sábado, 22 de outubro de 2016

4173) O que escapa da tradução (22.10.2016)




Às vezes a gente é tentado a ver no tradutor uma espécie de ourives. De fato, tem muito a ver, aquela concentração quase maníaca para produzir um pequeníssimo mas extraordinário efeito num espaço mais que minúsculo. A arte de ver uma coisa complexa e conseguir reproduzi-la igualzinha. Traduzir poesia é muitas vezes assim.

Não só poesia, claro. Um exemplo bem à mão, que pode ser estudado, é o trabalho conjunto de Guimarães Rosa com seus tradutores Edoardo Bizarri e Curt Meyer-Clason, que traduziram sua obra para o italiano e o alemão, respectivamente. Para achar o equivalente de um topônimo, de um arcaísmo, de uma imagem inusitada, passavam horas, propunham e examinavam variantes, uma delas “colava”.

No texto de Rosa o tradutor avança quase que de palavra em palavra, mas na prosa de registro mais solto pode-se parar de frase em frase. A palavra pode ser a menor unidade de significado, mas a frase é o átomo de hidrogênio da literatura. Tudo se constrói em cima dela.

A jóia que o tal tradutor-ourives está filigranando é a frase.  Para conseguir recriar com sabor de verdade a frase o tradutor muitas vezes tem que enfiar uma palavra intrusa, tem que omitir uma palavra que parecia importante. Desde que a curva, o gráfico da frase continue o mesmo.

Essa imagem me lembrou o aposentado e derrotado Coronel Aureliano Buendía, do romance de Garcia Márquez. Depois que perde a, sei lá, centésima Revolução que tentou realizar no país, ele se recolhe a um pequeno ateliê onde fica esculpindo peixinhos minúsculos de ouro, todos perfeitos e simétricos até a derradeira escama. O ouro de que dispunha dava para dezoito peixinhos idênticos. Quando ele fechava a conta, derretia todos, e recomeçava.

Não existe tradução definitiva, tal como não existe obra definitiva. Se Shakespeare ressuscitasse hoje, a primeira coisa que ele ia pedir era uma borracha, papel e tinta. O tradutor precisa somente ter a lucidez necessária para perceber quando tem diante de si um verso perfeito, porque esses existem sim, e são legião. O que é mesmo bom tem que ficar à altura.

Grandes traduções de poesia já foram feitas por não-poetas, por indivíduos que jamais produziriam um só verso de seu.

Mesmo na prosa, muitas vezes uma tradução meramente literal equivale a escutar uma orquestra sinfônica num mp3 compactado. Perdem-se os graves, os agudos, as superposições, os subtemas longamente planejados pelo autor. Mas mesmo traduções precárias são importantes pelo efeito colateral de trazer (digamos) Boccaccio para o leitor lituano, as Mil e Uma Noites para o leitor holandês, Goethe para o leitor nicaraguense. Tem tanto, no original, que alguma coisa sempre passa.

Claro que seria muito melhor se as traduções fossem sempre boas. Mas neste aspecto concordo com Jorge Luis Borges quando diz que uma boa história resiste a traduções, a paráfrases, a imitações, à má memória de quem a reconta. Histórias cujo efeito reside no enredo são mais resistentes a uma má tradução do que uma história cujo atrativo principal seja o estilo, ou alusões culturais obscuras.

Vai ser preciso uma tradução muito ruim mesmo para tirar o impacto e o mistério de histórias límpidas como “O Colar” de Maupassant, “A Pata do Macaco” de Jacobs ou “Continuidade dos Parques”de Julio Cortázar. Basta recontar, com uma voz plausível, sem precisar de enfeites, o seu mecanismo fatal de decisões, consequências e surpresas. Passando isto pro leitor, é o que importa. Estilo, no caso, é uma mera roupa. Pode mudar um pouco, desde que o plot se mantenha.

A tradução as vezes é ruim, mas para certos livros basta uma fagulha saltar a fronteira linguística para renovar o incêndio inteiro.