terça-feira, 6 de maio de 2014

3491) Policarpo Quixote (6.5.2014)



É quase um lugar comum da crítica dizer que Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) de Lima Barreto é um romance sobre a loucura. A trajetória do protagonista é comparada à loucura mansa de Dom Quixote, que vive num mundo mental diferente da “realidade consensual” das pessoas à sua volta. O Major Quaresma, no entanto, é um cidadão muito mais integrado ao mundo. Trabalha numa repartição; conhece pessoalmente o Presidente da República; compra um sítio; dedica-se à agricultura; alista-se como voluntário no exército durante uma revolta armada... Ou seja: faz o que outros cidadãos também fazem ou gostariam de fazer. Não come merda nem rasga dinheiro, e toda vez que atravessa uma rua chega inteiro do outro lado.  Doido, ele não é. Ou pelo menos não é mais do que eu.

E no entanto o major acaba internado num sanatório, tal como aconteceu com o próprio Lima Barreto. Por que?  Porque cismou que o Brasil tinha que ser diferente. É a megalomania do paranóico, o qual acredita que o mundo inteiro gira em redor do seu umbigo, que o mundo inteiro espera dele intervenções grandiosas e decisivas. Quaresma é acometido de surtos de amor fervoroso pela Pátria, convence-se do grande destino que a espera, e tudo que quer é sacudir o povo brasileiro pelos ombros, despertá-lo, pô-lo de pé, encaminhá-lo para seu grande destino. Isto é ser doido?  No Brasil, parece que sim.

Lima Barreto diz: “O primeiro fato surpreendeu, mas vieram outros e outros, de forma que o que pareceu no começo uma extravagância, uma pequena mania, se apresentou logo em insânia declarada.”  O requerimento que ele faz à Câmara propondo que o tupi seja adotado como língua oficial do Brasil fica famoso da noite para o dia.  Quaresma, por assim dizer, torna-se um meme das redes sociais da época. “Publicado em todos os jornais, com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma pilhéria sobre ele... Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o major foi apontado na rua.”

A não ser em casos graves e extremos, um doido pode viver em paz e ser considerado apenas como excêntrico ou “cheio de manias”. O erro de Quaresma é tornar-se visível, primeiro pelo requerimento, depois quando por distração faz enviar um ofício em tupi (que fizera como mero exercício) na repartição onde trabalha. Tivesse ficado em casa com sua mania, seria deixado em paz. Seu erro é o erro de todos os idealistas: querer colocar em prática seus ideais. É o erro dos filósofos que não se contentam em explicar o mundo, querem mudá-lo também. Todo mundo aceitaria Dom Quixote lendo seus livros de cavalaria e sonhando em paz. Mas pegou em armas?  É doido.