O” inicial. Se alguma vogal tem que cair, que caia a do prefixo, ora. Não dizemos “hidrelétrico”?

O saite oficial do Comitê Paralímpico Internacional diz apenas: “A palavra paralímpico deriva da preposição grega ‘para’ (= ao lado de, ou ao longo de) e a palavra ‘Olímpico’. Seu significado é que os Jogos Paralímpicos são jogos paralelos às Olimpíadas, e ilustram como os dois movimentos existem lado a lado”.  Ninguém me explicou até hoje por que motivo os ingleses derrubaram o “O” olímpico, e espero que haja uma boa razão linguística e morfológica para esse absurdo, porque sentido aparente não há nenhum. (Talvez quisessem evitar a semelhança com “parole”, liberdade condicional?...)

O professor Pasquale Cipro Neto veio ao meu socorro em sua coluna (intitulada “Paralímpico: haja bobagem e submissão”) na Folha de SP (http://bit.ly/RnCAwl), que cito a seguir:

“A formação de ‘paraolímpico’ é semelhante à de termos como ‘gastroenterologista’, ‘gastroenterite’, ‘hidroelétrico/a’, ‘socioeconômico’, das quais existem formas variantes, em que se suprime a vogal/fonema final do primeiro elemento (mas nunca a vogal/fonema inicial do segundo elemento): ‘gastrenterologia’, ‘gastrenterite’, ‘hidrelétrico/a’, ‘socieconômico’. O uso não registra preferência por um determinado tipo de processo: se tomarmos a dupla ‘hidroelétrico/hidrelétrico’, por exemplo, veremos que a mais usada sem dúvida é a segunda; se tomarmos ‘socioeconômico/socieconômico’, veremos que a vitória é da primeira. O fato é que em português poderíamos perfeitamente ter também a forma ‘parolímpico’, mas nunca ‘paralímpico’, que, pelo jeito, não passa de macaquice, explicitação do invencível complexo de vira-lata (como dizia o grande Nélson Rodrigues)”.

Resumindo: os países de fala inglesa produziram a forma “paralímpico” e a impuseram aos demais países, que vêm a reboque na criação de organismos internacionais, entidades, eventos, etc. Estes se sentiram na obrigação de adotar essa forma, mesmo que ela não faça o menor sentido em seu próprio idioma. Não é o primeiro nem será o último caso em que isso acontece.


terça-feira, 11 de setembro de 2012

2973) Roberto Silva (11.9.2012)





“Hoje não tem ensaio na Escola de Samba... / O morro está triste e o pandeiro calado”. A manhã de domingo trouxe a notícia temida há muito tempo: a morte de Roberto Silva, o maior sambista brasileiro. Tinha 92 anos, e meses atrás eu lera que estava muito doente.  Soube agora que tinha câncer de próstata.  Os sambas de Roberto Silva marcaram minha infância e adolescência, porque foi durante os anos 1950-60 que ele lançou sua coleção de quatro LPs Descendo o Morro, cujas canções tocaram nas rádios do Brasil inteiro. Veio a Jovem Guarda, veio o Tropicalismo, o Rock-BR, e Roberto desapareceu. Ressurgiu com força total aos 80 anos, e foi num artigo de Ruy Castro que fiquei sabendo do relançamento em CD da série Descendo o Morro, um CD duplo que traz todos os quatro discos.

Maior sambista brasileiro?  Que história é essa? E Paulinho da Viola, Martinho da Vila, etc.?  Bem, em primeiro lugar Roberto corre noutra raia, porque é mais cantor do que compositor, é do tempo do cantor intérprete, que grava as composições alheias. Em segundo lugar, se você fizer uma enquete com todos os candidatos a maior sambista brasileiro e tocar no nome “Roberto Silva”, o mais provável é que todos eles ponham um joelho em terra e peçam-lhe a bênção. Ele foi um artista fundador de um estilo, com sua voz grave, encorpada, expressiva, capaz de sutilezas de ironia ou de romance; uma espécie de Orlando Silva com gingado de malandro e repertório de morro.

Tive a alegria de vê-lo ao vivo no Cine Odeon, na Cinelândia, num histórico show de samba em que ele subia ao palco acompanhado de uns 20 músicos para cantar seus grandes sucessos como “Amanhã eu volto”, “Ai que saudade da Amélia”, “Emília”, “Errei, erramos”, “Falsa baiana”, “Agora é cinza” e por aí vai.  Como todos os cantores de sua época, gravou diversos estilos, incluindo bolero e samba-canção. Uma das minhas preferidas é “Jornal da Morte”, que comentei nesta coluna no ano passado (http://bit.ly/RA39i1).

O samba, que já foi o “centrão” da música brasileira, foi cedendo espaço a novos ritmos a cada década que passou, e hoje não é mais o centro, não é mais o “mainstream”, é um gênero como os demais.  Isso não significa que esteja decadente. Jornalistas param de ouvir samba e começam a achar que com a ausência deles o samba morreu. Não morreu, mas quase foi fagocitado por subgêneros de sucesso como o pagode, tanto o pagode verdadeiro de fundo de quintal quanto o pagode estilizado e “axézado” das bandas de show na praça. O samba continua a se multiplicar em talentos e não perdeu a medula rítmica, melódica e poética que foi consolidada pela geração a que pertenceu Roberto Silva.


domingo, 9 de setembro de 2012

2972) Os precogs de Dick (9.9.2012)


(Philip K. Dick)


Em Realidades Adaptadas, coletânea de contos de Philip K. Dick (Ed. Aleph, 2012), aparecem alguns contos do princípio da década de 1950 em que Dick começou a fazer experiências com os personagens a que viria a chamar de “precogs”, pessoas dotadas de precognição, a capacidade de adivinhar o futuro. A palavra “adivinhar”, neste caso, é um barbarismo, e a usei apenas para denunciar o quanto os maus hábitos verbais prejudicam nossa capacidade de entender as coisas. Adivinhar é pensar numa coisa de maneira meio aleatória, sem justificativa, sem nenhum esforço especial, e aquilo depois se revela verdadeiro. Não é isso que acontece com os precogs de Dick. O conto “Relatório Minoritário” (que deu origem ao filme Minority Report, de Spielberg) ajudou muito a popularizar esse conceito.  Os precogs são capazes de antever os diversos futuros possíveis a partir de um determinado momento; enquanto certos atos não são praticados, vários resultados podem coexistir.  O presente, para eles, é como um dado rolando, só que eles conseguem perceber que há mais fatores induzindo que dê, por exemplo, o 2 e o 5 do que o 4 ou o 3 – e essas condições mudam sem parar, a cada minuto que passa.

O que acontece, segundo Dick, é que esses futuros possíveis são instáveis. A melhor comparação com isso, na vida real, é a cobrança de um pênalti no futebol. Quando o jogador parte para a bola, várias coisas podem acontecer, na verdade estão a “um tantinho assim” de acontecer, mas estão sujeitas a micro-decisões que o chutador e o goleiro tomarão nos segundos finais.  No conto de Dick, os três precogs que trabalham para a polícia preveem os crimes antes que eles sejam cometidos, mas nunca há 100% de certeza de que o crime acontecerá, como no pênalti não se tem certeza de que o gol acontecerá. Daí que a visão de cada “precog” dê origem a um relatório sobre esse crime possível, e quando dois desses relatórios (a maioria) coincidem, a polícia entra em ação para fazer com que o crime não aconteça. A trama do conto de Dick é baseada na existência do terceiro, o “relatório minoritário”, que ele usa para tornar o enredo mais surpreendente, cheio de reviravoltas.

O filme de Spielberg foi um dos poucos casos em que a idéia original de Dick foi respeitada, encorpada e aperfeiçoada. O uso de painéis holográficos superpostos para representar as visões dos precogs é notável, e transmite bem a idéia sugerida por Dick de que o futuro já existe neste momento presente, mas existe num estágio de larva, de embrião, alguma coisa frágil e trêmula que luta para se impor e acontecer; e cada futuro que acontece sacrifica a existência de todos os demais.

sábado, 8 de setembro de 2012

2971) O tradutor e o estilo (8.9.2012)



(Sarolta Ban)


Uma obra literária consta basicamente de enredo e estilo. A história que é contada e as palavras escolhidas para contar essa história. (Sim, sei que tem muito mais coisas, mas bora em frente.) Tem gente boa de enredo e que escreve apenas mais-ou-menos, e tem gente que escreve super bem mas só imagina histórias banais. A grande e a pequena literatura estão cheias de exemplos.

Essa divisão de tarefas mentais explica, parcialmente, a existência de grandes tradutores. Tem gente que diz que o tradutor é um escritor frustrado.  Não vejo bem assim. Há mil influências pessoais e variáveis de vida que conduzem um indivíduo a essa profissão quase mediúnica, mas eu diria que muitos tradutores são pessoas que são refinadas em estilo mas não têm (ou não tentam ter) capacidade fabulatória, capacidade para inventar histórias, imaginar personagens a partir do zero, produzir peripécias. Escritores assim muitas vezes tornam-se tradutores, porque na tradução é proibido mexer no enredo, mas é preciso saber reproduzir inúmeros estilos.

O que é traduzir?  É escrever um livro que já está escrito, só que escrevê-lo em português. O livro está lá, prontinho da silva, em russo, alemão ou espanhol.  O tradutor não pode cortar cenas nem adicionar cenas.  Não pode mudar o desfecho. Não pode reduzir uma descrição demasiado longa, mesmo que não goste dela. Não pode alterar um diálogo. Por outro lado, toda essa lista do “não pode” pode ser revertida, positivamente, para um “não precisa”: ele não precisa fazer nada disso, porque já está feito, o autor russo ou alemão já se deu o trabalho de arrancar tudo a fórceps do próprio cérebro, e entregou a história finalizada para que ele, o tradutor, faça o que mais gosta: tecer sua prosa como uma aranha tece sua teia.  E acreditem, amigos, existem poucos prazeres superiores ao de tecer mentalmente uma frase inteira e colocá-la no papel antes que o vento (ou a campainha do telefone) a leve embora.

Claro que o processo não é indolor, mas se a gente avisar o quanto dói os jovens saem correndo e vão fazer o concurso do Itamaraty. Melhor falar do prazer de ler uma história brilhante e bem escrita e aceitar o desafio de reescrevê-la de tal modo que ela continue brilhante e dê a impressão de ter sido escrita em português. O tradutor é um camaleão de estilos, um coringa de vozes narrativas. Ele se veste na pele do autor a quem traduz, introjeta sua personalidade, consegue pensar igual a ele como o Pierre Menard de Borges sonhava pensar igual a Cervantes. Enredo? O enredo é um presente que o autor original lhe dá de graça, e ao qual ele deve retribuir com uma prosa feita de sangue, suor e café.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

2970) Anedota búlgara (7.9.2012)


(Drummond jovem)


Faz muito tempo que os czares saíram da paisagem política do mundo, e periga uma boa parte dos jovens de hoje não terem a menor idéia do que significa essa palavra. Ela deriva, aliás, do título de “César” que os imperadores romanos passaram a se atribuir em homenagem a Julio César; o termo gerou “Czar” em russo e “Kaiser” em alemão. Mas no tempo em que Carlos Drummond publicou seu primeiro livro, Alguma Poesia, ou seja, em 1930, os czares tinham desaparecido há bem pouco tempo, mais precisamente em 1917, quando a Revolução Russa não apenas os arrancou do poder mas fuzilou sumariamente a família inteira, crianças inclusive. Os czares foram no século 19 um símbolo da sofisticação e da gastança desbragada de todos os potentados. O Museu Hermitage, em São Petersburgo, é um resíduo da riqueza cultural patrocinada pelos czares, cujos equivalentes no mundo de hoje seriam os xeiques de Dubai e seus palácios de mil-e-uma-noites high-tech. 

Em todo caso, Drummond não se referia aos czares da Rússia, mas aos da Bulgária, em seu poema “Anedota Búlgara”, que diz: “Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. / Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, / ficou muito espantado / e achou uma barbaridade”. A Bulgária teve seus próprios czares até 1943, quando morreu o último deles, Bóris III, que era apenas oito anos mais velho do que o próprio Drummond. Não deve ser ele o personagem do poema, pois consta que era um bom sujeito, tendo inclusive peitado Hitler durante a II Guerra e se recusado a permitir a extradição de judeus.

O poema de Drummond, com sua malícia inocente, é uma polaroidezinha da psicologia desses potentados. Um poderoso cria sua própria escala de valores, seus próprios dez mandamentos, sua própria declaração dos direitos do homem. Ao invés de ser um sujeito apenas sádico, ele mistura sadismo e humanismo e os projeta em direções inesperadas. A biografia de qualquer imperador mostra que até os piores entre eles têm qualidades e virtudes que seríamos capazes de admirar em alguém. Mandam matar milhões numa guerra, mas protegem as artes e as ciências; são cruéis com os súditos mas são maridos carinhosos e pais dedicados; e assim por diante. O czar drummondiano é um personagem de cartum retratando, com a aparente ingenuidade de uma pintura de Chagall, essa deformação de perspectiva. Não é muito distinto de outros personagens do mundo de hoje: torturadores que ouvem Mozart, ditadores que financiam bienais de arte, pedófilos que são bons chefes de família, bilionários capazes de deixar anêmica a economia de um país e depois dar-lhe de presente uma dúzia de creches.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

2969) A arte do photoshop (6.9.2012)




O termo “photoshop” virou hoje em dia sinônimo de alteração, interferência ou falsificação de uma imagem. A técnica digital fez com que até um desocupado e leigo como eu seja capaz de pegar uma foto e apagar a presença de uma pessoa, coisa que antigamente só o Departamento de Propaganda do Kremlin era capaz de fazer. Engana-se quem pensa que isso surgiu com a imagem digital. No tempo do negativo em celulóide e da cópia em papel havia mil técnicas para interferir na imagem, como aliás o Kremlin (e o Pentágono) faziam a dar com o pau. Claro que nem sempre isso era feito por manipulações maquiavélicas. Os fotógrafos antigos interferiam na imagem, em geral, para obter efeitos estéticos mais interessantes, ou até (vejam só a ironia!) para produzir imagens mais parecidas com a realidade (ou com o modo como a realidade é vista a olho nu). Os negativos antigos, por exemplo, reagiam de forma desigual à luminosidade do céu e à luz refletida na paisagem, de modo que era hábito, cem anos atrás, tirar duas fotos do mesmo ângulo, com medições de luz diferentes, e depois recortar e colar o céu de uma e a paisagem de outra.

A interferência na imagem, portanto, pode ter como objetivo produzir: 1) imagens mais realistas; 2) imagens fantásticas ou impossíveis; 3) imagens esteticamente mais interessantes onde o realismo fica em segundo plano (as fotos do Instagram, hoje em dia, produzem coloridos fantásticos que nossos olhos não veem); 4) imagens que sutilmente querem se fazer passar por autênticas, sem dar a perceber que foram manipuladas (o efeito Kremlin-Pentágono).

O museu Metropolitan (Nova York) vai inaugurar em outubro uma exposição intitulada “Falsificando: a Fotografia Manipulada Antes do Photoshop” (ver: http://bit.ly/KHaYSc), com mais de 200 amostras produzidas entre as décadas de 1840 e 1990. São exibidas diversas técnicas de manipulação: múltipla exposição (várias imagens num só negativo), imagens combinadas (colagem de partes de diferentes negativos), fotomontagem, pintura e retoque tanto de negativos quanto de cópias em papel.

Quase dois séculos de existência da fotografia produziram uma cultura extremamente dependente da imagem, onde cada pessoa se transforma num São Tomé (“só acredito no que vejo”), mas um São Tomé ingênuo (“já que estou vendo, deve ser verdade”). O fato de hoje sabermos que uma fotografia é tão pouco-ou-muito confiável quanto um desenho ou uma pintura não desvaloriza nenhuma dessas técnicas. Apenas nos deixa mais cautelosos quando quisermos usar uma foto como prova de qualquer coisa, inclusive de que o mundo é real e que nós existimos de fato.