segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

4537) Leituras 2019 - 3 (30.12.2019)




Encerrando as minhas anotações dos livros que li este ano, tenho aqui alguns títulos de obras que li ou reli depois de muito tempo. Este é um detalhe interessante, porque a gente lê um livro aos 25 anos e passa o resto da vida achando que já leu e que pode passar adiante. Nem sempre. Ninguém ouve um álbum de música (um disco realmente bom) uma vez somente. Um bom disco nos leva a revisitá-lo com alguma freqüência. Tudo bem que um disco dura uma hora, se tanto, e a leitura de um livro pode demorar muito mais. Mas a nossa lembrança do livro também precisa ser oxigenada de vez em quando.

Vão aqui, portanto, alguns títulos do Fantástico, ou do Insólito, ou da Ficção Científica, que não me incomodarei de reler daqui a mais alguns anos.



Tales of Neveryon (1978), de Samuel R. Delany.
O livro é de “Espada e Feitiçaria”, quando seria melhor descrevê-lo como “Espada e Economia Política”. Os contos interligados deste volume mostram uma sociedade escravocrata, no começo da sua história escrita, e mostra a enorme complexidade social, psicológica e política desses mundos pré-alfabeto. Sua abordagem dessas questões é comparável à da “Trilogia da Fundação” de Isaac Asimov, e mostra que um livro não precisa “pertencer” à ficção científica para descrever e interpretar cientificamente um mundo imaginário.



Les Fleurs Bleues (1965) de Raymond Queneau.
Este livro deveria ser incluído em toda lista de fantasias clássicas sobre o tempo.  Talvez não o seja porque não corresponde à estrutura clássica de uma aventura onde um personagem  se envolve num conflito que precisa de uma resolução. Um roteirista de Hollywood talvez se perdesse nesta narrativa onde dois indivíduos, separados por séculos, sonham que são o outro, e toda vez que o sonho de um se interrompe o do outro começa. Cidrolin, na Paris do século 20, e o Duque de Auge, na Idade Média, são duplos ou reflexos um do outro, e suas pequenas aventuras, que na têm nada de heróico, correm em paralelo – sendo que a história do Duque, a cada reiteração, está algumas décadas mais à frente, pulando de século em século, até no trecho final do romance ele aparece em Paris, com sua armadura, seu francês arcaico, seus escudeiros e seu cavalo falante. Os livros de Queneau são gostosos de ler mas devem ser difíceis de traduzir, pela exuberância de trocadilhos, arcaísmos, jogos de palavras, alusões históricas e outras referências obscuras, que mesmo assim não atravancam  a narrativa.



The Stepford Wives (1972), de Ira Levin.
Este romance curto e preciso me surpreendeu por sua economia narrativa, e me agradou pela semelhança estrutural com outro livro famoso do autor, O Bebê de Rosemary. Num subúrbio norte-americano, um casal jovem tenta se integrar à vizinhança de empresários bem sucedidos e suas esposas bem maquiladas, até que a mulher (uma feminista em botão) descobre a conspiração masculina que pretende transformar todas elas em robôs obedientes. É uma ficção científica narrativa com a estrutura revelatória de um conto de horror, onde uma personagem fica o tempo inteiro dizendo a si mesma que só pode estar ficando louca, que pessoas normais jamais seriam capazes de conceber e executar um plano tão diabólico... e a certa altura ela percebe que a “boa notícia” seria que de fato estava louca -- porque a conspiração é real.



Aura (1962), de Carlos Fuentes.
Um aspecto que muitas vezes fica em segundo plano na literatura fantástica latino-americana é que ela tem de um lado um Realismo Mágico fundamentado na mentalidade mágica, mítica, mitológica dos povos pré-colombianos, e pelo outro lado existe um Fantástico que busca inspiração nas práticas mágicas européias como o ocultismo, a alquimia, as artes divinatórias como o Tarô, a magia ritual, etc.  O choque entre Europa e América no século 16 não foi apenas do racionalismo europeu contra a mentalidade mágica indígena: foi também a pororoca entre os canais de contato com o sobrenatural que os invasores e colonizadores trouxeram consigo. Aura é também uma história de duplos e de reflexos – no caso, de uma mulher muito idosa que consegue projetar uma imagem física e palpável de si mesma, para seduzir um rapaz de quem ela precisa para cumprir uma tarefa. Aura traz também uma “aura” junguiana com sua narrativa de uma mulher que seria a encarnação de uma anima, um espírito vital feminino a cujo fascínio um homem não consegue resistir; e sua ambientação é quase expressionista, explorando uma mansão decadente, sombria, onde a iluminação é escassa e tudo se revela através de gritos, de sussurros, de ruídos, de passos, de perfumes, do toque de mãos no meio das trevas.



Del Amor y Otros Demonios (1994), de Gabriel Garcia Márquez.
Em relação ao livro de Fuentes é (como dizia o matuto) “uma coisa muito parecida, mas completamente diferente”. É a história do endemoninhamento de uma infanta, filha de um nobre decadente, que se suspeita ser vítima da hidrofobia e do vudu dos escravos negros. Seus acessos aterrorizantes de autoviolência física e de blasfêmia verbal levam a Igreja local a ordenar um exorcismo, e o padre exorcista, coitado, acaba se apaixonando (muito compreensivelmente, aliás) pela pré-adolescente que não era mais do que uma menina indomável que o desprezo dos pais levou a ser praticamente criada pelos negros da senzala. Um dos aspectos interessantes da narrativa é o prólogo em que Garcia Márquez explica que o enredo lhe surgiu a partir de um fato real que cobriu para um jornal em seu tempo de repórter – e o “fato real” que ele descreve é mais fantástico do que o livro inteiro. Que, inclusive por este detalhe, é um primor.




334 (1972), de Thomas M. Disch
Pertence ao subgênero da FC que pode ser descrito como “pesadelos das megalópoles num futuro próximo”, cultivado brilhantemente por J. G. Ballard, John Brunner, e outros. Disch descreve a vida cotidiana em torno de um enorme edifício residencial nas primeiras décadas do século 21, ou seja, hoje – num romance escrito nos anos 1970. “Romance” é um modo de dizer, porque Disch conta várias histórias paralelas, de famílias cujas vidas se entrelaçam. Ele examina essa Nova York do futuro não sob a ótica das inovações tecnológicas (que são poucas e discretas), mas das mudanças sociais provocadas por políticas de seguros, de emprego, de habitação, de estudo. Um romance mainstream ambientado no futuro, por assim dizer. Um bloco narrativo curioso envolve uma espécie de videogame ou RPG ambientado na Roma Antiga, que a personagem acessa através de drogas, e a respeito do qual ela se informa com um profissional que é meio psicólogo, meio consultor especializado. Outro bloco descreve as artimanhas de funcionários de um grande hospital para a venda clandestina de cadáveres recentes a pervertidos.




The Cosmicomics (1965), de Italo Calvino
Italo Calvino é talvez o autor mais bem informado cientificamente entre os muitos europeus recentes que cultivam um certo fantástico fabulatório, o que inclui algumas obras de Umberto Eco, Raymond Queneau, Salman Rushdie, José Saramago, Kazuo Ishiguro, Michel Houellebecq, e certamente inúmeros outros. Digo “bem informado cientificamente” do ponto de vista do leitor padrão de ficção científica: em suas Cosmicômicas, Calvino descreve a criação do Universo do ponto de vista de alguns seres primordiais que estão vagando pelo espaço desde as primeiras fusões de elementos pesados que dão origem às estrelas, seres que se comportam exatamente como italianos médios vivendo suas vidas cotidianas, suas brigas de vizinhos, seus problemas conjugais, suas disputas profissionais. Esta série de doze contos curtos (há uma sequência, T Zero, que ainda não li) é uma fusão incrivelmente bem sucedida entre a espantosa escala galáctica e supra-galáctica de (por exemplo) Olaf Stapledon e qualquer relato bem humorado da vida urbana da Itália moderna. É como se o Universo, em sua escala macro, fosse habitado por personagens de Federico Fellini.










sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

4536) Leituras 2019 - 2 (27.12.2019)





Prosseguindo no balanço do ano – e lembrando mais uma vez que não estou fazendo uma lista de “melhores livros”, apenas livros cuja leitura me marcou.

Os inclassificáveis

Gosto dos livros inclassificáveis. São como uma bolota de mercúrio líquido, que a gente escorre para o côncavo da palma, tenta apertar entre os dedos e ela se esmigalha, escorrendo por entre as falanges, e para recompô-la basta arrastar esses respingos uns na direção dos outros. Lá está ela. A mesma coisa de antes. Nem se lembra que acaba de nascer de novo.

São assim alguns escritores, que mesmo quando vêm de um excesso de leitura parecem imunes à literatura de que são feitos dos pés à cabeça.

Viagem em volta de uma ervilha é uma história em quadrinhos com texto de Sofia Nestrovsky e desenhos de Deborah Salles (São Paulo: Veneta, 2019), narrativa meio fatia-de-vida de uma moça que convive numa casa pequena com uma gata, sendo que as duas passam por aventuras surrealistas, meio Carrollianas, regadas a poesia romântica inglesa e com transferências para universos paralelos onde as duas acabam se entendendo.


Gostei do livro também porque ele pertence a uma biblioteca gigantesca e invisível de obras que mostram uma coisa óbvia e desconhecida: qualquer tipo de narrativa, com qualquer tipo de personagem e de ambientação, pode ser criada através de quadrinhos. Digo algo tão óbvio porque mostrei esse livro a um amigo e disse: “Olha que legal essa história em quadrinhos”, e ele folheou, pensou, pensou, e disse: “Engraçado, eu pensava que as histórias em quadrinhos só podiam falar de super-heróis, mutantes, etc.”.

Um inclassificável que descobri este ano foi o autor Manoel Carlos Karam, que é uma espécie de deus-pequenino para uma turma de amigos meus. Eu perguntava: “Mas ele escreve romance, conto, poesia, o quê?” e a resposta era sempre: “Não dá para classificar, nem descrever.”

Karam é o rei do fragmento, dos estilhaços narrativos que se multiplicam página após página, trazendo-nos de volta ao que estava sendo contado antes, incrustando coisas totalmente heterogêneas e heterodoxas numa historiazinha que se anunciava normal. Seus livros têm algo daquelas coleções que Mario Quintana fazia de aforismos, piadas, historietas de cinco linhas, comentários mordazes ou surrealistas – só que, no caso de Karam, o sentimento que predomina não é o lirismo meio sardônico do poeta, e sim uma espécie de absurdismo gerado por sete noites sem dormir.


Comendo bolacha maria no dia de são nunca (São Paulo: Ciência do Acidente, 1999) e Pescoço ladeado por parafusos (Curitiba: Arte & Letra, 2013) são os dois exemplares que me fizeram coçar a cabeça, desacorçoado, e dar gargalhadas eventuais diante dessas micronarrativas que lembram aqui a prosa sonambúlica de José Agrippino de Paula, e acolá a desenvoltura amalucada de Campos de Carvalho.


O fantástico brasileiro

Esta tem sido uma boa década para o fantástico, a fantasia e a ficção científica produzida por autores brasileiros. Pra variar, eles se queixam o tempo todo, e têm mais é que se queixar mesmo, senão todo mundo pensa que eles são como os Desincorporados, do romance de Samuel Delany, os mortos invisíveis que ajudam na astronavegação das espaçonaves, só que ninguém os percebe.

Contos do sul (Novo Hamburgo: Echo, 2013)Simone Saueressig
Back in the USSR (São Paulo: Patuá, 2019) Fabio Fernandes
O Romance da Besta Fubana (Belo Horizonte: Itatiaia, 1984) Luiz Berto


Os contos de Simone Saueressig fazem parte de uma tendência narrativa de dar novas roupagens e novos contextos a alguns mitos populares: o saco, o lobisomem, etc. Eu mesmo já fiz uma incursão nesse território, com Sete Monstros Brasileiros (2014). Os seus “contos do sul” são sulistas na ambientação, em alguns detalhes saborosos da voz narrativa e dos diálogos.

Os contos se aproximam do que os norte-americanos chamam de Dark Fantasy. Aqui no Brasil se traduz isso por “fantasia escura”, mas eu prefiro traduzir por “fantasia tenebrosa”, e a defino como uma fantasia que se aproxima do horror e de uma certa brutalidade existencial. Não é aquela fantasia aconchegante que desde o início nos garante um final feliz, ou pelo menos satisfatório. É uma fantasia onde se conta a história de uma tragédia desencadeada pelo contato com a treva do sobrenatural.



Já falei aqui no blog, mais extensamente, sobre o romance de Luís Berto, um clássico subterrâneo mas vivíssimo do romance nordestino. A Besta Fubana é uma criatura mítica inventada por Luís Berto mas que não fica muito distante da “Pavoa Devoradora” que seu cúmplice literário Orlando Tejo inventou para dar um colorido fantástico à sua lenda sobre o poeta Zé Limeira. É um ser gigantesco e multiforme, que vive num lugar remoto do Universo e parte na direção da nossa galáxia com a finalidade precípua de semear o terror e o assombro na população de Palmares (PE).  

É um épico-satírico barroco-sertanejo, na linha de outros romances de Ariano Suassuna, Nei Leandro de Castro, Carlos Emilio Corrêa Lima, Aldo Lopes, e outros. O seu viés do fantástico não procura ter a menor filiação às correntes européias ou norte-americanas – filiação frequentemente buscada pelos romancistas do Sudeste.  Luiz Berto inventa as regras à medida que o jogo é jogado; não se preocupa com regras, porque seu romance é uma explosão rabelaisiana (ih, olha ai a Europa, erguendo-se do túmulo) de erotismo, escatologia, sátira política e exuberância animal.

Leia mais aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2019/02/4434-o-romance-da-besta-fubana-1422019.html

Na área da ficção científica brasileira, com a qual estou em dívida, pois confesso ter lido pouca coisa, destaco o Back in the USSR de Fábio Fernandes. É uma dessas sátiras amalucas descrevendo um futuro divergente onde graças à existência de técnicas científicas de ressuscitação John Lennon está vivo (é ele o protagonista do livro), e se envolve numa dessas tramas de espionagem política high-tech onde grupos terroristas ou anarquistas dissidentes uns dos outros se engalfinham em busca de objetivos políticos que nem eles mesmos entendem.

Narrativas malucas e desconjuntadas como esta não são privilégio de humoristas como o Monty Python: eu vejo semelhanças entre a trama delirante do livro de Fábio e obras de Stanislaw Lem como O Incrível Congresso de Futurologia ou Manuscrito Encontrado Numa Banheira, de John Sladek (The Muller-Fokker Effect) ou Rudy Rucker. É um absurdismo que só pode ser bem aproveitado se perdermos a ansiedade de que o enredo faça sentido, no sentido tradicional do termo. Não adianta ficar calculando: “Peraí... se A mandou matar B, por que então C disse a B que D ia matá-lo, quando o grupo de D se aliou ao grupo de F para eliminar, A, que deixou bem claro sua oposição a G...”

Melhor esquecer a lógica literária e embarcar na montanha-russa de surpresas, reviravoltas, alusões satíricas ao “mundo do lado de cá”, na vertigem das narrativas que se bastam a si mesmas.








terça-feira, 24 de dezembro de 2019

4535) Natal 2019 (24.12.2019)




1
... e quando o fim acopla-se ao começo,
e a serpente abocanha a própria cauda,
e o escritor, na derradeira lauda,
põe “Capítulo 1” no cabeçalho,
o riverão retoma o seu atalho,
riocorrente em busca, ruminando
rumo... ao futuro? Ao Sempre? Ao Quase-quando?
Não sei. É mais um ano que se encerra,
mais uma volta da precária Terra
em torno deste Sol que nos bronzeia.

2
Quem dera o Sol fosse uma Lua cheia
de luz e enlevo, brisa e maresia...
Quem dera a vida fosse essa poesia
que nada prova, e tudo justifica!
Um poema revela, e não explica;
a canção é o que faz, mais que o que diz.
Uma canção nos salva de um país;
só nos resta este bálsamo, este unguento;
isso que chamam de “pertencimento”
(e nunca vi na enciclopédia Barsa...).


3
Em cada alô, um vírus se disfarça.
Em cada adeus, o som da guilhotina.
Não é de hoje... a quadra natalina
parece um longo Dia de Finados
e a nostalgia dos antepassados
nos faz franzir o cenho ante o futuro...
Mas este vinho é muito bom, eu juro.
E nada é tão real quanto os sentidos.
Quem quiser que lamente os tempos idos:
eu brindo a quem se foi, mas vivo o instante.

4
A vida vai de minerol infante
(dizia Rosa, em sua “Tutaméia”)
e sempre foi assim, tosca, plebéia,
negociada em trancos e barrancos;
e a gente rala, sustentando os Bancos
(o Nosferatu da economia
que não pode sair à luz do dia
pra não ganhar a roda, o pelourinho)
e se o que sobra nos custeia um vinho...
como negar que ainda estou no lucro?

5
Pois seja o Tempo esse cavalo xucro
corcoveando no curral do Agora,
tentando me atirar, longe, lá fora,
nos além-cercas da Eternidade...
Eu me agarro na sela com vontade
de mais solstícios e mais equinócios,
e digo ao Tempo assim: “Sejamos sócios!
Se me poupares, te darei bom uso!”
E o Tempo gira como gira um fuso.
E a resposta me dá: “Outro dezembro.”

6
Sei que tudo será tal como lembro.
Ou não? Qual a hipótese pior?
As lenga-lengas que direi de cor
ou o salto no susto, no imprevisto?
É no Natal que o mundo passa Cristo
no cobre, e deixa dez para o garçom. 
Foi este o mundo que me deu o tom,
é essa a bolsa a que forneço o dízimo,
e ninguém venha com lições de abismo:
estou cavando no fundo do poço.

7
Mas pra que tanta briga e alvoroço,
tumulto de emoções contraditórias,
esperanças, humilhações, vanglórias,
a nefanda “cantiga da perua”...
Olha o mundo passando. Olha essa rua
a mesma que cruzaste de outras vezes;
cada rodada de mais doze meses
te traz de volta ao velho sempre novo,
este país de pólvora e de povo
onde a cada Natal aumenta o preço...










domingo, 22 de dezembro de 2019

4534) Leituras 2019 - 1 (22.12.2019)




Os jornalistas têm uma rotina decemberista onde comentam as novidades do ano que se encerra. Não é o meu caso. Como ninguém me paga para monitorar os lançamentos, me desobrigo de acompanhá-los, o que é um alívio. Só leio um livro novo se me interessar muito e não for muito caro. Minha leituras são fruto do acaso (pessoas que encontro e que me dão seus livros), das amizades (livros remetidos por amigos, conhecidos e desconhecidos), e de impulsos inexplicáveis que me fazem pegar, hoje, um livro que estava intocado na estante há mais de 25 anos. Por que logo hoje? Não sei, e não preciso saber.


Poesia

Leio muita poesia, mas tenho o defeito (e sei que é defeito) de na maior parte do tempo estar lendo e relendo os mesmos vinte poetas que já leio há meio século. Fazer o que? Não leio para saber de novidades. Leio para saber se o que fazia sentido continua fazendo. (Spoiler: nem sempre faz.)

Mesmo livros de poesia, que em geral são fininhos e têm vastos latifúndios de página em branco, eu não leio do começo ao fim. Livro de poesia é como caixa de chocolate. De vez em quando a pessoa vai lá e saboreia um.

Eu tenho amigos poetas que não leem os livros dos amigos, nem sequer os meus, com esta imbatível desculpa: “Não quero correr o risco de ser influenciado pelos meus adversários.” Eu não vejo os outros poetas como adversários, assim como não vejo como adversários (nem sequer como concorrentes) aquelas pessoas silenciosas e resignadas na fila da Lotérica. Estão ali fazendo sua fezinha, tal como eu.

Dito isto, destacarei entre muita boa poesia que li uns poucos livros. Um deles é de um poeta que não conheço pessoalmente, Izalco Sardenberg, e me foi enviado através de um amigo comum. É um poeta da minha idade e de leituras aproximadas às minhas, o que de certo modo aproxima os diapasões. O livro é Remissão (São Paulo: Amar-Amaro, 2019), onde se leem coisas como:

Choro por besteira,
um dia chorei ao ver a mãe
com o filho de perna mais curta que a outra.
Iam de mãos dadas, sob a guarda de um anjo cruel.
Chorei ao ouvir no Spotify uns versos
que não entendi (mas os sons, encadeados
e escandidos naquela voz eram tão belos).
Talvez seja hora de desistir,
talvez suba de novo a montanha de lava
e então encare a boca ardente.  (p. 16)

Outro poeta da mesma geração é o nosso paraibano-por-consagração W. J. Solha, que nos últimos anos vem desenvolvendo em linhas paralelas uma série de romances muito pessoais sobre a Paraíba e o sertão paraibano, e uma série de livros de poemas em versos longos, salpicados de divertidas rimas internas, onde ele rastreia, identifica e coleciona as “rimas do mundo”, as pequenas continuidades que parecem tornar a nossa civilização uma obra de arte escrita por uma consciência coletiva.

O livro da vez é Vida aberta (Guaratinguetá: Penalux, 2019), onde ele comenta:

O trem, a enferrujar na mata que lhe sobrepuja os trilhos,
não se altera ante o outro que – de repente – ao lado lhe aflora,
a quinhentos quilômetros por hora.
Vida... é isso que te põe ao lado da estrada.  (p. 33)


Li muitos cordéis este ano, em função de uma série de TV que escrevi (No País da Poesia Popular, Truque Produções, Bahia, direção de José Araripe, lançamento previsto para 2020 no CineBrasilTV). Comentei vários deles aqui no Mundo Fantasmo ou em redes sociais. Vou destacar um, pela ousadia da idéia e pelo vigor da linguagem: Veredas – versão em cordel, de Edmilson Santini (Rio: ed. Do autor, s/d).

Santini faz num cordel de tamanho padrão um resumo dramatizado dos episódios principais do romance-fluxo de Guimarães Rosa, o Grande Sertão. Usando estrofes de extensão variável, mas sempre coladas à sextilha e à décima, e seus esquemas de rima tradicionais, ele recria a prosa de Rosa com seus recursos, que não são poucos, e produz um cordel com medidas iguais de reverência e de originalidade.

Diadorim, toda gateza,
o ódio, a faca, a vantagem:
seus verdes olhos: Coragem;
Coração, toda afoiteza...
Frente à tamanha proeza,
puxei da mente meus ais,
do fundo dos embornais,
tirei alegre um suspiro;
num clim de costelas, um tiro!
Ele arriou pra jamais...  (p. 35)


São amostras, apenas. Como falei acima, não faço balanços minuciosos da produção literária. Deixo isso para os profissionais.


Memorialismo

Por gosto pessoal e eventualmente por leituras de trabalho, acabo entrando em contato com livros de pessoas que em forma de crônicas, autobiografias ou relatos confessionais falam do passado, de suas experiências, do tempo que viveram sobre a terra.


Falam de sua história familiar, como o cearense Arievaldo Viana em Sertão em desencanto (Fortaleza: Queima Bucha, 2016), uma reconstituição que parece escrita a quatro mãos por um historiador e um memorialista. O primeiro retraça as árvores genealógicas de várias gerações até um passado distante, com nomes, datas e locais escrupulosamente anotados. O segundo vai pincelando comentários ao longo dessa história, registrando lembranças, encontros pessoais com um avô ou avó, histórias pitorescas ou estranhas que passam de geração em geração como uma moeda rara que se pode dar de presente mas é proibido gastar.

Numa raia parecida corre o livro Novas cartas do sertão do Seridó (Natal : edição do autor, 2009) de Paulo Bezerra “Balá”, que já comentei mais extensamente aqui no blog. Paulo Balá, já falecido, era um fazendeiro da velha estirpe, afeito ao trabalho manual e à lida com os trabalhadores. Seu livro reconstitui histórias de época, personagens esquecidos, e principalmente serve como um documento valioso de hábitos, costumes, técnicas, detalhes da vida cotidiana nas velhas fazendas nordestinas, que ele registra com olho infalível e uma prosa sóbria e vívida.



A crônica curta e leve também cumpre esse papel, e foi pra mim uma surpresa agradável o livro Onde davam esses trilhos, de Lido Loschi (Vitória: Cousa, 2019). O autor é ator do grupo Ponto de Partida, de Barbacena (MG) e suas crônicas são todas sobre lembranças de infância. Em vez do tom meramente nostálgico e individualista do “que saudades que eu tenho da aurora da minha vida”, o livro de Lido Loschi é cheio de episódios de traquinagens (algumas meio cruéis), brincadeiras, tristezas, desobediências, aventuras que tanto terminam bem como mal, a excitação coletiva de garotos que vivem na fazenda e parecem ter o mundo à sua disposição. A prosa não é nostálgica nem sentimental: narra e descreve em palavras poucas mas precisas.

Outra surpresa foi ter folheado um volume memorialístico carioca, Antonio’s – caleidoscópio de um bar (Rio: Record, 1992), de Mário de Almeida. O Antonio’s foi um bar famoso do Leblon carioca, frequentado por músicos da Bossa Nova, artistas plásticos, escritores, diplomatas, cineastas, jornalistas e o escambau, além de políticos importantes e gente com muita grana no bolso. Seu administrador, o Manolo, era um boa-praça que cuidava dos fregueses e eventualmente lhes servia de psicanalista, confessor, avalista, enfermeiro, consultor conjugal, e sei mais o que. É a história de algumas décadas da boemia carioca, com muitos textos do autor Mário de Almeida, e numerosas contribuições fornecidas por boêmios famosos e saudosos.


E gosto de pessoas contando (meio egoisticamente, mas somos todos egoístas) os episódios da própria vida, naquela narrativa eu-eu-eu onde o resto da humanidade aparece com meros coadjuvantes. É o caso do excelente Vivir para contarla, de Gabriel Garcia Márquez (já traduzido no Brasil). Márquez tem o dom da narração, e este livro tem camadas superpostas de memorialismo familiar (talvez um terço dele se ocupe das peripécias da conquista da mãe pelo pai), relato da vida política da Colômbia (que conheço muito pouco), apanhado de leituras, descobertas e influências. Pulando de Aracataca para Cartagena, daí para Bogotá, daí para alguma outra cidade, Márquez acumulou a experiência pessoal no trato com pessoas que acabou encorpando de maneira única o seu “realismo mágico”. É um livro longo, cheio de idas e vindas, que depois da última página dá uma vontade danada de voltar para a primeira e começar a re-entender tudo aquilo.











quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

4533) Minhas canções: "Sendo Amor" (18.12.2019)




(Sinedei Moura)

Tenho postado comentários sobre minhas canções gravadas, mais ou menos por ordem cronológica. Ocorre aqui um fato curioso: uma das minhas primeiras canções em parceria foi feita em 1978, foi cantada milhares de vezes em palcos e em mesas de bar, mas só foi gravada mais de vinte anos depois, quando o meu parceiro, Sinédei Moura (que não é cantor profissional, é professor universitário), gravou seu primeiro CD, Cena de Perigo (2002).

Eu e Sinédei (o nome dele não tem acento, mas a gente usa, para marcar a pronúncia, que muita gente confunde) passamos em 1973 no vestibular da FACE (Faculdade de Ciências Econômicas) da Universidade Federal da Paraíba, Campus II, em Campina Grande. Ele entrou para Economia e eu para Ciências Sociais, com meu plano meio utópico de estudar Antropologia Urbana (o que venho fazendo por conta própria desde então). 

Ele vinha de Fortaleza, e logo passou a fazer parte da turma que se reunia na “casa de Son”, dos irmãos Jakson e Marcos Agra. Com Son, que era um letrista transbordante, compôs dezenas de canções; quando me mudei para a Bahia, mandei-lhe uma letra, a de “Sendo amor”, que acabou se tornando a minha primeira música feita propriamente em parceria.

Eu tenho facilidade, talvez excessiva, para escrever letras com estrofes fechadas e rimadas, no estilo de Bob Dylan ou dos cantadores de viola. Algumas letras minhas que as pessoas acham quilométricas, e pensam que exigiram semanas de trabalho, foram rabiscadas ao longo de uma única tarde. Mas para fazer letras mais elaboradas (e num tom mais sentimental, mais introspectivo) eu nunca tive facilidade.

Esta canção surgiu numa época em que a gente escutava “até furar o disco” o álbum Minas, que Milton Nascimento tinha lançado poucos anos antes, e eu botei no juízo que iria escrever uma letra de amor tão séria (longe do tom satírico, que me sai tão natural quanto a respiração) quanto a de “Beijo Partido” de Toninho Horta, uma música que me fascinava pela tortuosidade da melodia e pelo peso misterioso de versos como “hoje não passa de um vaso quebrado no peito” ou “onde estará a rainha que a lucidez escondeu?”.

É sempre interessante a gente reavaliar uma canção, anos depois, tentando localizar de onde veio o primeiro impulso de fazê-la. Para mim, pelo menos, nasce muitas vezes disso: de ouvir uma canção impactante feita por alguém e pensar, “preciso fazer uma coisa assim”, ou seja, uma coisa que produza um impacto parecido. Seja na levada, no ritmo, no estado de espírito, na textura poética.

Geralmente, o resultado final fica a anos-luz de distância, como se pode ver aqui. Minha letra (pra variar) não tem nada a ver com a canção de Toninho Horta: é uma letra parnasiana, simétrica, toda medidinha. E meio de paletó-e-gravata pro meu gosto; mas é valorizada pela melodia de Sinédei, e foi a primeira vez na vida em que eu tive essa revelação estranha de ver alguém extrair, de uma penca de versos escritos “em branco”, uma melodia que, em retrospecto, já parecia estar contida neles.

Eu e Sinédei fizemos outras canções depois, mas esta ficou como um marco. É uma música que cantei pouco em meus shows, porque minha “persona” no palco sempre foi meio galhofeira, uma mistura de Raul Seixas e Jorge Mautner, ou seja, de um cara que não está nem um pouco preocupado em “cantar bem”, mas em dar uma sacudida no juízo de quem escuta.

Sinédei também não é um grande cantor – seria, se a Universidade não tivesse atrapalhado. Mas é um músico aplicado e cheio de sutilezas. Aqui no YouTube tem uma gravação com banda desta nossa primeira música, e que foi a primeira minha em mais de um critério. E é a cara de um tempo.

  


Sendo Amor
(BT / Sinédei Moura)


Seja o que for, que seja tudo
e seja até o fim;
e sendo amor, saiba que eu não me iludo
e não se iluda quanto a mim.

Que novamente dancem
nas velhas cordas fatigadas
as canções desenterradas
de dentro de mim;
que novamente cansem
os corpos extraviados
nos seus trajetos cruzados
que fogem do fim.

Até que se faça o silêncio de aço
que sempre coloca de novo seu braço em meus ombros,
e depois, sem que eu nem sequer acredite,
outro olhar desgarrado apareça e habite
meus escombros.













sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

4532) Dicionário Aldebarã XIX (13.12.2019)




(ilustração: Huang Yung Fu)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.


“Lhossa”: reunião semanal numa rua, ou num bairro, onde as pessoas levam pequenos problemas de ordem prática para pedir conselhos aos demais: qual a melhor maneira de consertar uma cerca, como preparar determinada comida, o que fazer com um filho-problema, etc.

“Etrix”: pequenas molas que, acopladas aos pés das cadeiras, permitem à pessoa ficar sentada e mexer o corpo para exercitá-lo, pois a cadeira acompanha essas micro-mudanças de posição.

“Teruch”: diz-se de certas misturas de infusões vegetais com o poder de desentupir encanamentos, esgotos, etc., e por extensão diz-se o mesmo de bebidas alcoólicas de baixo preço.

“Quavryub”: cortinas com aberturas móveis, que podem ao mesmo tempo deixar um ambiente na penumbra e dirigir fachos de luminosidade na direção que for conveniente.

“Elkism”: a sensação permanente e às vezes inexplicável de que por mais que tudo pareça estar em paz essa paz pode ser estilhaçada a qualquer instante por alguém que chega, uma voz que se ouve, um recado que se recebe.

“Ardofoot”: dança coletiva, espécie de quadrilha, onde todos os participantes dançam de olhos vendados, sentindo-se pelo tato e trocando de pares de acordo com “deixas” da melodia. Usa-se também na linguagem diária para descrever uma situação que a pessoa não entende por completo mas está se saindo como pode, na base do improviso.

“Gelaya”: jardins de flores organizadas geometricamente para serem vistos de forma diferente, criando desenhos específicos, de cada janela da casa.

“Timpirol”: rito de passagem a que, em algumas regiões, se submetem os adolescentes de ambos os sexos, e que incluem a adoção de um apelido, a incineração de todas as roupas que possuíam, numa cerimônia em que vizinhos e parentes comparecem trazendo-lhes roupas novas e recados com pequenas surpresas (ofertas de trabalho, propostas para viagens, etc.).

“Riazons”: tubérculos avermelhados que servem tanto para a alimentação quanto para a fabricação de tintas, com as quais são pintados os passarinheiros, viveiros abertos que servem de abrigo às aves.

“Maytor”: período de lua-de-mel que precede o casamento; algumas semanas antes da data fixada para a cerimônia, os noivos têm direito a passar 10 dias a sós, liberados de trabalho e/ou estudos, para se conhecerem melhor. Findo este período, eles confirmam ou cancelam o matrimônio.

“Ormassycs”: trabalho típico de pessoas idosas, remuneradas por uma “caixinha” mantida pela comunidade, e que servem de cicerones ou guias aos pontos interessantes de um bairro, de um quarteirão, porque sabem tudo que aconteceu ali, os lugares onde moraram pessoas conhecidas, onde aconteceram fatos memoráveis, etc.

“Sokkun-Udis”: lugares onde ocorreram grandes batalhas no passado, e onde hoje as pessoas vão, em datas comemorativas, para meditar em silêncio, sem festas, sem homenagens, sem discursos; apenas sentam-se em círculo ao anoitecer, conversando o mínimo possível, e só se retiram ao nascer do sol.













terça-feira, 10 de dezembro de 2019

4531) O detetive e o mágico (10.12.2019)




Há um subgênero do romance (e do conto) policial voltado para os Crimes Impossíveis, aqueles crimes onde uma pessoa é encontrada morta num quarto trancado por dentro, ou apunhalada num campo coberto de neve onde só se veem suas próprias pegadas, ou entra num aposento vigiado pelo lado de fora, some... e não reaparece.

Para mim, os grandes mestres desse tipo de história são John Dickson Carr (que também se assinava “Carter Dickson”), Ellery Queen, S. S. Van Dine, Edward D. Hoch e outros.

São histórias tão intrincadas e cheias de detalhes insólitos que Jorge Luís Borges, numa conferência famosa (em Cinco Visões Pessoais, Editora da UnB, 1987, 2ª. ed., trad. Maria Rosinda Ramos da Silva), classifica esse tipo de história no interior da literatura fantástica.

"Fantástica" por que? De acordo com o meu critério pessoal, essas histórias não seriam fantásticas porque nelas tudo que acontece é fisicamente possível, nenhuma lei da física é violada, etc.  Mas são histórias fundamentadas em circunstâncias altamente improváveis. Criminosos engendram assassinatos utilizando mecanismos bizarros, contando com coincidências extraordinárias, recorrendo a métodos quase surrealistas para ocultar seus movimentos e suas motivações.

E o detetive deve ter a capacidade imaginativa de entender esses procedimentos, para chegar à solução. Não são histórias sobrenaturais. São histórias insólitas. A possibilidade de que pessoas se comportassem daquele jeito na “vida real” é praticamente zero, seja na execução do crime, na ocultação de pistas, na criação de um falso álibi.

É uma espécie de “literatura Rube Goldberg”, imitando a técnica do desenhista norte-americano, de engenhocas complicadíssimas para produzir efeitos banais:


(desenho de Rube Goldberg) 

A graça desse tipo de história é que se trata de um mistério colocado em termos de problema, que deve ser analisado, entendido e decifrado. Diz Borges:

Tudo isso já se encontra nesse primeiro conto policial escrito por [Edgar Allan] Poe – que não sabia estar dando início a um novo gênero – intitulado The Murders of the Rue Morgue. Poe não queria que o gênero policial fosse algo realista; queria que fosse um gênero intelectual, um gênero fantástico, se vocês preferirem, mas um gênero fantástico fruto da inteligência, não apenas da imaginação. De ambas, as coisas, naturalmente, mas, sobretudo, da inteligência. (p. 35-36)

É uma literatura da “Realidade vs. Ilusão” – a Realidade é o crime, o modo como foi praticado, o seu autor; a Ilusão são os detalhes complicadores com que o assassino busca disfarçar a própria identidade e o método que utilizou.

E dentro desse subgênero existe outro, mais fascinante ainda: os romances policiais envolvendo truques de magia-de-palco. Sim, porque existe uma imensa afinidade de espírito entre o ilusionismo de um mágico e o de um criminoso (um criminoso desse gênero em particular). Existe uma semelhança enorme de métodos entre um cara que serra uma mulher ao meio diante de uma audiência, e um sujeito que mata outro dentro de um quarto trancado por dentro (ou que dá a todos a impressão de que foi isto que aconteceu).

Um pioneiro notável desse subgênero foi Maxwell Grant (pseudônimo de Walter Gibson), o famoso autor de The Shadow. Grant foi durante muito tempo assistente de mágicos famosos dos EUA, como O Grande Blackstone, e transferiu essa experiência para os contos sobre Norgil o Mágico, que ele publicou na década de 1930 na revista Crime Busters. Cada história de Norgil envolvia um pequeno crime ou mistério que era produzido (ou solucionado) mediante o conhecimento de algum truque de mágica.



Clayton Rawson, um discípulo de J. D. Carr, era mais complexo em concepção e superior em execução. Seu “mágico-detetive” era O Grande Merlini, que apareceu em clássicos como Death From a Top Hat (1938), The Footprints in the Ceiling (1939), e outros. Seu conto “From Another World”, publicado no Ellery Queen’s Mystery Magazine (junho 1948) é de uma rara simplicidade e engenhosidade.



Li agora há pouco Black Aura (1974) de John Sladek (1937-2000). Este autor, que também produziu ficção científica de boa qualidade, escreveu também um volumoso tratado de desmascaramento de cultos de pseudo-ciência, The New Apocrypha – a Guide to Strange Science and Occult Beliefs (1978), onde ele mete o chanfalho em muitos casos de paranormalidade, mediunidade, curas “quânticas”, discos voadores, moto-perpétuo e outras coisas. Faz um bom par com o clássico de Martin Gardner, Mitos e Crendices em Nome da Ciência (1957).



O romance de Sladek tem como detetive um sujeito divertidamente excêntrico chamado Thackery Phin, um norte-americano vivendo em Londres, que se dedica a desmascarar um grupo de pessoas que cultuam uma médium famosa. Assassinatos e desaparecimentos impossíveis começam a acontecer, e ele acaba se envolvendo.

O mais interessante, do ponto de vista literário, é que o livro tem uma estrutura bem clássica, bem anos 1900 ou 1930, ajudado pela ambientação londrina; mas os personagens incluem figuras bem familiares ao leitor da década de 1970: um cantor pop assediado pelas fãs, indivíduos viciados em heroína, atores e técnicos de TV, e outros.

Thackery Phin não deixa de fazer citações, alusões e homenagens aos clássicos do gênero (Doyle, Chesterton, etc.) e deslinda com habilidade (e alguns lances de efeito teatral) o mistério. O livro vale pela escrita de Sladek, sempre interessante e perceptiva quanto a pequenos detalhes de ambientação e psicologia, não necessariamente (ao contrário de alguns autores desse gênero) os detalhes que terão importância na solução do caso.

É uma maneira de, tornando mais realista e mais verossímil o ambiente e as pessoas, tornar ainda mais fantástico o “crime impossível” quando acontece, e mais convincente a solução que no fim é apresentada.


(John T. Sladek)