quarta-feira, 5 de setembro de 2012

2968) Meu habitante (5.9.2012)



(The Bully, Alexander Jansson)


Não sei de onde ele veio nem há quanto tempo me habita. Está incrustado em mim de tal maneira que nada me custaria supor que eu e ele somos um só.  Sei que não somos porque minhas vontades não coincidem com as dele, nem meus impulsos, nem nada na minha vida.  Vivemos num permanente desacordo e desencontro, e ainda assim já não imagino como poderia ser minha existência sem essa presença invisível que desassossega meus propósitos e enche meus dias de sustos, de revelações. 

Há momentos em que mantenho o controle das pernas que me conduzem pela calçada, mas é ele quem obriga meus olhos a seguirem uma silhueta feminina que vem e passa. Há dias chuvosos em que nada me apetece mais do que ficar encolhido sob os cobertores, na penumbra do quarto, mas ele me obriga ao banho, ao metrô, à Biblioteca, à descoberta de livros que nesse dia se tornam um recomeço para minha vida. Quando penso em distrair minha madrugada saltando de saite em saite na web, passeando a mente sem pensar, ele me faz cortar de brusco a conexão, abrir um arquivo de texto e produzir algo que me inquieta, me faz derramar lágrimas de que eu não me sabia possuidor, e deixar cravado ali um episódio obscuro, relatando coisas que não aconteceram na vida de pessoas que nunca existiram, mas que passam a me servir de espelho ou mapa.

Ele me contraria e me inquieta quando tudo que desejo é sossego e paz, e por outro lado é ele quem me faz desligar a algaravia multicor da TV e me recolher ao quarto, à escuridão, ao teto onde se entrecruzam reflexos dos faróis lá da rua, numa música-de-câmara silenciosa.  Não sei por que me habita. Para obter o que certamente procura poderia estar instalado em qualquer outra pessoa; quem sabe o improvável mérito que enxergou em mim e que o fez preferir meu cérebro e meus olhos aos das pessoas de minha família, aos dos meus vizinhos do lado.

Percebi sua presença desde muito cedo, ainda garoto, e é a ele que atribuo grande parte das minhas contradições de jovem, que hoje na velhice já me parecem tão inevitáveis quanto possuir um lado direito e um esquerdo. Nunca falei dele a ninguém. É ele quem lê os livros e vê os filmes, ele quem escreve e compõe, ele quem faz amor quando desperto e quem sonha quando adormecido; já eu, penso somente em trabalhar, pagar as contas, atender os telefonemas, cumprir os compromissos, obedecer às ordens mudas das tarefas cotidianas.  Durante muito tempo eu o desprezei e repeli como se fosse um intruso, um aproveitador; mas chegamos a bons termos, hoje nos alternamos no controle deste carcaça que envelhece, e não sabemos ainda qual de nós dois será o primeiro a abandoná-la.