David Lynch foi um dos grandes diretores indutivos da
história do cinema.
Existem cineastas dedutivos – que concebem uma teoria, um
tema, uma situação ampla e abstrata, e depois vão procurar situações humanas
capazes de ilustrar essas idéias. “Vou contar uma história sobre a vida difícil
dos migrantes norte-americanos na época da Grande Depressão”.
E existem cineastas indutivos, que partem de uma imagem
vívida, concreta, isolada (imagem geralmente surgida “por acaso”, “caída do
céu”, aparecida num sonho, etc.) e começam a explorar situações para
justificá-la: O que é aquilo? Como aconteceu? Quem são essas pessoas? Como
aquilo foi parar ali?
A melhor ilustração para esse processo de Lynch (que ele
já comentou em livros, entrevistas, etc.) poderia ser o início de Veludo Azul (1986), em que um rapaz está
curtindo uma agradável tarde de sol no jardim da casa de seus pais e de repente
acha na grama uma orelha humana decepada, coberta de formigas. O que é aquilo?
Como foi parar ali? Etc., etc.
E a história do filme vai se desdobrando, não para
ilustrar uma idéia que o diretor tinha desde o início, mas porque para
justificar a presença daquela imagem inicial o diretor vai ter que inventar
pessoas, situações, e aos poucos vai acabar inventando outras pessoas, envolvendo
uma cidade etc.
Esse processo “indutivo” se parece com certas técnicas de
psicologia e psicanálise baseadas em associação livre de idéias, sem propósito,
sem lógica, sem obrigação alguma – somente o fluxo de coisas que brotam da
nossa cabeça quando produzimos pensamentos, mas sem “briefing”, sem objetivo
prático, sem teoria, apenas o fluxo do inconsciente, estimulado por uma mera
pressão do tipo: O que você está vendo? Isso parece com quê? Por que está aí? O
que tem em redor disso? Etc.
E este processo é mais ou menos o que os Surrealistas
pregavam, conforma a definição clássica de André Breton (Manifesto do Surrealismo, 1924):
“Surrealismo é um automatismo
psíquico em estado puro, mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por
escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do
pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer
preocupação estética ou moral.” (trad. Sérgio Pachá)
Já li ou assisti inúmeras entrevistas de Lynch, mas não
me lembro de nenhuma em que ele se classificasse como “surrealista” – o que
aliás seria um erro, pois cada vez que um artista admite ser incluído num
“ismo” qualquer está construindo uma gaiola em volta de si mesmo e jogando a
chave no rio.
Vale lembrar também que André Breton, o surrealista-raiz,
tinha um profundo desprezo pela “literatura”, pela “contação de histórias” e
buscava o jorro contínuo de imagens bizarras não conectadas por qualquer
arremedo de “roteiro comercial”.
(Luís Buñuel, Un Chien Andalou)
Breton, como todo profeta de uma ideologia, era um
purista, um radical. Celebrou os primeiros filmes de Luís Buñuel (Um Cão Andaluz, L’Âge d’Or); não sei o
que terá dito de filmes comerciais, com começo-meio-e-fim como Viridiana ou A Bela da Tarde.
Os filmes de Lynch, como os do Buñuel maduro, são filmes
comerciais (todos foram exibidos comercialmente, com graus variados de sucesso
financeiro) aproveitando o método surrealista (que é quase um método
psicanalítico). Mas sua geração de imagens bizarras se dá num contexto de
“cinemão”, familiar ao repertório do público.
Uma orelha decepada? Deve ter havido um crime, vamos
chamar a polícia, etc. Mas quanto mais
se investiga, mais coisas bizarras aparecem. E a cada bizarrice nova é preciso
ampliar o contexto para que elas façam sentido, e é um processo sem fim. Uma
boa parte do cinema de Lynch se desenvolve dessa maneira.
O que há dentro da caixinha de música do musculoso chinês
que frequenta o bordel em A Bela da Tarde?
O que há dentro da misteriosa caixa azul que vai parar nas mãos das moças de Mullholland Drive? Enquanto o diretor
não mostrar, pode haver qualquer coisa.
(Luís Buñuel, A Bela da Tarde)
Um dos grandes problemas da crítica cinematográfica é
quando um crítico de cabeça dedutiva vai analisar um filme de um cineasta de
cabeça indutiva (ou vice-versa) e tenta, à força, fazer essa cavilha quadrada
se encaixar num buraco redondo (ou vice-versa). São modos de pensar diferentes
e é em casos assim que frequentemente encontramos o protesto de “critique o
filme que o diretor fez, não o que você teria feito no lugar dele”.
São como idiomas diferentes: pensar dedutivamente (do
geral para o particular, do abstrato para o concreto) e pensar indutivamente (do
particular para o geral, do concreto para o abstrato). Qualquer pessoa pode cultivar
os dois, mas é muito frequente que um conjunto de fatores desde a infância
(vida familiar, educação, leituras, influências) faça com que uma pessoa às
vezes, tenha muita dificuldade para “mudar de idioma” em sua cabeça.
Os cinemas de Lynch e de Buñuel são um esforço permanente
para conciliar, no contexto basicamente comercial do cinema de longa-metragem, não
somente esses dois processos, mas a conviência entre imagens bizarras e
contexto banal.
Eu diria que um dos predecessores mais ilustres desse
processo são as colagens de Max Ernst em obras como Une Semaine de Bonté (1934) e outras. Ernst pegava as imagens mais
“comerciais” e caretas de sua época (as gravuras ilustrando romances de amor,
de ascensão social, de tragédias familiares, de entretenimento classe-média),
recortava, colava, e usava esse contexto extremamente familiar ao leitor comum
da época para produzir situações cômicas, absurdas, “surrealistas”.
(Max Ernst, Une Semaine de Bonté, 1934)
Este tipo de narrativa consegue muitas vezes um equilíbrio
fascinante entre “contexto normal x imagens bizarras”.
Buñuel consegue isto narrando histórias inspiradas em
romances-folhetim (Joseph Kessel, Pérez Galdós, Octave Mirbeau, Pierre Louys)
e distorcendo essas histórias para transformá-las em alucinações sob controle.
David Lynch recorre ao universo riquíssimo da vida
suburbana norte-americana, aos bairros residenciais das cidades interioranas, àquela
aparente normalidade residencial, profissional e familiar, e começa a destampar
bueiros, arrombar portas, acender luzes, e descobrir tudo que existe de
violento e primal para sustentar aquela normalidade aparente.
É um equilíbrio perigoso, porque muitos espectadores
ficam profundamente irritados quando entendem 90% de um filme mas não conseguem
em hipótese alguma justificar aqueles outros 10% incompreensíveis. Eu sei o que
é esta sensação.
O universo de Lynch é um universo “caiado por fora e
podre por dentro”, e ele geralmente percorre esse universo levado pela mão de
um personagem que sem querer mergulhou numa história aterrorizante ou, no caso
do agente do FBI de Twin Peaks, de um
personagem que por força do seu ofício já sabe o que pode haver no mundo e
precisa transitar o tempo inteiro entre o cenário das aparências e os
bastidores da realidade.
Pode até não
parecer muito, mas o mundo de David Lynch é o mesmo de Philip K Dick, aquele
Projac de simulacros onde mora gente que pensa que é gente de verdade. Aquelas
casas com grama verde, cerquinhas brancas, garagem coberta, barbecue ao ar livre, rock na vitrola ou
no smartphone. É uma realidade de acrílico e compensado, na qual as pessoas
vivem, comem, dormem, até que o primeiro ruído se infiltra... e buga o programa
inteiro.
É o detalhe terrível que Glauber Rocha chamava de “o
câncer no lábio da Miss”.
(Tom Waits, Frank's Wild Years)
Entre os muitos comentários sobre Lynch que pipocaram nas
redes estes dias, vi um do leitor Charles Bergman no grupo de Facebook Tom
Waits sugerindo que não pode haver cineasta melhor do que Lynch para
traduzir visualmente as canções de Waits (ele cita “Black Wings”, “Underground”,
“What’s He Building”).
Ei-las aqui:
É o mesmo universo suburbano, boêmio, de “morbeza lírica”
(Macalé + Waly Salomão), de “amour fou” misturado com “true crime”; sexo,
drogas e rock anos 1950. Um contexto de intensas referências nostálgicas e de
perplexidade de quem, a certa altura do século, perdeu o rumo e entrou numa
estrada perdida.