terça-feira, 28 de janeiro de 2025

5147) "Mindhunter": a mente de um assassino (28.1.2025)




 
Um detetive é alguém que lê sinais, marcas, indícios. Sherlock Holmes nos habituou à idéia de que os principais indícios são físicos, e podem ser percebidos e avaliados em alguns segundos. São famosas as suas deduções sobre um cliente seu no momento em que este se apresenta e os dois apertam as mãos. 
 
Pego um exemplo entre muitos, nas páginas iniciais de “O Rosto Lívido” (“The Adventure of the Blanched Soldier”, 1893). Curiosamente, é uma das poucas histórias narradas pelo próprio Holmes, e não pelo Dr. Watson: 
 
-- O senhor vem, segundo percebo, da África do Sul.
--  Sim, senhor, -- respondeu ele, algo surpreso.
-- Da guarda imperial, creio eu.
-- Exato.
-- Do corpo de Middlesex, sem dúvida.
-- Isso mesmo, Mr. Holmes, o senhor é um adivinho.
Sorri vendo o ar de espanto do meu visitante.
-- Quando um cavalheiro de aparência varonil entre nos meus aposentos com a tez tostada por um sol que não é o sol da Inglaterra e com o lenço metido na manga em vez de o ter na algibeira, não é difícil conjeturar a sua procedência. O senhor usa barba curta, e isso mostra que não era um soldado regular. Tem o corte de um cavalheiro. Quanto a Middlesex, o seu cartão já havia me mostrado que o senhor é corretor em Throgmorton Street. Em qual outro regimento o senhor havia de entrar?
-- O senhor vê tudo.
-- Não vejo mais que o senhor. O que eu fiz foi adestrar-me em reparar no que vejo.
(Histórias de Sherlock Holmes, Ed. Melhoramentos, trad. Agenor Soares de Moura, p. 41)
 


Um detetive precisa adestrar-se constantemente a reparar no que vê, e às vezes isto vai além do mais visível, do mais superficial. O que somos capazes de ver da mente de um criminoso, apenas observando o local do crime? Como saber quem é ele, que influências sofreu, que cacoetes possui, que manias, que traumas? O que faz o comportamento de um assassino psicopata ser, muitas vezes, organizado, racional, pragmático, lógico – e, consequentemente, previsível? 
 
Com essa idéia nas cabeças de muita gente foi criada na década de 1970, na academia do FBI em Quantico (Virginia), a chamada BSU (Behavioral Science Unit), em que investigadores e cientistas passaram a se concentrar na elaboração de perfis psicológicos dos criminosos, o que envolvia a realização de extensas entrevistas com psicopatas presos. 
 
Este é o tema da série da Netflix Mindhunter, cuja primeira temporada acabei de ver agora e já me preparo para a segunda, porque a série é muito boa. Em primeiro lugar, não é simplesmente sobre a elucidação de assassinatos e a prisão dos culpados: é a luta de detetives com mentalidade científica para tratar cientificamente a investigação criminal, enfrentando resistências em muitas frentes. 



(Jonathan Gross, como “Holden Ford” e Happy Anderson, como “Jerry Brudos”)

 
A série mostra entrevistas com assassinos reais (interpretados por atores, claro) como Edmund Kemper (que, entre outras vítimas, matou os avós paternos aos 15 anos e a mãe aos 25), Richard Speck (que em 1966 matou oito enfermeiras numa só noite, num mesmo alojamento), Jerry Brudos, Montie Rissell e outros. 
 
O esforço dos detetives é para entender e reconstituir o modo distorcido de pensar, os sentimentos turvos, as fúrias inconscientes dos criminosos. E nesse processo, que tem seu lado mórbido e doentio, os detetives ficam com a mente (compreensivelmente) atormentada. 
 
Dizia um soneto famoso de Luís de Camões: 
 
Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar:
não tenho logo mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada. (...) 

É meio irônico e meio cruel constatar que algo parecido ocorre entre o caçador e a caça. O caçador pensa tanto na caça, preocupa-se tanto com ela... Uma estranha identificação começa a surgir. Adivinhar o pensamento de alguém é transformar-se nesse alguém, em certa medida. Jorge Luis Borges dizia que todo homem que recita uma linha de Shakespeare torna-se Shakespeare nesse momento. 
 
Uma variante mórbida desse processo é o triângulo vítima-assassino-detetive, quando lidamos com crimes planejados e longamente preparados por um “serial killer”. Ele passa semanas ou meses vigiando sua vítima, ou preparando uma armadilha em que a vítima (neste caso, qualquer pessoa que apareça) irá cair, quando a ocasião certa se apresentar. 
 
David Fincher dirigiu (entre outros) filmes como Se7en (1995), Clube da Luta (1999), Zodiac (2007), The Girl with the Dragon Tattoo (2011), The Killer (2023). A psicologia mórbida dos criminosos não lhe é estranha. Seu mérito como diretor, no presente caso, é conseguir jogar seus agentes federais, de terno e gravata, no ambiente hippie-universitário dos anos 1970, onde eles são vistos como símbolos da repressão do Governo. 
 
A reconstituição de época é precisa, não apenas no exterior (carros, roupas, objetos de cena, expressões) mas na mentalidade. É irônico que a própria polícia norte-americana reaja com ceticismo à possibilidade de analisar psicologicamente algumas dezenas de criminosos e, com isto, ser capaz de “fechar” uma investigação em alguns poucos suspeitos, e neles apontar o culpado. 
 
A série se baseia no livro Mindhunter: Inside the FBI's Elite Serial Crime Unit (1995), escrito pelo agente aposentado do FBI John E. Douglas (com Mark Olshaker). (No Brasil, “Mindhunter – o Primeiro Caçador de Serial Killers Americano”, Ed. Intrínseca, trad. Lucas Peterson.) 
 
Diz Douglas, comentando as investigações no caso do assassinato de Francine Elveson, em 1979, em Nova York: 
 
Depois de revisar todas as evidências e os materiais do caso, e de tentar me colocar no lugar tanto da vítima quanto do criminoso, tracei um perfil. Sugeri que a polícia procurasse um homem branco de aparência comum, entre 25 e 35 anos, provavelmente trinta, que pareceria um tanto desgrenhado, estaria desempregado, teria hábitos mais noturnos, moraria dentro de um raio de oitocentos metros do edifício com seus pais ou uma mulher mais velha da família, seria solteiro e não teria relacionamento algum com mulheres ou amigos próximos, teria abandonado a escola ou faculdade, não teria experiência militar, teria baixa autoestima, não teria carro ou carteira de motorista, estaria ou teria estado em uma instituição psiquiátrica e tomaria medicamentos controlados, teria tentado suicídio por estrangulamento ou asfixia, não abusaria de drogas ou álcool e teria uma coleção enorme de pornografia de bondage e sadomasoquismo. Esse seria o seu primeiro assassinato e, na realidade,
seu primeiro crime grave, mas não seria o último, a não ser que fosse capturado. 

 

— Não precisam procurar muito longe por esse homicida — falei para os investigadores. — Vocês, inclusive, já conversaram com ele. (p. 138) 
 
No livro, Douglas justifica de forma convincente cada um dos detalhes de sua hipótese, e quando o criminoso é descoberto verifica-se que praticamente tudo era correto. 
 
Douglas é um adivinho? Não, nem ele nem Sherlock Holmes. Na série Netflix, os policiais usam o nome de Sherlock para elogiar o agente Holden Ford (interpretado por Jonathan Gross), que é mais ou menos um “alter ego” de John Douglas. Não se trata de adivinhar: trata-se de “adestrar-se constantemente a reparar no que vê”. 



(Holt Mc Callany como "Bill Tench")

 
Nos episódios finais da série há uma cena interessante em que os agentes Ford e Bill Tench (interpretado por Holt McCallany) conversam com a psicóloga Dr. Wendy Carr (interpretada por Anna Torv) e discutem a nomenclatura que precisam estabelecer para a pesquisa – e acabam chegando, meio casualmente, à expressão “serial killer”. 
 
Naquele diálogo banal, da rotina de trabalho, nasceu o termo que designa o anti-herói típico de nossa época. No século 20, era o vilão internacional que pretendia dominar o mundo: Goldfinger, Dr. Fumanchu, Lex Luthor... O arqui-vilão típico do século 21 está na linha de Hannibal Lecter: inteligente, sociopata, meticuloso, sem sentimentos, arrebatado por sentimentos conflitantes de inadequação e megalomania, propenso a fantasias eróticas e delírios de poder, sujeito a preconceitos (de classe, de raça, de sexo, etc.)... 
 
Um indivíduo silencioso, discreto, que não chama a atenção, mas cujos comportamentos ritualizados e maníacos podem ser avaliados à distância, pelas pistas que deixa; até que alguém toque à sua campainha. 



(Holt McCallany, Anna Torv e Jonathan Gross)