domingo, 17 de fevereiro de 2019

4435) O pior de tudo (17.2.2019)




(ilustração: Robert Place)

O pior de tudo nem é esse ácido queimando na boca do estômago desde a hora do café até o escovar-dos-dentes antes de apagar de vez a luz; como também não é a pressão nas veias do cérebro, ou artérias, sei lá o que são, sei que parecem inchadas como se cada má notícia lida em silêncio diante do monitor fosse o pumpear acelerado de uma bomba de encher pneu de bicicleta, inflando esses condutos sanguíneos, que segundo se diz têm a espessura menor que um fio de cabelo, são tão finos que os glóbulos vermelhos passam por dentro deles em fila indiana, mas depois de meia hora de redes sociais cada veia dessas está da grossura de um macarrão de bom calibre, o que faz a cabeça latejar a cada mexida, a cada vez que a gente lê algo inominável e o primeiro impulso, o primeiro e infantil impulso é ficar fazendo assim com a cabeça, não, não, não pode ser, e a cabeça responde com fagulhas, com agulhas, com faíscas dolorosas de nervo-exposto.

Também não é (=o pior de tudo) o fato de saber que tudo ocorre fora dessa mesma cabeça; não há muita lógica no fato de ela ostentar tanta pressão, afinal é lá fora a catástrofe, afinal é lá fora o desmoronar de um mundo, afinal tanto faz para o mundo que essa cabeça esteja saboreando à noite seus pesadelos habituais em cima do travesseiro empapado de suor quanto que esteja aqui sendo balançada com incredulidade e (bora reconhecer) um certo teatralismo se quem se boquiabre diante de cada despautério do real, histrionicamente, como se houvesse por perto (nunca há) alguém que percebesse um movimento sutil e erguesse o sobrolho e perguntasse o que é que há, você está bem, está com uma cara engraçada.

Não, as coisas são o que são, são porque são mesmo e não adianta balançar cabeça, bater cabeça, perder a cabeça, e caso seja mesmo necessário continuar lendo tantos fatos espantosos às oito da matina, horário infame, horário da cafeína dos insones, então que seja, mais vale a pena ir lá dentro e derramar a meia caneca que já esfriou esquecida, enchê-la da droga negra fumegante, trazê-la para o primeiro gole, que não resolve nada, e deixá-la ali ao alcance da mão que nem se move, deixá-la entregue à entropia de si mesma, esfriando como se a temperatura ambiente estivesse uns dez graus abaixo do que efetivamente está.

Um placebo provisório é tentar frasezinha de efeito no arquivo-word ainda em branco, um comentariozinho metido a esperto a respeito desse falso paradoxo, dizer algo como: “O verão está tão brabo que a gente pode deixar uma xícara em cima da mesa durante meia hora e o café permanece tomável.”

O pior de tudo não é a guerrilha das dores que se deslocam corpo afora com a rapidez de um grupo de espartaquistas bem treinados, atacando agora nas costelas, depois no ouvido, mais tarde na sola do pé, e por aí vai; afinal a ciência já provou que há pessoas somatizadoras e a presente vítima certamente é uma delas; deve existir inclusive uma relação topológica entre checar a data de um boleto e sentir a pontada no ouvido, pensar em dinheiro e sentir a acelerada no coração, ver a manchete do sinistro e já adivinhar a alfinetada fina bem na vértebra cervical. Há uma correspondência do-in entre cada dor do mundo e cada ponto sensível do corpo, descobre ele, esfregando as mãos excitado diante deste futuro Nobel. Estimulando-se a violência policial nas comunidades encarapitadas no morro produz-se a notícia capaz de fazer o calo-de-sangue crescer sob a pele; toda vez é assim, parece uma parceria, uma combinação sob contrato. Cada vez que um direito fundamental é atropelado pela fúria quadrupedal dos congressistas as veiazinhas das meninges fritam que é uma beleza. E assim por diante.

O remédio seria então o solipsismo, o retorno larvar ao umbigo primevo, o refúgio na caverna de cajado em punho? Parece que não, porque afinal o vírus informacional já foi transferido para os neurônios, e mesmo em caso de exílio voluntário não seria mais a notícia – e sim a lembrança – a deflagrar a dor correspondente. Não. O processo já teve início. O contágio já aconteceu. Agora é só uma questão de tempo até a pressão da realidade fazer explodir um desses fusíveis, um desses pontos nevrálgicos, e colapsar o conjunto num monte informe de carnes e ossos agora definitivamente imóveis e em irreparável resfriamento.

O pior de tudo nem é essa reiterada fantasia de auto-imolação, é o fato de que a única redenção talvez seja a consciência impotente de que isso de fato acontece, e não poder fazer nada, e não poder chorar pitanga, e não poder redigir um obituário poético pelo leite derramado, não poder ver o mundo pegar fogo e murmurar a mais pragmática e reconfortante das orações fúnebres, a que diz “antes ele do que eu”. Nem é isso o pior: o pior é o retalhamento das expectativas, o vazamento deflacionário das esperanças, a coagulação opaca dos fluxos vitais, a sensação de que a encruzilhada crucial está ficando cada-vez-mais lá para trás, enquanto o caminho-errado se alarga à nossa frente e se acelera sob nossos pés a cada dia que corre, e não adianta ir à janela, fumar um cigarro, jorrar chuveiro frio, vestir roupa limpa, ir à geladeira, raspar a barba desse rosto que parece um terreno baldio, arreganhar os dentes como se alguém estivesse filmando aquilo com uma câmara, vai ver que estão, vai ver que enquanto eu dormia já estamos no século das coisas pensantes, da casa inteligente, o espelho é uma placa transmissora, o interruptor é um microfone embutido, e num plano superdimensional existem criaturas com três cérebros e onze pseudópodos se divertindo com a minha neurose, ou talvez as criaturas nem sejam essas, sejam meros sujeitos iguais a mim, aqueles do colégio, os que me cobriam de tapa no recreio e me cravavam um lápis ameaçador nas costelas durante a prova exigindo as respostas, e respostas é o que não tenho para lhes fornecer, muito menos agora, ensaboado imóvel diante do espelho e pensando em cortar os pulsos com o prestobarba, bela maneira de começar o dia, um dia igual a todos os outros, nem melhor nem pior, um dia que começa como todos e que (tomara, tomara) terminará como todos, no travesseiro suado, no escuro final, no instante de fechar os olhos exaustos de ver e pedir que não seja aquela a última vez, já que a vida é um pesadelo do qual ninguém quer despertar.