quarta-feira, 7 de março de 2018

4322) A China e o trocadilho (7.3.2018)



A imprensa mundial divulgou nos últimos dias algumas medidas de censura tomadas pelo governo da China. Medidas meio absurdas.

Toda censura é absurda, é claro, pelo menos do ponto-de-vista do purismo intelectual, que nos leva a imaginar um mundo sem defeitos, onde todo mundo pudesse dizer o que bem entende sem ser punido. Mas, se por um lado dá para entender por que os comunistas chineses proíbem A Revolução dos Bichos de George Orwell, não é tão óbvia a censura aos livros infantis que têm como personagem o ursinho Winnie The Pooh.

Esta eu só entendi quando vi esses memes que circulam, mostrando o Onisciente Líder Universal da Glória Sempiterna do Pujante Império do Meio, Xi Jinping, ao lado do síndico norte-americano na época, Barack Obama.

Mais incompreensível ainda foi a notícia de que o mesmo governo proibiu a letra N.

De início fiquei em dúvida se existe a letra N no alfabeto chinês, que é do tipo ideogrâmico. Depois, no entanto, a imprensa esclareceu.

O governo da China havia anunciado há pouco tempo que o mandato do atual presidente pode ser estendido indefinidamente, sem necessidade de novas eleições. E aí começaram a pipocar na web artigos e postagens dizendo que Xi Jinping iria governar por “n” anos. Resultado: proibiu-se o uso da letra como símbolo matemático de quantidade indeterminada, como já expliquei “n” vezes aqui nesta coluna.

Dias depois a censura ao “n” foi cancelada. Por enquanto.

Absurdo? Pode ser, mas é um absurdo com continuidade.

Em 2005 o governo da Turquia aplicou multas em quem usou, em cartazes erguidos nas celebrações de Ano Novo, as letras K e W, que não fazem parte do alfabeto oficial da Turquia.

Em seu esforço para se integrar à Europa, a Turquia trocou em 1928 a escrita arábica pela escrita ocidental, e neste processo as letras K e W não foram incluídas. As pessoas multadas (no equivalente a 75 dólares cada uma ) eram curdos, de uma região notoriamente indócil ao governo.

Devemos lembrar que aqui no Brasil as letras K, W e Y foram excluídas do alfabeto durante mais de meio século. Brasileiramente, continuaram sendo usadas (com a ressalva de serem “aportuguesamento de palavras estrangeiras”), e sem que ninguém pagasse multa por isso.

Na China, no entanto, a muralha é sempre alguns metros mais alta do que a escada.

Em 2014, o governo proibiu o uso de trocadilhos.


O que é mais absurdo ainda é que a língua chinesa é cheia de homófonos, sílabas que soam quase exatamente iguais. Tudo depende de como se pronuncia. Partículas tipo “shan”, “chan”, “jan”, “zhan” – que parecem iguais e não são.  

Não é só o chinês, claro. Quem estuda inglês passa noites em claro tentando achar as pronúncias exatas de “sheep”, “chip”, “cheap”, “ship” etc.

A norma chinesa anti-trocadilho alegava que essa prática violava as leis da língua escrita e falada, dificultava a absorção da herança cultural e podia induzir os ouvintes a erros, principalmente às crianças.

Os exemplos de como os chineses trocadilham na vida social são os mais bobinhos possíveis. A refeição de Ano Novo sempre inclui “alface”, porque a palavra chinesa correspondente soa parecido com “ganhar dinheiro”.

São superstições semelhantes às nossas, da pessoa que usa roupa de baixo amarela no reveillon para ficar rica. Já pensou se o Governo resolve proibir e fiscalizar esse tipo de coisa?

Por outro lado, liberar esse tipo de informalidade para mais de um bilhão de usuários deixa margem para que os rebeldes, os irreverentes, os dissidentes, os satíricos, todo esse pessoal deite e role na sacanagem com os nomes próprios dos Grandes Líderes, por exemplo.

Xi Jinping parece nas fotos ser um sujeito cheio de bonomia, mas teria um enfarte se fizessem com o nome dele o que a gente faz com os nomes de Lula, Temer, Dilma, Pezão, Bolsonaro, Dória e por aí vai.

Este verbete aqui, sobre a China, é cheio de exemplos interessantes: