quarta-feira, 3 de novembro de 2021

4760) A literatura fantástica no "Sgt. Pepper's" (3.11.2021)



Uma vez eu estava discutindo com uma turma sobre a enorme reviravolta que a ficção científica experimentou na década de 1960, na Inglaterra e nos EUA. Na Inglaterra houve principalmente o surgimento da revista vanguardista New Worlds, dirigida por Michael Moorcock, que divulgou a obra de autores importantes como Brian Aldiss, J. G. Ballard, Christopher Priest, M. John Harrison, John Sladek, John Brunner, Tomas M. Disch...
 
Comentei: “A FC estava presente em tudo, no cinema inglês, na cultura pop...”  E proferi a frase impensada, comprometedora: “A capa do Sgt. Pepper’s, dos Beatles, está cheia de escritores de ficção científica”.
 
Foi uma afirmação intuitiva, baseada na memória inconsciente, mas o rigor acadêmico me obriga a aboná-la com a observação empírica. A lista abaixo interpreta o termo “escritores de FC” no sentido mais amplo possível, incluindo personalidades cuja obra teve e tem algum tipo de influência no gênero, seja a influência pervasiva e difusa das grandes idéias, seja o contato com algum ícone específico.



Edgar Allan Poe (*) é um dos mais visíveis, até por estar bem no centro da fileira do alto. Poe é uma das figuras mais universais da literatura em inglês, todo adolescente leu alguma coisa dele. Do ponto de vista temático, está mais próximo dos gêneros “policial” e “horror”, mas ninguém questiona a importância que suas idéias tiveram para a FC. Escreveu sobre viagens de balão, viagens à Lua, o mito da Terra Oca, mesmerismo, hipnose, animação suspensa, fendas  temporais... Seu nome é citado por John Lennon na letra de “I Am the Walrus”.




Ao lado de Poe, na capa do disco, aparece o psicólogo Carl G. Jung. Suas teorias sobre arquétipos, sonhos e alucinações controladas, inconsciente coletivo e simbolismo influenciaram não apenas a literatura do mainstream mas também a literatura fantástica ocidental (Philip K. Dick era grande leitor de Jung). E coube a ele uma das mais detalhadas explicações psicológicas sobre o fenômeno dos discos voadores (Flying Saucers – A Modern Myth of Things Seen in the Skies, 1964).



Ainda na fila do alto, entre as figuras da capa do disco, o segundo personagem da esquerda para a direita é Aleister Crowley, o famoso mago inglês que durante décadas aprontou rituais escandalosos de ocultismo e magia ritual nas Ilhas Britânicas e fora delas (em Lisboa, envolveu-se num episódio bizarro com Fernando Pessoa, numa história que até hoje não foi bem contada). Chamava a si mesmo “A Besta do Apocalipse” (outros o chamaram “O Besta do Apocalipse”) e influenciou gerações de escritores de romances fantásticos. Somerset Maugham o usou como modelo para o tenebroso Oliver Haddo, o vilão de O Mágico (1908). Também influenciou inúmeros roqueiros crédulos, de Jimmy Page a Raul Seixas.



Na segunda fila de baixo para cima temos um peso-pesado, Aldous Huxley (*), o autor de clássicos como Admirável Mundo Novo, A Ilha (ficção utópica), O Macaco e a Essência (futurismo absurdista?) e outros. Huxley estava no auge de sua fama póstuma (morreu em 1963) quando o álbum saiu.

 

Logo em seguida, um pouco mais abaixo, aparece Dylan Thomas, o maior poeta do País de Gales e um dos maiores da língua inglesa. Uma parte menos conhecida de Thomas é sua prosa, embora o Retrato do Artista Como Jovem Cão (1940), uma brilhante coletânea de contos semi-autobiográficos, seja reeditada com frequência. Thomas escreveu numerosos contos de índole onírica, ocasionalmente macabra ou fantasmagórica. Uma boa seleção deles é The Collected Stories (New York: New Directions, 1984).

 

E logo ao lado dele temos a figura de Terry Southern, cuja interface mais notável com a ficção científica é o roteiro que fez para o Dr. Fantástico (1964) de Stanley Kubrick. Ao que se comenta, o romance original (de Peter George) era sério e com final otimista. Coube a Southern ajudar Kubrick na criação de um roteiro histérico, satírico, iconoclasta e de final comicamente apocalíptico. Era essa a praia de TS, que depois teve também alguma participação no roteiro de Barbarella (1968) de Roger Vadim.



Mais adiante nessa mesma fileira, intrometendo-se sobre a sobrancelha de Marilyn Monroe, está o inquestionável William S. Burroughs (*), autor de Naked Lunch (1959). A ficção de Burroughs é uma mistura de experimentalismo da vanguarda, delírio surrealista com forte viés alucinógeno (poucas pessoas escreveram sobre drogas com tanta franqueza e conhecimento de causa) e pulp fiction espacial absorvida na adolescência. Neste último aspecto, ele é uma influência reconhecida por William Gibson, J. G. Ballard, Philip K. Dick e outros.



Outro inquestionável, quase no fim dessa fila, no lado direito, é H. G. Wells (*), um autor que dificilmente deixaria de ser lido por jovens ingleses imaginativos como Lennon e McCartney principalmente. (Dizem que na elaboração das listas de sugestões para a capa desse álbum George Harrison se limitou a indicar alguns gurus indianos, e Ringo Starr disse: “O que vocês botarem eu concordo." )



Descendo um pouco e indo para a esquerda, aparece outro nome de peso, Oscar Wilde. É o criador de um dos fantasmas mais simpáticos do gênero terrorífico, o protagonista de O Fantasma de Canterville, que já traduzi para a Casa da Palavra, com as belas ilustrações de Romero Cavalcanti. E Wilde criou uma das mais poderosas imagens do “duplo” na literatura com o clássico O Retrato de Dorian Gray (1891), a brilhante narrativa decadentista de um indivíduo que é capaz de desviar a velhice, as doenças, os males do corpo, para um ponto afastado de si (a pintura que o retrata).



Por cima da cabeça de Ringo Starr aparece esse rapaz que nunca foi autor de ficção-científica, mas está aí simbolizando (para mim) um clássico do gênero. Johnny Weissmuller foi um dos melhores Tarzans do cinema, e certamente um ídolo da geração dos Beatles, que estão 1 degrau geracional acima de mim (9-10 anos em média). Ele nos faz lembrar, é claro, do grande Edgar Rice Burroughs, cujos livrinhos da Coleção Terramarear devorei na juventude; ainda tenho alguns deles, os mesmos exemplares comprados por volta de 1964, 1965, quando as guitarras da beatlemania já soavam em nossos ouvidos. Vale lembrar também que o autor foi o criador das aventuras marcianas de John Carter, que são pura FC pulp.



E chegamos finamente ao lado direito com Lewis Carroll (*), o autor das Aventuras de Alice no País das Maravilhas / Alice através do espelho. Aqueles livros que sobrevivem a qualquer adaptação para o “público infantil”. São literatura fantástica, isso ninguém pode negar; e como Carroll era um grande conhecedor e investigador da Matemática e da Lógica, seus livros são cheios de adaptações de postulados, teoremas, leis ou mecanismos dessas disciplinas das quais as Ciências da Matéria tanto necessitam.
 
Muito bem, então. Talvez a capa não esteja “cheia de escritores de ficção científica” propriamente ditos. Dos onze personagens listados acima, apenas cinco aparecem na The Encyclopedia of Science Fiction, e estão assinalados com um asterisco (*). Os demais, nos entanto, alargam, aos meus olhos de leitor, o universo cultural de onde brotaram esses quatro rapazes. Quando peguei no vinil de Sgt. Pepper’s pela primeira vez, nem Bob Dylan eu sabia quem era. Rastrear essas figuras me levou uma vida inteira, e só consegui neste século graças à Beatles Encyclopedia de Bill Harris (Hyperion, 1993) e à Wikipedia. Os Beatles, nessa capa, criaram uma constelação temática que ilumina o próprio conceito de FC.