quarta-feira, 1 de abril de 2020

4565) Eu me lembro XVIII (1.4.2020)




(Angelim)
1
Eu me lembro de uma vez, na infância, em que eu e meu irmão Pedro fomos passar férias em Angelim (Pernambuco), onde meu avô Pedro Quirino tinha uma fazenda, a Broca. Acho que ficamos lá algumas semanas. Meu pai gostava de botar apelidos de brincadeira; o meu apelido era Nego Brola, e o de Pedro, por ser meio rechonchudo, era Gordurinha. Depois de algum tempo que estávamos lá, chegou alguém de Campina Grande com uma carta de meu pai, e ele mandou duas quadrinhas para nós: “Eu aqui nesta cidade / ouvindo o som da viola / fico cheio de saudade / do meu filho Nego Brola”, e a outra: “E recordo em desatino / de manhã, de manhãzinha, / meu filho Pedro Quirino / conhecido Gordurinha”.


2
Minha mãe era religiosa (foi católica, depois virou espírita como a maioria das minhas tias), e meu pai era um agnóstico que na velhice fez as pazes com o Pai Eterno. O agnosticismo dele era mais o do boêmio do que o do filósofo; não se ancorava em reflexões ou em provas conceituais, mas, como o de muitos brasileiros, numa auto-suficiência materialista de quem não tem muito tempo a perder com assuntos invisíveis. Depois que minha mãe passou a frequentar centros espíritas, ele fazia brincadeira, mas nunca questionou o direito dela de fazer o que bem entendesse, contanto que ele pudesse produzir alguma piada a respeito. E assim se equilibravam. Uma vez estávamos na sala, numa manhã ensolarada, eu, ele e minha irmã Clotilde, cada qual lendo na sua poltrona, quando de repente a porta da frente, que dava para o terraço, se abriu sozinha... ficou assim durante alguns segundos... e voltou a se fechar, lentamente. Minha irmã disse: “O que foi isso?!” e ele abaixou o jornal e respondeu: “É algum amigo da tua mãe que foi falar com ela lá na cozinha”. Meu pai também me ensinou uma fórmula que segundo ele era recitada pelas velhas rezadeiras que iam “fazer passes” nas pessoas de nossa família (Comadre Laurinda, Siina de João Congo). Segundo ele a ladainha sussurrada dizia assim: “Se tu tava doente... por que não me dissesse... que eu te curava... com três peido meu... três de Mãe Maria... três de Pai Mateu... torrão, torrão, meu cagalhão”.  E recentemente vi um vídeo curtinho de um recitatório muito parecido com este, só que mais longo, e cheio de palavrões, muito divertido (foto acima).


3
Entre os oito e os doze anos eu detestava ir para o colégio, porque as aulas em geral eram chatas, o terror da nota baixa era constante, a timidez me travava para tudo, até pra comprar o lanche, e o bullying não perdoava (naquele tempo, era comum, numa classe com faixa etária média de 10 anos, ter uma meia dúzia de alunos com 16 ou 18.) Quando chegava o temido mês do início das aulas, eu tinha dificuldade de dormir à noite pensando nisso. Faltam dez dias... faltam nove... faltam oito... E me consolava pensando: “Não! Dá pra aguentar! Em junho tem um mês de férias! E em dezembro tem três meses!”  Isso me animava um pouco. E eu ia mais além: “Ora, é só de segunda a sexta! Vou ter o sábado e o domingo pra ficar em casa, lendo e brincando!”. O moral melhorava mais um pouco. Encorajado, eu insistia: “E tem outra: é só de manhã! Meio dia, eu volto pra casa, almoço, e tenho a tarde toda e a noite toda pra mim!...”  E com essas migalhas de conforto eu reunia forças para todo dia acordar, vestir o uniforme, lavar o rosto com aquela água gelada da torneira e partir para o sacrifício.


4
Eu me lembro da banca de revistas de Henrique, no Calçadão da rua Cardoso Vieira, antes mesmo do calçadão existir. Ela ficava exatamente na esquina com a Marquês do Herval, onde anos depois seria construído o Edifício Lucas. Eu saía do colégio Alfredo Dantas e ia direto para a banca, pegando minhas mesadas acumuladas para comprar revistas e livros de bolso. Comprava muitos livros policiais das Edições de Ouro: Shell Scott, Johnny Liddell, David Goodis, Bruno Fischer, Irving Le Roy... Um dia eu fui lá com minha mãe, comprei um livro, aí Henrique (que me chamava “meu prezado”) olhou para ela e disse: “Tenha cuidado, esse menino lê muito livro de crime, pode virar um criminoso.”  Dona Cleuza encarou ele e disse, firme: “O senhor tá enganado. Ele vai virar escritor.”