sexta-feira, 24 de agosto de 2018

4379) Bellamy, Machado de Assis e Borges (24.8.2018)




Um dos romances de antecipação científica mais famosos do século 19 foi Looking Backward 2000-1887, de Edward Bellamy, publicado pela primeira vez em 1888. Grande sucesso de público. Diz-se que foi o terceiro livro de autor norte-americano a atingir a vendagem estupenda que atingiu, comparando-se apenas a A Cabana do Pai Tomás (1851) de Harriet Beecher Stowe e Ben Hur (1880) de Lewis Wallace.

Looking Backward conta a história de Julian West, um rapaz de 1887 que adormece um sono hipnótico e desperta no futuro, no ano 2000, na mesma cidade de Boston onde morava, só que agora a cidade faz parte de um futuro utópico e socialista.

O livro segue o padrão normal das utopias do século 19 e começos do século 20 – alguém chega de supetão numa sociedade futura ou remota, espanta-se com as transformações sociais, e recebe a companhia de um cicerone que vai explicar-lhe como aquele mundo funciona. O mundo de Bellamy, no caso, é racionalista, socialista (embora ele evite a palavra), cheio de pequenas justiças compulsórias.

Bellamy pode ter também influenciado várias obras obscuras mas importantes da literatura utópica ou especulativa brasileira, tais como São Paulo no Anno 2000 de Godofredo E. Barnsley (1909) ou O Reino de Kiato de Rodolpho Teófilo (1922).




Mas nem é disso que quero falar, e sim de certo curioso efeito narrativo do livro. Antes de contar aos seus leitores “futuros” como foi parar no mundo deles, Julian West começa dizendo o ano em que nasceu.


O começo de Looking Backward diz (tradução minha):


CAPÍTULO I

Vi pela primeira vez a luz do dia na cidade de Boston, no ano de 1857. “O quê!”, vocês dirão, “mil oitocentos e cinquenta e sete? Que erro mais curioso. Ele quis dizer mil novecentos e cinquenta e sete, é claro.” Peço perdão, mas não houve nenhum erro. Eram cerca de quatro horas da tarde do dia 26 de dezembro, um dia após o Natal, no ano de 1857, não de 1957, quando eu respirei pela primeira vez o vento leste de Boston, o qual, posso garantir ao leitor, naquele período remoto se caracterizava pela mesma qualidade penetrante que tem neste ano da graça de 2000.

A surpresa sugerida, é claro, é porque os leitores de 2000 não podem acreditar que o rapaz tenha 143 anos.

Pode-se comparar o início desse livro com o início do conto de Machado de Assis, “O Imortal” (1882), publicado pela primeira vez na revista A Estação (Rio de Janeiro), entre julho e setembro de 1882, como folhetim seriado.

Assim começa o conto de Machado:


— Meu pai nasceu em 1600...

— Perdão, em 1800, naturalmente...

— Não, senhor, replicou o Dr. Leão, de um modo grave e triste; foi em 1600.

Estupefação dos ouvintes, que eram dois, o Coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. A vila era na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas. Tudo silêncio. O lugar em que os três estavam era a varanda que dava para o terreiro. Um lampião de luz frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa.

— Não, senhor; nasceu em 1600.

É visível a semelhança retórica das duas aberturas. Anuncia-se a data (remota) do nascimento do personagem, há uma reação de espanto, uma correção é sugerida, mas o narrador reafirma, e começa uma transição para uma concretude dramática que faz esquecer o resto.

Quando percebi essa semelhança imaginei que Machado (1839-1908), ao escrever seu conto fantástico estaria meio que citando Bellamy (1850-1898), escritor contemporâneo seu. Só depois me dei conta de que o conto de Machado é anterior ao romance de Bellamy.

As Carpideiras do Plágio já começam a puxar seus enormes lenços, mas peço que façam uma pausa enquanto concluo minha argumentação. Bellamy, pelos relatos de que se dispõe, concebeu seu romance e trabalhou nele entre 1880 e 1887. Seria capaz de ler em português? Teria tido acesso à revista A Estação? Teria não apenas lido o conto de Machado, mas gravado na memória o recurso estilístico desta abertura?

Note-se que a semelhança não é entre os dois argumentos, os dois enredos. Em casos assim, é muito mais simples imitar uma obra que não se leu. Basta que outra pessoa tenha lido a obra original e faça um resumo; nesse resumo o segundo autor pode se inspirar para fazer a obra derivada. (Yann Martel afirma que leu apenas um resumo do livro de Moacyr Scliar, Max e os Felinos, para escrever seu A Vida de Pi, que foi acusado de plágio.)

O que há de semelhante é apenas o jeito de começar a história que desde o título promete tratar de alguma transgressão temporal: a afirmação de uma data espantosa, depois uma dúvida, depois uma reafirmação. Detalhe que pode perfeitamente ser omitido por quem se dispuser a resumir qualquer um dos dois textos. Semelhança de uma dúzia de linhas. A gente só percebe porque se trata do início de ambas as histórias.

Se a dúvida fosse ao contrário (“Machado imitou Bellamy?”), seria teoricamente mais plausível – se não fosse a questão da data. Machado era bem informado, lia (e traduzia) do inglês, tinha acesso a livros importados. Mas... quando escreveu “O Imortal” o livro de Bellany não existia ainda.

Mais interessante do que a discussão das precedências, porém, é a comparação estilística.

O texto de Bellamy, pelo menos nessa “cabeça” selecionada, é seco e preciso, apesar de uma certa coloquialidade meio forçada, aos olhos de hoje.

Machado, que fazia aberturas brilhantes, faz mais uma, não na dúvida cronológica, ou “cronoclásmica”, sobre quem nasceu quando, mas porque ele traça um verdadeiro diorama visual, com pinceladas de escuro e claro. O silêncio, a varanda, o lampião. A contraluz, e o vento.

É um parágrafo muito visualizador, e, recortado do presente contexto, poderia abrir um “capítulo 1” de muitos escritores de aventuras.

Machado não escrevia grandes cenas de ação épica, mas quando um detalhe de suas histórias precisa de uma ilustração vívida, sólida, indicando ambientação, tensão narrativa, aquarela social, ilustração de revista, ele faz com pinceladas assim.

E se alguém achar pouco a coincidência ou ressonância entre ele e Bellamy, há o episódio daquela figura de linguagem que eu chamo a Indecisão Borgiana, quando o Autor discorre em voz alta para o Leitor sobre a sua dúvida quanto ao nome de um personagem, à época em que aquilo se deu, ao cenário de uma trama. Em vez de fundar a narrativa numa ponto geográfico ou cronológico preciso, ele faz esse ponto flutuar sem causar problema.



No “Tema do Traidor e do Herói” (1944, Ficções), Borges abre com este parágrafo (tradução de Maria Julieta Graña e Marly de Oliveira Moreira, Sabiá, 1989):

Sob a notória influência de Chesterton (narrador e exornador de elegantes mistérios) e do conselheiro áulico Leibniz (que inventou a harmonia prestabelecida), imaginei este argumento, que escreverei talvez e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis. Faltam pormenores, retificações, ajustes; há zonas da história que não me foram ainda reveladas; hoje, 3 de janeiro de 1944, vislumbro-a assim.

A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a república de Veneza, algum estado sul-americano ou balcânico. Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824.

Ou seja, ninguém está querendo que a gente contamine de realidade essa história que podia acontecer em muitos tempos, em muitos lugares. (Seria interessante uma antologia seguindo as dicas acima.)


No conto “O Homem no Umbral” (1952, O Aleph (tradução de Flávio José Cardozo, Globo/MEC, Porto Alegre, 1972), Borges desta vez faz um preâmbulo onde atribui toda a história que se segue a um relato de um diplomata. Depois diz:

A exata geografia dos fatos que vou contar importa muito pouco. Além disso, que precisão conservam em Buenos Aires os nomes de Amritsar ou de Udh? Baste-me dizer, pois, que naqueles anos houve distúrbios numa cidade muçulmana e que o governo central enviou um homem forte para impor a ordem. Esse homem era escocês, de um ilustre clã de guerreiros, e no sangue levava uma tradição de violência. Uma só vez meus olhos o viram, mas não esquecerei [...]

Para o narrador tanto faz estar ambientando sua história nesta ou naquela cidade da Índia. O local pode ser qualquer um. O que vale mesmo é o que vem depois dessa incerteza topográfica: Baste-me dizer, pois... . Borges investe pesado no realismo; não é um quadro a óleo cheio de detalhes e de profundidade de campo, como o do conto de Machado. Ele prefere jogar na mesa uma situação concreta de história que pode ser militar, de aventura, de faroeste ou samurai. Não é tão visual quanto a pintura de Machado, mas tem energia dramatúrgica. É um peão-quatro-de-rei que qualquer leitor entende e aceita.

Engraçado como Borges também cria seus precursores, porque esse falso-vacilo como filigrana de estilo surge com variações em seus relatos. E talvez só em retrospecto eu perceba o quanto isso já está em Machado, em muitos trechos como no citado acima:

A vila era na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas.

A mesma dúvida quanto à cidade (a cidade tanto faz, não influi na narrativa) e logo em seguida ele pular para um início preciso e já em movimento. Isso quando Borges nem era nascido, mas ninguém me garante que semana que vem, procurando outra coisa, eu não encontre um terceiro exemplo para comparar com os de Machado e dos outros.




(antologia de Roberto Causo, Ed. Devir, que inclui o conto "Um Imortal" de Machado de Assis)