quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

0659) Vladimir 70 (29.4.2005)




O Centro Cultural Banco do Brasil, aqui no Rio, está realizando até domingo uma mostra da obra de Vladimir Carvalho, com os curtas que ajudaram a fundar o cinema paraibano (A Bolandeira, Romeiros da Guia), os longas que desencadearam polêmicas (O País de São Saruê, O Homem de Areia, Conterrâneos Velhos de Guerra), e muitos outros, feitos na ponte cultural entre Paraíba e Brasília. Confesso que tive um susto ao saber que Vladimir fez 70 anos em janeiro passado. Conversamos há poucas semanas aqui na Rua do Catete (a mais nordestina das ruas do Rio) e ele me pareceu com os quarenta-e-poucos de sempre: o passo rápido, o gesto inquieto, a cabeça elétrica.

Uma matéria que saiu no “Globo” destaca um lado importante do cinema de Vladimir: seus filmes parecem se fazer por si próprios, a partir do material que o cineasta vai acumulando ao longo dos anos. Li não sei onde que depois da Revolução Cubana um grupo de jovens pretendentes-a-cineasta perguntou a um diretor russo o que deveriam fazer. “Filmem tudo”, disse ele. É mais ou menos esta a filosofia de Vladimir. Desembarque de candangos, shows de rock, greves estudantis, exposições, solenidades, agitações de rua, artistas anônimos, visitantes famosos... tudo que é registrado por ele vai se organizando nas sombras e no silêncio, e quando menos se espera tem um filme pronto.

É exemplar a história de como surgiu A Pedra da Riqueza, talvez seu melhor curta. Vladimir estava na sala de montagem, na Universidade de Brasília, examinando um material para o longa O País de São Saruê. Quando repassava as imagens dos trabalhadores numa mina de xelita, o servente que arrumava a sala olhou por cima de seu ombro e disse: “Oxente, eu já trabalhei aí”. E virou o narrador do filme. O mesmo “serendipismo” parece ter desencadeado seu filme em preparo sobre José Lins do Rego: um vazamento na parede do apartamento o levou a conversar com o vizinho de baixo. Que era neto do escritor.

Eu tenho para mim que é este o melhor modo de se fazer as coisas, e é uma pena que cinema custe tão caro. Porque é mais ou menos assim que eu faço meus textos e minhas músicas, pegando no ar idéias ou palavras que entram pela janela ou são enfiadas pelo carteiro por baixo da porta, imagens que a TV me sugere numa passada rápida pelo quarto, ou que desembarcam de um email numa hora em que tudo parece estar empancado. Isto quer dizer que a criação é caótica, submissa aos ventos? Não. Significa que quando o artista criador tem uma bússola intuitiva que lhe dá a certeza subconsciente do que quer, ele reconhece de imediato, entre os fragmentos trazidos pelo Acaso, aqueles que o levam na direção certa. O material está dormindo nos armários ou nas gavetas, mas a atenção do artista não dorme, e um belo dia, ao passar pela Asa Norte ou pela Rua do Catete, ele vê um detalhe e pensa: “Oxente, era justamente o que eu precisava para terminar aquele negócio que eu estava fazendo em 1981...”



0658) O Papa dos Chimpanzés (28.4.2005)


(cartum de Knife)

Fui batizado como católico, estudei em alguns colégios católicos (Lurdinas, Alfredo Dantas), tenho muitos amigos que são padres ou frades, mas filosoficamente me considero um agnóstico. O que a Igreja Católica tem de mais interessante é o seu lado individual: seu humanismo, sua filosofia de paz, de compaixão, de solidariedade. Mas seu lado cósmico, sua descrição e interpretação do Universo, diverge da visão da Ciência, e em geral prefiro ficar com esta última. Em todo caso, há um aspecto da Igreja que acho fascinante, e que nunca esteve tão visível quanto nestas últimas semanas: a pompa mística, o ritual milionário, a grandiosa celebração coletiva. Espero não estar pecando ao afirmar que o Vaticano é uma Hollywood com dois mil anos de know-how.

Existe no ser humano uma compulsão instintiva para a transcendência, para imaginar (e querer alcançar) outras dimensões, outros patamares da existência cósmica. Há um conto de Robert Silverberg intitulado “O Papa dos Chimpanzés” que ilustra de forma irônica e compassiva esse impulso. Na história, cientistas isolaram um grupo de chimpanzés e se comunicam com eles através de sinais, numa convivência semelhante à de antropólogos com tribos indígenas. Um dos cientistas contrai leucemia, e, sabendo que vai morrer, propõe informar o fato aos chimpanzés para que estes reflitam sobre a morte dos humanos (que eles consideram uma espécie de deuses). E isto é feito: explicam a noção da morte, de Deus, do Céu.

Este fato desencadeia uma mudança filosófica nos chimpanzés. Semanas depois, seu líder, “Leo”, descobre no lixo uma camisa velha e um chapéu que pertenceram ao cientista morto, e começa a usá-los. E lidera um ritual em que o macaco mais velho, que estava doente, morre pacificamente à beira do rio. Os cientistas percebem que os macacos adquiriram a consciência de um “outro mundo”, e que estão ritualizando a passagem deles de um mundo para o outro. O problema é que macacos começam a aparecer mortos, com sinais de violência, e ao ser interrogado “Leo” responde: “Eles agora são seres humanos. Os humanos quando morrem viram deuses. Os chimpanzés quando morrem viram humanos”.

O problema dos cientistas, daí em diante, é convencer os chimpanzés de que eles não têm o direito de mandar seus semelhantes para o Céu. Este conto tem ressonâncias interessantes com o 2001 de Kubrick/Clarke, onde se faz um paralelo entre a evolução macaco/homem/super-homem, e a frase de Nietzsche, que em Assim falou Zaratustra dizia: “O que é um macaco, aos olhos de um homem? Uma criatura ridícula e objeto de desprezo. O que é um homem, aos olhos de um super-homem? Uma criatura ridícula e objeto de desprezo.” O conto de Silverberg imagina de maneira engenhosa a criação da primeira fagulha de transcendência espiritual (com tudo que vem a seguir) num cérebro inteligente.

0657) Os itálicos e os negritos (27.4.2005)


(Bordón e Grafite)

O episódio recente em que um jogador argentino foi preso no Morumbi por insultos racistas ao atacante Grafite, do São Paulo, é uma salada de contradições. Ali tem de tudo: boas intenções, más intenções, estupidez, bom senso, preconceitos e discursos demagógicos de parte a parte. Futebol é engraçado. Tanto pode fazer aflorar o que temos de melhor – naqueles momentos em que os atletas se superam e produzem verdadeiras obras de arte, além de gestos de grandeza moral – como o que temos de pior. Infelizmente, o presente episódio incorre muito mais no segundo caso.

Em primeiro lugar: o racismo é um crime abominável, que deve ser denunciado e punido, etc. e tal. Até aí, concordo com todos os discursos de altruísmo étnico que estão pipocando na imprensa brasileira. Concordo também que na Europa nada se faz para punir a onda de vaias e agressões racistas contra jogadores negros, inclusive brasileiros. Claro. O racismo contra migrantes, lá, sempre existiu; o problema é que agora cresceu tanto que está atingindo inclusive os migrantes que são famosos e milionários, em vez de somente os pés-rapados.

O que me parece óbvio, contudo, é que todo este circo foi armado porque foi em cima de um jogador argentino, e aí entrou em ação o nosso racismo tropical contra os nossos “hermanos” que alegam ter sangue italiano, inglês, alemão, sei lá mais o quê. É uma rivalidade puramente bairrista, ampliada pela paixão futebolística, que é uma das paixões mais emburrecedoras que existem. Será que no campeonato paulista ninguém chama os jogadores negros de “nego safado” ou de “macaco”? Será que foi preciso vir um argentino para que essas ofensas soassem pela primeira vez num gramado pátrio? Fala sério!

Quem já tenha visto um jogo de futebol de perto sabe que ali rola muito mais insulto do que carrinho por trás e agarra-agarra no escanteio. Até no futebol feminino, os microfones à beira do campo flagram o tempo todo nossas simpáticas atletas se chamando de “piranha” e “puta safada”. Não é um hábito recomendável, mas, fazer o quê? Jogadores se chamam de “viado”, “nego safado” e de todo o resto durante os 90 minutos. Foi preciso um delegado torcedor do São Paulo para achar que aquilo é racismo – numa cidade onde empregadas domésticas não sobem pelo elevador social, e onde cidadãos anônimos da cor de Grafite são fuzilados na rua se não obedecerem a uma ordem de parar.

Que tal reprimir o racismo, mas em toda parte? Que tal punir com cartão e suspensão os jogadores que ultrapassarem a aspereza normal de uma disputa esportiva? Que tal proibir o acesso ao estádio de torcidas que façam movimentos racistas coletivos? Agora – esse pretenso bom-mocismo de defesa dos negros serve para mascarar outro preconceito: o de brasileiros contra argentinos, e vice-versa. Não vou explicar (não consigo entender) por quê se detestam. Mas foi esta a única razão do circo ser armado. O resto é demagogia.

0656) Boas novas do Vaticano (26.4.2005)


















(thegrumpyowl.wordpress.com)

Acompanhei minuto a minuto o recente anúncio do Cardeal Ratzinger como Papa Bento XVI, ou seja, desde a fumaça branca, a abertura das cortinas, o “Habemus Papam”, o surgimento do Pontífice, a bênção, os aplausos da multidão. Foi um momento emocionante, descontando-se o fato de que o espírito galhofeiro que me habita não pôde deixar de perceber que o novo Papa é a cara de Jorge Dória, aquele ator da Globo.
E me trouxe à mente um conto de ficção científica de Robert Silverberg, ganhador do Prêmio Nebula de 1970: “Good news from the Vatican”. É um conto curto onde um grupo de amigos, de vários países, está num café na Praça de São Pedro, esperando a fumaça branca. Com uma diferença: a expectativa é que nesse conclave seja eleito o primeiro Papa robô da História, representando a população de milhões de robôs que já existem em atividade no planeta. Diz o narrador: “O computador do Vaticano insistiu na candidatura do robô, e não devemos nos espantar diante desta solidariedade mecânica”.
Ele se pergunta: “Por que estou torcendo que o robô seja eleito? Será que é porque a imagem de uma criatura de metal sentada no Trono de São Pedro estimula minha imaginação e meu senso do incongruente?” A eleição é polêmica; entre o grupo de amigos alguns rejeitam totalmente a candidatura do robô, e outros a defendem. Um dos que defendem o cardeal-robô é um jovem rabino norte-americano, que afirma: “O cardeal foi o principal orador do Congresso Mundial Judaico no outono passado, em Beirute, e seu tema foi ‘Ecumenismo Cibernético Para o Homem Contemporâneo’. Posso afirmar que Sua Eminência é alto, distinto, com uma bela voz e um sorriso gentil. Há uma inerente melancolia em seus modos que me lembra muito nosso amigo bispo, aqui presente. Seus movimentos são graciosos, e ele é bastante espirituoso”.
A Igreja está dividida; os tradicionalistas preferem que seja eleito um cardeal humano, mas há pressão do outro lado. No aeroporto de Iowa, nos EUA, há uma delegação de 250 jovens robôs católicos que estão apenas esperando a eleição do cardeal para embarcarem rumo a Roma, exigindo a primeira audiência pública com o novo Papa. Na Praça, diz o narrador, “a luz do sol brilha em centenas, se não milhares, de crânios metálicos”.
E finalmente sobe a fumaça branca, as cortinas se abrem, e os cardeais anunciam que, como previsto, o cardeal robô foi eleito, escolhendo o nome de Sixto VII. O robô ativa os jatos de levitação embaixo de seus braços, que o elevam lentamente no ar, com pequenos jatos de fumaça branca, e profere sua bênção para a multidão, enquanto sobe cada vez mais alto, elevando-se nos céus até desaparecer.
O conto tem este final “em aberto”, sujeito a várias interpretações, mas o mais interessante é sua tese, exposta ao narrador pelo Bispo FitzPatrick, de que “cada época tem o Papa que merece, e que num dia futuro é de se querer que o Papa seja uma baleia, um automóvel, um gato, uma montanha”.

0655) Lula e Frodo (24.4.2005)



Fico perplexo com muita coisa que vejo na Internet, mas o que mais me inquieta hoje são os ataques que circulam por aí, voltados contra o Presidente Lula. Crítica fazem parte da política, e o governo Lula tem uma série de equívocos que sem dúvida acabam com a paciência dos mais ansiosos. Mas, francamente, nunca vi tanta coisa de baixo nível contra o Presidente. Nem Fernando Collor, que me lembre, foi tão insultado. Quando Lula era apenas um sindicalista, depois um deputado, um candidato à presidência, era chamado de comunista, imbecil, paraíba, pau-de-arara, bronco, analfabeto, grosso, sem-dedo, pelego, e o mais que vocês imaginarem. Quem o chamava assim era a Direita e eram também aqueles setores neo-liberais, cosmopolitas, sofisticados, que raciocinam em dólar e que se pudessem fariam uma cirurgia no País para extirpar o Nordeste.

Pois bem, hoje em dia quem diz isso de Lula, e muito pior, são os seus ex-eleitores, decepcionados pelos rumos que o governo toma. Dizia o poeta que no Inferno não há fúria que se compare à de uma mulher desprezada. Pois digo eu que há, sim, é a fúria das “categorias” que apostam tudo na eleição de um governante, achando que daí em diante vão se dar bem, e de repente percebe que o sujeito depois de eleito “aliou-se ao outro lado”, e eles ficaram de fora da festa.

Eu tenho minhas críticas ao governo Lula, como por exemplo as minguadas verbas para a Cultura, e o fato de pagarmos fortunas em juros de uma dívida que já estávamos pagando antes mesmo de contraí-la. O Brasil vive hoje como aqueles trabalhadores braçais que vão derrubar mata lá no fim do mundo, e a cada mês se endividam cada vez mais “na caderneta da bodega”. Quanto mais ganham, mais estão devendo ao patrão. Pois é isso – em vez construir hospitais, escolas, consertar estradas (nem falo em abrir estradas novas), pagamos não sei quantos bilhões por causa do superávit primário. Transferimos todo nosso dinheiro para um dinossauro moribundo, um sistema financeiro internacional cuja quebra já está à vista. Eu daqui já sinto os tremores. Vai ser pior que a Queda da Bolsa de 1929 e o Tsunami da Malásia. E quando isso acontecer, de nada adianta “ter crédito internacional” com o dinossauro morto. Só vai suportar o choque inicial (que durará anos) quem estiver com sua infra-estrutura interna bem montada -- indústria, comércio, saúde, estradas, escolas e tudo o mais que estamos deixando de lado.

Coitado de Lula. Sonhou em fazer uma revolução pacífica, mas para fazê-la tinha que ir para Brasília. É como Frodo, no Senhor dos Anéis, que para destruir o Anel do Mal tem que ir justamente para dentro dos domínios do seu maior inimigo. Brasília é Mordor, e o Palácio do Planalto (ou o Congresso – há controvérsias) é a Montanha da Perdição. Lula ainda não destruiu o que foi lá para destruir. Pelo contrário: dá sinais de ter feito com Gollum um acordo em que cada um usa o anel um pouquinho, e depois devolve pro outro.

0654) O cordel eletrônico (23.4.2005)




Discute-se muito hoje em dia a possível decadência da literatura de cordel, que provavelmente terá conhecido seu auge, em termos de comercialização, entre as décadas de 1940-50. 

Os trabalhos históricos sobre o cordel destacam as enormes tiragens da época, com folhetos cujas edições chegavam a centenas de milhares, talvez um milhão de cópias. 

Em primeiro lugar, recomendo aos historiadores uma certa cautela. Cordelistas são notoriamente entusiásticos quando informam números desta natureza, principalmente quando avaliam tiragens feitas por eles mesmos. Não é que sejam mentirosos. É que têm um tendência a ver essas coisas de um modo um-tanto-ou-quanto poético. 

O cara que diz que vendeu 100 mil folhetos é o mesmo que escreve versos do tipo: “Dei um murro na cara de Sansão / que acabei com a queixada do jumento”. Acautelai-vos!

Não há muitas condições de calcular hoje (ou mesmo na época) se o folheto sobre a morte de Getúlio vendeu ou não um milhão de exemplares. Mas mesmo deixando de lado esta questão estatística, não há como negar que os folhetos daquele tempo vendiam mais do que os de hoje. 

Analistas apressados vêem nisso uma decadência do cordel, e anunciam a iminência de sua extinção. Será verdade? Não creio. Se analisarmos fenômenos de mercado em geral, veremos que é muito freqüente a ocorrência do que se chama de “bolha”: um enorme inchaço na produção e comercialização, que logo em seguida decai vertiginosamente. A produção atinge um “pico” e em seguida começa a cair.

Isto, no entanto, não significa “a morte do cordel”. Significa que o cordel, mesmo vendido a 1 real, se destina a pessoas que muitas vezes não têm um real sobrando. Rádio e TV o substituem em grande parte, sendo o cordel preferido apenas por aqueles que valorizam a “informação poética”, uma espécie de confirmação estética dos fatos que é um dos principais atrativos do cordel. 

O cordel ultrapassou sua Idade de Ouro, que foi naquelas décadas, mas isto não significa que está morrendo. Para mim, significa apenas que minguou, retraiu-se, e está hoje em dia acomodado num nicho de mercado bem mais modesto, mas bastante estável.

Novos cordelistas aparecem. O interesse pelo cordel amplia-se entre a classe média. Novos recursos (computador, internet) vêm ajudar a preservar esta forma de literatura. 

Porque quando falamos de cordel estamos falando de duas coisas: 

1) os folhetinhos de 11x16 cm; 

2) o Romanceiro Popular Nordestino que é publicado nestes folhetos. 

Mesmo que os folhetos desapareçam um dia, o importante é que sobreviva o Romanceiro, os poemas, o lado literário do fenômeno, mais importante do que a sua feição gráfica. 

Existe cordel eletrônico sendo publicado na Internet, cordel sem papel mas que é acessado e lido como se acessa e se lê um jornal ou um blog. É um cordel sem folheto, digamos: o Romanceiro descobrindo uma nova forma de se divulgar e de se manter vivo.