segunda-feira, 23 de novembro de 2020

4644) O Livre Arbítrio e o Destino (23.11.2020)




O determinismo e o livre-arbítrio são duas faces de um problema: até que ponto somos responsáveis pelas nossas ações e podemos interferir nos acontecimentos à nossa volta, moldando-os de acordo com nosso interesse?
 
Como os filósofos discutem esta questão há milênios, não serei eu a lançar uma luz inédita sobre o assunto. Posso, no entanto, escolher alguns exemplos dentro da literatura, não da Filosofia, para ilustrar essa questão mais que antiga e mais que fascinante.
 
Existem dois tipos de histórias: aquelas onde os seres humanos estão sujeitos a um Destino irrecorrível, inapelável, um Destino de ferro. E existem aquelas onde, mediante alguma forma de Poder adquirido, eles conseguem impor sua vontade, seu interesse, seu arbítrio, e fugir ao que parecia ser um Destino traçado.
 
Na ficção científica, seriam aquelas histórias em que Viajantes no Tempo se transportam para o Passado e tentam mudar a História, mas não o conseguem porque o Destino é inegociável; ou então a modificam sem querer, de forma desastrada, pelo chamado “efeito borboleta”, onde pequenas alterações têm consequências gigantescas.
 
Na literatura fantástica, seriam, respectivamente, as histórias de Fatalidade e as histórias de Magia – porque a Magia é basicamente o comércio oculto, clandestino e ritualizado com esses poderes desconhecidos.




Claro que para os adeptos do Determinismo basta uma coisa acontecer para já estar decidida há um milhão de anos, como dizia Nelson Rodrigues de certos resultados no futebol. Um conto recente de Ted Chiang (“What’s Expected of Us”, no livro Exhalation, 2019) propõe um pequeno aparelho destinado a destruir a idéia de livre arbítrio: o Preditor. Explica ele:
 
Para os que ainda não viram um, é um pequeno aparelho, como o controle remoto que abre a porta do seu carro. Ele exibe apenas um botão e uma grande LED verde. Essa luz pisca quando você aperta o botão. Especificamente, a luz pisca um segundo antes de você apertar o botão. (...) O cerne de cada Preditor é um circuito com um sinal negativo de tempo; ele envia um sinal na direção do passado. (...) 
 
Não importam os truques e negaceios executados pelo usuário, estes dois fatos sempre aparecem nessa ordem, com um segundo de intervalo: a luz se acende, e o usuário aperta o botão. Aos poucos, as pessoas percebem que é impossível desobedecer a isto. E ele adverte:
 
Os médicos tentam argumentar com seus pacientes, quando estes ainda permitem se envolver numa conversação. Estávamos todos vivendo vidas felizes e ativas antes, dizem os doutores, e também nesse tempo não tínhamos livre arbítrio. Por que teria que ser diferente agora?  “Nenhuma das ações que você praticou no mês passado foi mais livremente escolhida do que as que você praticou hoje,” dizia um médico. “Você pode continuar se comportando assim.” Os pacientes invariavelmente respondiam: “Mas é que agora eu sei.” E alguns deles jamais voltavam a falar novamente.
 
Julio Cortázar (em O Fascínio das Palavras – Entrevistas com Omar Prego, Rio, José Olympío, 1991, trad. Eric Nepomuceno) dá um exemplo de sua percepção do Fantástico como um fenômeno de causalidade estranha:
 
Eu sempre senti, desde muito menino, essas coisas que ocorriam, e pareciam coincidências ou casualidades, como que correspondendo a um sistema de leis diferente do sistema de leis aceitável e compreensível para todo mundo. Sentia que quando acontecia um elemento A, seguido de um elemento B – o que as pessoas chamariam de coincidência ou casualidade – havia um terceiro elemento C, que podia ser alcançável, compreensível ou não, mas de todas as maneiras eu sentia que o triângulo, a figura, se fechava. (...) Por exemplo: uma porta batia e eu sentia um cheiro. Então algo em mim sabia que o cachorro ia latir em algum lugar da casa; e o cachorro latia. (p. 80-81)



A literatura é um espaço onde podemos criar modelos de causalidade, de determinismo, de livre arbítrio, até mesmo de caos indiferenciado. Porque na literatura de ficção o autor é como o Deus Todo-Poderoso das antigas religiões, determinando quem nasce e quem morre, quem faz e quem se omite, quem ganha e quem perde. O Autor é uma espécie de Deus. Faz parte da nossa cultura acreditar que uma história depende apenas das decisões de um indivíduo sentado à frente de um teclado.
 
Um autor possui o livre-arbítrio de colocar ali as palavras que quiser. Eu posso, por exemplo, escrever frases sem sentido: gangorra celerado polá polé mardu-konkon natiê. Posso enfileirar letras sem sentido: ddewyey jddsfg ioewtwtw.

 
Acontece que esse frenesi espaçoso não pode durar muito tempo e essa minha liberdade acaba confluindo na direção dos variados gargalos por onde precisa obrigatoriamente passar – no presente caso, um artigo de blog que consiga amarrar a atenção de leitores aleatórios. Sou livre, mas não sou tanto. Posso encher o prefácio com letras caóticas, só para afirmar meu livre-arbítrio? Posso – mas, e daí? Não posso afirmar minha liberdade assim o tempo inteiro.
 
Ninguém negocia mais sua liberdade do que um escritor de gênero, porque um gênero literário consiste sempre, em última análise, num conjunto de regras e de fórmulas que precisam ser obedecidas. Mesmo quando um autor jovem, ambicioso, vanguardeiro, se decide a desobedecê-las, é em função disto, e delas, que está escrevendo. São elas que indicam a direção, mesmo para quem se obriga a seguir na direção oposta.
 
No campo do misticismo, do ocultismo, da fé religiosa e da superstição, a fatalidade sugere a existência de Poderes muito superiores a nós e sugere também que todo o nosso destino, até os nossos menores gestos, já estão “escritos nas estrelas”, são irrecorríveis. Estava escrito que eu iria escrever estas frases agora.
 
E o conceito oposto à fatalidade é o conceito da Magia, segundo o qual temos poderes também, somos capazes de interferir no Destino, somos capazes de rasurar o que estava escrito no código-fonte do Universo e criar ali um palimpsesto, um pentimento, um enxerto humano nas linhas da Vontade Divina.
 
Toda magia (feitiçaria, bruxaria, etc.) é uma tentativa de passar por cima da vontade dos deuses, uma gambiarra humana contra a fatalidade universal, e por isso ela é tantas vezes (na literatura) punida de uma maneira tão aterrorizante.