sábado, 1 de junho de 2019

4472) A arte do apelido (1.6.2019))



Botar apelido é uma arte que nem todo mundo domina, mas quem melhor domina é o chamado Povo. É o Povo, essa entidade multicéfala, quem produz esses achados brilhantes que batizam, crismam e sacramentam pro resto da vida um simples mortal.

É uma arte perigosa, por suposto. Quando eu entrei para uma redação de jornal e comecei a produzir meus primeiros artigos assinados, meu pai me deu um conselho curioso.

– Se alguém escrever um artigo atacando você, polemizando, tem duas armas infalíveis. A primeira é descobrir um erro de português no texto dele, e passar o resto da vida falando nisso. A segunda é botar um apelido e ficar repetindo até pegar.

Essa prescrição mefistofélica me assustou um pouco, mas vendo as redes sociais de hoje percebo o quanto Seu Nilo já estava impregnado do espírito do tempo. Era um facebookiano avant-la-lettre.

Uma coisa, porém, é o apelido escarninho e depreciativo; outra coisa é o apelido descritivo e pitoresco.

Por exemplo: lembro de um rapaz (chamo de rapaz porque na época era mais velho do que eu) que morava no Alto Branco, entre a bodega de Seu Luís e a de Seu Anísio. Era musculoso (“sarado”, no dialeto de hoje), queimado de sol, mas era meio vermelhusco porque era um galego do cabelo sarará. Juntando tudo isto, o apelido não deu outra: Monstro de Bronze. E assim era conhecido no bairro inteiro.

Tempos da minha adolescência, quando eu convivia, quase menino ainda, com caras mais velhos do que eu, tratados coloquialmente de Zazué, Zé do Bombo, Índio, Arlindo Nova Seita... Alguns deles eram pais de família, senhores respeitáveis, mas até hoje, apesar da intimidade de vizinhos de muitos anos, não sei como eram seus nomes civis.

Campina Grande sempre foi um lugar propício à criação de apelidos, porque o espírito campinense é por natureza motejador, satírico, jocoso, capaz de derrubar um palanque com uma piada e um governo com uma fofoca.

Lembro com carinho figuras públicas como Pinta Cega, o vereador agitado e falastrão, torcedor do Treze até a medula, sempre a postos no Calçadão com sua careca luzidia, seus óculos, seu bigodinho fino. Chamava-se João Nogueira de Arruda, mas creio que com ele aprendi a importância, para o eleitor, do “nome que todo mundo chama”.

Lembro de Léo Studebaker, figura bonachona e piadista, do qual se dizia ter este nome porque era tão feio que ninguém sabia se ele estava vindo de frente ou de costas.

Nem mesmo os políticos poderosos escapam ao apelido. Na histórica campanha pela Prefeitura de Campina, em fins dos anos 1950, enfrentavam-se Newton Rique (banqueiro, rico, sofisticado; depois de cassado veio morar no Rio, fazia parte do “Dragão Negro”, tropa de elite da torcida do Flamengo) e Severino Cabral (populista, espontâneo, paternal, meio ignorante, personagem de mil piadas sobre erros gramaticais).

Foi o que bastou: era a campanha do Mão de Seda contra o Pé de Chumbo.

Os apelidos muitas vezes guardam uma certa maldade com os defeitos físicos de uma pessoa, como no caso daquela moça que tinha uma perna mais curta do que a outra e era chamada de Meio Fio. São apelidos personalizados, que grudam no indivíduo. Não são a mesma coisa dos apelidos temporários, que podem se aplicar indiferentemente a qualquer um e nunca “grudam” de verdade, como o de ver um indivíduo magrelo e chamá-lo de Sibito Baleado. Eu conheço uma dúzia.

Dizem que no Rio Grande do Norte tinha um bandido, um assaltante perigoso, chamado Carga Torta. Quem já viajou de automóvel numa rodovia atrás de um caminhão nessas condições já pode imaginar do que se trata. Mas não: o repórter da rádio, fazendo matéria ao vivo nas celas da cadeia, teve que perguntar:

– Carga Torta, por que é que você tem esse apelido?

E ele:

– É porque eu tenho um cunhão maior do que o outro.

– “Voltamos aos nossos estúdios...”