sábado, 21 de fevereiro de 2009

0828) Feynman, amor e morte (11.11.2005)



Um dos sujeitos que mais admiro é Richard Feynman (pronuncia-se “fáin-man”). Acho até que ele era mais inteligente do que eu (ganhou um Prêmio Nobel de Física, e eu não). 

Você é cientista, caro leitor? Seus estudos, ou sua carreira profissional, são no domínio das Ciências, do entendimento das leis do Universo, do cultivo do pensamento lógico e organizado? Não leia Einstein nem Isaac Newton: leia Feynman. 

Lógica e doidice, rigor e imaginação atingiram ali o ponto de equilíbrio que conjuga o máximo de duas forças mutuamente contraditórias e interdependentes.

A primeira esposa de Feynman, Arline, morreu de tuberculose em junho de 1945, quando ele trabalhava em Los Alamos, nas pesquisas para a construção da bomba atômica. 

Junto da cama dela no hospital havia um relógio. Arline disse a Feynman que aquele relógio era um símbolo do tempo que os dois tinham para viver juntos. No dia em que ela morreu, Feynman, a quilômetros de distância, recebeu uma notificação do hospital, na qual estava registrada a hora exata do óbito. Quando chegou lá, ele observou que o relógio na cabeceira da cama marcava exatamente a hora em que ela tinha morrrido. O relógio parara no momento exato da morte dela.

Pelo menos, é o que qualquer pessoa pensaria. Feynman, mesmo arrasado pela dor, recusou a explicação sobrenatural. Pensou, pensou, e ocorreu-lhe que o relógio era velho, o mecanismo era precário. Provavelmente quando Arline morreu, o relógio já tinha parado. Quando a enfermeira constatou a morte, olhou para ver as horas – e simplesmente anotou o que o relógio parado estava marcando. 

Diz Feynman: “Nunca pensei numa explicação sobrenatural. Tive que parar e procurar entender o que tinha acontecido”.

Insensíveis, os cientistas? Em outubro de 1946, mais de um ano após a morte de Arline, Feynman escreveu-lhe uma carta, que foi encontrada entre os papéis dele após sua morte em 1988. Ele dizia: 

“Querida, eu adoro você. Há muito tempo não lhe escrevo, mas você vai me perdoar porque sabe que eu sou assim, teimoso e realista. Achei que não havia sentido em lhe escrever. Mas agora eu sei que preciso fazer isto, fazer o que demorei tanto: dizer que te amo. É difícil entender, com a minha mente, o que significa amar alguém depois de morta. Mas eu ainda quero lhe confortar, tomar conta de você. E quero que você me ame e tome conta de mim. Quero ter problemas para poder discuti-los com você; quero que a gente faça planos juntos. Planos de aprender a costurar nossas próprias roupas, ou de aprender chinês, ou comprar um projetor de cinema. Será que posso fazer isto? Não. Estou sozinho, sem você que era a instigadora de todas as nossas aventuras malucas. (...) Você é tudo que me restou. Você é real. Minha esposa querida, eu adoro você. Eu amo minha esposa. Minha esposa está morta.” 

A carta, que ele nunca mostrou a ninguém, tinha a aparência de ter sido muitas vezes manuseada e relida ao longo daqueles 42 anos.





0827) O sintetizador Moog (10.11.2005)




(o Moog de 1970)

Eu devia ter uns dez anos de idade quando apareceu em Campina Grande um sujeito para fazer uma demonstração pública do Theremin, um instrumento eletrônico de produzir música; o primeiro sintetizador. 

Não me lembro se a demonstração foi feita no auditório da Rádio Borborema (onde se apresentavam os artistas de fora, desde Cauby Peixoto até Elza Soares) ou em cima de um caminhão na Praça da Bandeira (naquele tempo não tinha essa mordomia de “palco desmontável”).

Em todo caso, ficamos grudados ao pé do rádio, escutando aqueles sons estranhos, que pareciam os gemidos do próprio Espaço Sideral. 

Pascal disse certa vez, referindo-se ao Cosmos: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me amedronta”. Meu caro cientista, esses espaços estão repletos de estrídulos, lamentos, rangidos, uivos, rosnados e rugidos. Nós os captamos toda vez que giramos o botão de sintonia ao longo das faixas de um rádio AM: ouvimos ali a cacofonia cósmica, o fervilhar atômico das explosões da matéria. Pois o Theremin era algo parecido.

Do concerto só lembro a explicação do executante, de que aproximando ou afastando uma das mãos ele controlava o volume, e aproximando ou afastando a outra controlava os graves e agudos. 

O Theremin teve breves momentos de popularidade quando grupos de rock como os Beach Boys e o Led Zeppelin o utilizaram em gravações (quem quiser saber mais sobre o Theremin, veja em: http://www.thereminworld.com/learn.asp). Quem teve presença mais marcante, contudo, foi o sintetizador Moog, cujo inventor, Robert Moog, faleceu em agosto passado. 

Moog começou a carreira montando e vendendo Theremins, mas tinha idéias próprias sobre o aparelho e em 1964 produziu seu primeiro sintetizador, que entre outras inovações introduziu o uso de um teclado semelhante ao do piano.

Os discos que sacramentaram o sintetizador Moog como um instrumento par-a-par com os não-eletrônicos foram os trabalhos de Walter (hoje Wendy) Carlos Switched-on Bach (1968) e The Well-Tempered Synthesizer (1969). 

Os Beatles começaram a fazer experiências com ele em 1968, depois que George Harrison adquiriu um, durante uma passagem pela Califórnia. Os primeiros testes apareceram no seu disco solo Electronic Sounds, um dos mais obscuros lançamentos da Apple, e hoje uma raridade. Em seguida, o Moog foi usado em Abbey Road, nas gravações de “Because”, “Maxwell’s Silver Hammer”, “I Want You”, e “Here Comes the Sun”.

Os sintetizadores analógicos dessa época foram substituídos pelos sintetizadores digitais de hoje, mas têm uma sonoridade própria que é a cara dos anos 1960, tanto quanto o perfume de patchuli ou os posters psicodélicos. 

Os Beatles eram camaleões que mudavam de som de acordo com a música que tocavam, e eram avestruzes que devoravam qualquer inovação tecnológica que lhes despertasse a curiosidade. Por onde quer que a gente passe na música pop de hoje, encontra suas pegadas (os pés descalços são os de Paul).









0826) A questão das pirâmides (9.11.2005)




Todo mundo tem o direito de cultivar idéias contraditórias, e digo mais: tem o dever de fazê-lo. É como ter dois empregados que não gostam um do outro. Você sai de casa e fica tranqüilo, porque, a cada coisa errada que um fizer, o outro vem e denuncia.

Ter idéias antagônicas faz com que a gente não se deixe engambelar facilmente por uma delas, porque a outra rapidinha mete os pés: “Peraí, rapaz – tás esclerosando?”

Presente caso: sou um grande admirador das Pirâmides do Egito, mas se eu fosse vivo na época, teria sido um adversário mortal do projeto. Como é que é? Construir uma sepultura com um milhão de pedras pesadíssimas, botando o operariado egípcio para trabalhar 20 anos debaixo de chicote? De jeito nenhum. Sou contra.

Alguém viria me sussurrar: “Mas foi o Faraó quem mandou, e o homem é brabo!”. Ora, esta seria mais uma razão para ser contra. Não é por acaso que o termo “obra faraônica” grudou nesse tipo de construção gigantesca, caríssima, desnecessária, feita apenas para a vaidade e o deleite (e em muitos casos o enriquecimento escuso) de um grupinho de sujeitos.

Pensem na maior catedral do mundo, a da Costa do Marfim; nela cabem 300 mil pessoas. Pode ser bonita (foi planejada como uma réplica da Basílica de São Pedro), mas pergunto eu: tinha necessidade desse despropósito?

Neste momento, a Idéia Antagônica ergue a cabeça, como o vigilante periscópio de um submarino. “Peraí, poeta... então você é a favor de que essas obras arquitetônicas não existissem? Preferiria ver no lugar delas o-canto-mais-limpo, a aridez do deserto?”

O argumento é forte, reconheço. Depois que essas coisas são construídas, a gente esquece o que custaram em sangue, suor e vidas, e fica pensando apenas no resultado estético, que não é de se jogar fora. Mas vejam – isto é um ponto de vista egoísta, típico da nossa cultura hedonista, consumista, ególatra. Que importância tem a morte de 30 ou 50 mil egípcios, milênios atrás? Já morreram mesmo, então, eles que se danem! Importa que temos hoje a chance de olhar aquelas construções monumentais, tecer teorias, tirar fotos, escrever livros... É para nosso deleite que elas existem, e o resto é irrelevante.

Quando eu olho a beleza do Taj Mahal, da Giralda de Sevilha, da Muralha da China, penso também no sofrimento que pôs de pé aquilo tudo. Penso no poema de Brecht que diz: “Quem construiu Tebas das Sete Portas? Os livros trazem os nomes dos reis; mas foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?”

Mil anos depois que os operários viraram pó, é fácil esquecê-los. As grandes obras são experiências-limite da humanidade, em que um excesso de exploração, ambição, riqueza-concentrada, produz (eventualmente, de vez em quando) obras de excessiva beleza. Deveríamos preferir este mundo, ou um mundo sem grandes monumentos, mas onde soubéssemos que alguns milhares de egípcios viveram uma vida longa, milênios atrás? Um mundo de beleza convulsiva e dolorosa, ou um mundo sem sustos, sem sofrimentos?








0825) Rosa Parks (8.11.2005)



Morreu recentemente nos EUA a mulher que desencadeou a briga pelos direitos civis dos negros, Rosa Parks. Em 1955 ela estava sentada num ônibus e recusou-se a dar o lugar a um passageiro branco, como a lei do Alabama obrigava a fazer. Mesmo pressionada, ela não foi sentar na parte traseira, destinada aos negros, e acabou sendo detida e sofrendo uma multa.

A lenda que corre é de que ela era uma mulher humilde que por sua iniciativa pessoal “bateu de frente” com a lei dos brancos. É apenas parte da verdade. Rosa era casada com um ativista negro; ela e o marido faziam parte da NAACP, a National Association for the Advancement of Colored People. No Sul dos EUA já tinham sido registrados vários casos de desobediência à segregação nos ônibus, mas os ativistas achavam que nenhum deles daria um “caso exemplar” para ser levado à Corte. No caso de Rosa, ela era uma mulher de 42 anos, instruída, politizada, e aos olhos do Pastor Martin Luther King era “uma das cidadãs mais exemplares da cidade”.

A recusa de Rosa Parks desencadeou um boicote aos ônibus que durou mais de um ano, e se prolongou por todas as lutas subseqüentes dos negros americanos. É o exemplo clássico de uma atitude individual que desencadeia um fenômeno de vastas proporções. Tem certos momentos na História em que basta um gesto de um único indivíduo para fazer com que milhões de pessoas, num único movimento, se mobilizem. É como quando a gente pega com a mão quente uma garrafa de cerveja super-gelada e ela se petrifica por inteiro numa fração de segundo.

Isto acontece num momento em que estes milhões de pessoas estão emocionalmente saturadas com o estado-de-coisas (no caso, a segregação racial); têm uma avaliação racional dos fatos: sabem por que aquilo acontece, e imaginam alternativas; e têm lideranças esclarecidas. Sem saturação emocional, entendimento e liderança é difícil mobilizar conscientemente uma multidão. (Para mobilizá-las não-conscientemente, basta o cardápio de sempre – tambores, bandeiras, discursos e hinos, que fazem a festa dos políticos, dos militares e das torcidas organizadas do futebol).

Algumas crises sociais fazem essa mobilização de maneira caótica, e o exemplo mais recentes são os quebra-quebras nos subúrbios de Paris, realizados por jovens filhos de migrantes, que se queixam de preconceito, desemprego, violência policial, hostilidade do governo. Basta olhar de longe e a gente percebe que essas pessoas sofrem pressões intoleráveis, e que existe uma compreensão unânime sobre o que está acontecendo. A violência cega explode porque faltam líderes esclarecidos (coisa que os ativistas negros americanos tinham de sobra) capazes de mobilizar essa força e derrubar leis injustas em vez de queimar automóveis e prédios. O episódio Rosa Parks é uma lição de História. A ação política bem encaminhada pode lidar com a violência potencial, e canalizar essa energia modificar leis, hábitos e conceitos.

0824) O Eu dividido (6.11.2005)




Um dos melhores filmes que vi nos últimos anos chama-se Promessas de um novo mundo, de Justine Shapiro, BZ Goldberg e Carlos Bolado. Enfrentando dificuldades diplomáticas e militares, a equipe percorreu Israel e os territórios palestinos, entrevistando crianças de 10 a 13 anos de idade. O interesse dos realizadores é saber quem são essas crianças, o que pensam do mundo onde vivem, do que têm medo, o que esperam do futuro. 

São depoimentos comoventes, como o de dois irmãos judeus que toda manhã, na hora de ir para a escola, ficam escolhendo o ônibus em que devem embarcar: “Lá vem um 127... Não, esta linha não, já explodiram várias vezes”.

No fim do filme, a equipe consegue “contrabandear” os garotos judeus para o território palestino e promove um encontro entre eles, que dura uma tarde inteira, com almoço, etc. 

Eu sou um cara muito besta, e fico comovido com essas coisas: garotos e garotas de dois povos em guerra permanente, descobrindo que não se odeiam. No começo, estão todos mais desconfiados do que cachorro-em-bagageiro-de-bicicleta, mas aos poucos vão quebrando o gelo, se descontraindo. Descobrem que gostam de futebol e que – milagre! – torcem pela Seleção Brasileira.

Há uma cena no filme que não consigo esquecer. A equipe entrevista uma adolescente num espaço que parece ser a área de serviço do apartamento dela. Enquanto fala, ela pega um monte daquelas cadeiras de plástico branco que se usam em bar e que se encaixam umas sobre as outras, e fica tentando desenganchar uma cadeira para se sentar. Vai falando, falando... e puxando, puxando... e nada da cadeira sair. Ela muda de posição, pega de um lado, pega de outro, bate com as cadeiras no chão, e não desengancha. 

E a câmara rodando. E ela falando. Fala dos seus planos para o futuro, que quer casar na igreja, ter filhos... E puxa pra lá, e pra cá... e a cadeira não desengancha. São uns cinco minutos de pura hilaridade, o cinema todo indo às lágrimas. Eu nunca ri tanto na minha vida.

Dizem que qualquer imagem concreta pode servir de símbolo para qualquer idéia abstrata. Eu não vou tão longe, mas diante de casualidades assim não posso deixar de vez uma relação entre a entrevista da garota e a vida de todos aqueles personagens. 

Eles procuram viver normalmente, conversar, agir com naturalidade como se estivessem vivendo uma vida normal. Mas durante esse tempo todo tem algo muito visível que está atrapalhando suas vidas, algo contra o qual eles lutam, lutam, tentam, tentam, mas não conseguem se desvencilhar. 

E o tempo inteiro eles conseguem falar, dar depoimento, como se fossem pessoas normais vivendo uma vida normal – e como se aquele problema irritante, trágico, mortal, não estivesse ali, à vista deles e de todos, impedindo que eles vivam sua vida com a naturalidade com que fingem viver. Uma geração inteira de esquizofrênicos, de mentes divididas, mas é essa divisão, entre a consciência do Terror e a ilusão da Paz, que os mantém vivos.






0823) O Jardineiro Fiel (5.11.2005)



John Le Carré é conhecido como um autor de romances de espionagem, mas uma descrição mais adequada do seu gênero talvez fosse “romance de crime transgeográfico”. Nem todo livro de Le Carré usa espiões, mas a grande maioria deles tem protagonistas que são políticos, diplomatas, jornalistas, militares; profissões que os levam a ter uma vida disseminada por diferentes países ou mesmo diferentes continentes. É uma literatura de mistério e ação que se vale do conhecimento do autor sobre o funcionamento da economia e da política internacional, não apenas no lado que aparece na TV e nas manchetes de jornal, mas nos seus bastidores, nas histórias que não são reveladas, nas “reportagens que não foram escritas”.

O Jardineiro Fiel é o título que se refere de forma irônica a um diplomata britânico mais preocupado com as flores do seu jardim do que com o trabalho de sua esposa, uma jovem ativista cuja luta contra as megacorporações ele acompanha distraído, sem se envolver, sem entender, sem fazer muitas perguntas. Os dois vão morar na África, onde ela entra numa luta contra os grandes laboratórios farmacêuticos que estão fazendo experiências ilegais (e cruelmente insensíveis) com a população local. O assassinato dela (nas primeiras cenas do filme) o joga numa investigação frenética onde ele procura, talvez pela primeira vez, entender a sério quem era aquela mulher com quem se casou.

Em O Paciente Inglês Ralph Fiennes havia interpretado um homem que empreende uma jornada suicida através do deserto para tentar (em vão) salvar a vida da mulher que ama; aqui, a amada morre igualmente num deserto e a jornada é para decifrar o mistério dessa morte. Durante a vida dela, o marido pensa o tempo inteiro estar sendo traído, mas, como nunca tem plena certeza, prefere varrer as dúvidas para baixo do tapete. Como em toda boa história de mistério, a solução, à medida que aparece, nos obriga a reler e reinterpretar, no contexto das novas revelações, fatos que tínhamos lido de forma equivocada.

O Jardineiro Fiel comporia um ótimo programa duplo com o documentário The Corporation (que comentei em 1 de julho). Ambos têm como tema a atividade cegamente predatória das grandes corporações em busca de mais e mais lucros, não recuando diante do suborno, do homicídio e até do genocídio de populações. O documentário canadense faz um raio-X da “selva selvagem” que é o Mercado Internacional do Lucro, e o filme de Fernando Meirelles ilustra sua tese como um caso exemplar onde a indústria farmacêutica européia usa populações africanas como cobaias nos testes de um remédio que precisa entrar no mercado a tempo de lucrar com uma epidemia já prevista.

A cena final é arrepiante e memorável, porque sabemos o que espera o protagonista, vemos que ele não apenas não recua diante do seu destino, como o procura voluntariamente. O diretor evita mostrar o que outros optariam por descrever em cenas de violência explícita.