sábado, 3 de fevereiro de 2024

5028) Christopher Priest, 1943-2024 (3.2.2024)



 
Faleceu neste 2 de fevereiro, aos 80 anos, um dos escritores mais inquietantes da ficção científica e do fantástico na Inglaterra. 
 
Christopher Priest é um autor capaz de desconcertar o público com a mesma eficiência de um David Lynch – são histórias contadas com um profundo senso de realismo, descrevendo ambientes reconhecíveis, pessoas “reais” vivendo situações e emoções “reais”, numa narrativa clássica, que nos conduz com a fluidez de uma novela-das-oito... 
 
E de repente acontece alguma coisa que faz em estilhaços toda aquela realidade aparente e, como nos melhores livros de Philip K. Dick, percebemos que existe uma realidade mais vasta, mais complexa, e geralmente mais ameaçadora por trás daquilo tudo. 


 
Seu livro mais conhecido é talvez The Prestige (1995), porque serviu de base ao ótimo filme de Christopher Nolan, O Grande Truque (2006). Até onde pude investigar, sua literatura continua inédita no Brasil.   
 
Ele não deve ser confundido com seu homônimo norte-americano, roteirista de numerosas séries de quadrinhos (Terminator, Liga da Justiça, etc.), principalmente para a DC Comics. Por outro lado, o Christopher Priest britânico escreveu roteiros para a série Dr. Who e novelizações de filmes, entre eles o eXistenZ (1999) de David Cronenberg. 
 
Um tema recorrente na obra dele é o das realidades mentais paralelas e a possibilidade de cruzar de uma para outras. Em várias histórias (não todas, claro) seus personagens vivem numa espécie de “realidade Escher”, onde tudo é perfeitamente lógico e normal dentro de certos limites, mas, dando-se um passo a mais, a gente está num universo contíguo, onde tudo (o país, a cidade, as pessoas em volta) não são exatamente os mesmos que eram um instante atrás. 


 
Isto é muito visível no romance The Glamour (1985). O título se refere à capacidade que algumas pessoas têm se se tornarem invisíveis, podendo entrar e sair fisicamente de um ambiente sem serem percebidas. Não é uma invisibilidade tecnicamente produzida por meio da física, da óptica, como na FC tradicional (H. G. Wells, etc.).  É uma invisibilidade induzida psicologicamente, como uma espécie de hipnotismo. 
 
Diz uma personagem:
 
Eu dividia um apartamento com duas outras garotas da faculdade. Embora eu me tornasse plenamente visível a elas quando necessário, durante a maior parte daqueles três anos elas simplesmente supunham que eu estava ali por perto, trancada em meu quarto, ausente. Foi a primeira mudança que precisei aceitar, porque através delas aprendi que uma pessoa invisível é simplesmente ignorada, presume-se que ela esteja ali, mas não de modo funcional. Elas me percebiam quando eu precisava, e no restante do tempo agiam como se eu não estivesse ali. (The Glamour, V, III, trad. BT) 
 
Alguém já sugeriu galhofeiramente a criação de um subgênero da ficção científica e do fantástico, as “Histórias do Que-que-tá-contecendo”. São um gênero fascinante porque são uma espécie de caminhada na corda-bamba: um pequeno deslize ou forçação de barra por parte do autor, e o leitor, desorientado, incomodado, acaba fechando o livro e pensando: “Eu não tou entendendo nada, vou é ler outra coisa.” 
 
Isso se dá com os leitores que exigem – e é um direito seu – um lógica constante, uma coerência sólida, na história que está sendo contada; o leitor (principalmente) que gosta de ver num livro uma reprodução do mundo real. E existe o leitor que tem curiosidade por essas quebras-de-realidade, pelo mistério nunca totalmente explicado, pela impossibilidade permanente de fechar-a-conta na explicação de uma narrativa. 
 
The Glamour aborda temas permanentes na obra de Priest: a sugestão mental, a amnésia, as versões conflitantes de um mesmo fato... A invisibilidade, que numa narrativa comum seria fonte inesgotável de aventuras, serve aqui a uma narrativa mais complexa, revelando um mundo organizado de uma maneira que nós, os “caretas”, não suspeitamos. 
 
Foi Nial quem me mostrou como entrar nos bancos, roubar os correios, mas nunca precisávamos do dinheiro. O furto num banco era sempre um desafio, algo feito por diversão, entrando na área dos funcionários à vista de todos, pegando um punhado de notas da gaveta do caixa, misturando-as nas mãos diante dos olhos deles. Às vezes levávamos algumas moedas, uma ou duas notas, só para provar que era possível. Nunca estávamos em silêncio durante esses roubos, conversávamos o tempo todo, às vezes rindo alto ou cantarolando pelo puro prazer de sabermos que ninguém nos via, ninguém nos escutava. (V, V)
 
Os personagens vão penetrando aos poucos nesse submundo dos invisíveis, onde existe todo um jargão técnico para explicar o fenômeno: 
 
O segundo fator de unificação era a nuvem. (...) Cada indivíduo invisível é cercado por uma aura, uma certa densidade de presença, que pode ser detectada por outras pessoas. (...) Os invisíveis pegaram esse vocabulário e o incorporaram ao seu jargão. Todos sabem a respeito da nuvem, e a chamam assim. As pessoas comuns são as carnosas, o mundo real eles chamam de duro. Chamam a si mesmos os glams. Isso faz parte de sua paranóia, defensiva mas gabola: achar que são glamurosos. (V, III)
 
Isso é ficção científica? Eu acho que sim, porque conheço poucos temas mais científicos do que o estudo da mente humana, da percepção humana, do modo como os seres humanos organizam suas percepções sensoriais e as codificam no cérebro de maneira a organizar seu comportamento individual e coletivo.




The Prestige (filmado como O Grande Truque, com Christian Bale e Hugh Jackman) é a história de dois mágicos-de-salão na Inglaterra vitoriana, super bem sucedidos e mortalmente rivais. Priest usa os truques de mágica como um modo de ver as fronteiras da ciência – em que momento um truque deixa de ser truque e se torna uma violação das leis da física. O mago Rupert Angier assim comenta em seu diário:
 
Um mágico, normalmente, revela um efeito que é “impossível”: um piano parece sumir no ar, uma bola de bilhar magicamente se reproduz, uma mulher passa através de um espelho. A platéia, é claro, sabe que o impossível não se tornou possível. (Parte IV, 4-2-1901, trad. BT)
 
O que acontece, então? É o mago Alfred Borden quem explica:
 
Eu aprendi a arte do desvio da atenção, na qual o mágico se vale da experiência cotidiana do espectador para iludir os seus sentidos – a gaiola de metal que parece rígida demais para ser dobrada, a bola que parece grande demais para ficar escondida na manga, a espada cuja lâmina de aço temperado jamais poderia, não é mesmo? jamais poderia se envergar. (I, 3)
 
O livro é uma batalha fascinante entre Angier e Borden, ídolos do público de Londres, batalha de trucagens e talentos que chega ao clímax com um número espetacular onde cada um deles descobre uma maneira de sumir numa extremidade do palco e reaparecer, instantaneamente, na extremidade oposta. O fato de que um deles acaba viajando aos EUA e recorrendo a Nikolas Tesla arrasta a narrativa numa direção inequivocamente de ficção científica.
 
Priest usa a magia, neste livro, quase como um substituto da literatura ou do cinema: um modo de tornar possível o impossível, de tornar presente algo que não existe, de fazer o público ver e ouvir uma coisa que não está lá. Sua visão da profissão de mágico não é muito distante de uma visão do autor de ficção científica: 
 
Um mágico que seja inventivo abraça com entusiasmo qualquer inovação. Qualquer engenhoca, qualquer brinquedo, qualquer invenção que aparece no mundo deve lhe produzir esta reação: “Como posso usar isso para inventar um truque novo?”. (...) E se uma nova mágica original chega a ser produzida, é somente uma questão de tempo até que esse efeito seja reproduzido por outros. (II, VII)
 
Mágica de salão, ciência, literatura, cinema, tudo são ângulos diferentes por onde enxergar uma dualidade fundamental: o Real, que nunca conheceremos, porque nossos sentidos e nosso intelecto e nossos instrumentos são limitados; e as Aparências do Real, que criamos mediante estes sentidos, intelecto e instrumentos.
 
É uma pena saber que Christopher Priest morre sem que nenhum de seus livros tenha sido publicado no Brasil. (Se conhecerem algum, agradeço a correção.) Sua literatura não é fácil – na verdade, quando terminamos de ler um livro dele temos a sensação de que somente agora estamos prontos para lê-lo de verdade. E é uma leitura que sempre vale a pena.
 
Aqui, o website do autor:
https://christopher-priest.co.uk/
 
E aqui, o verbete a seu respeito na “SF Encyclopedia”:
https://sf-encyclopedia.com/entry/priest_christopher