domingo, 27 de maio de 2018

4351) Dez álbuns: 6 - "Violas de Ouro" (27.5.2018)




Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

Para ouvir o disco inteiro:

Este elepê não é apenas um dos discos que eu mais escutei: é o primeiro disco profissional em cuja criação e produção eu estive envolvido, com 26 anos de idade. Só não assisti à gravação, que foi feita no Recife. Mas trabalhei com Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio durante o período de criação das faixas de Violas de Ouro (1976), em Campina Grande, dando palpites no repertório, sugerindo rimas ou versos em duas ou três faixas escritas por último.

Aqui, cabe uma explicação. É um disco de repentistas. Mas os discos dos repentistas raramente são gravados com versos de improviso. Todo mundo prefere escrever antes e decorar, o que transforma o disco num álbum de canções comuns. O ambiente frio e isolado de um estúdio não é favorável ao improviso; por outro lado, gravar ao vivo num ambiente real faria cair a qualidade sonora da gravação, coisa que nenhum produtor fonográfico admite.

Em disco, é muito melhor um verso ruim “bem gravado” do que um verso bom “mal gravado”. Esta é a lógica do mercado fonográfico.

Os discos de cantadores acabam valendo como um testemunho do seu talento poético em geral, não do seu talento como improvisadores.

Eu morava num pequeno apartamento ao lado da Rodoviária Velha, e encontrava com Ivanildo quase todos os dias. Geraldo morava no Ceará. As faixas foram combinadas pelos dois poetas via carta e telefone. Eles me pediram para fazer uma assessoria e para escrever o texto da contracapa.

Em algum lugar das minhas pastas, devo ter ainda os manuscritos originais de faixas que até hoje sei de cor, como o martelo magnífico que abre o Lado 2, “O Sertão em Carne e Alma”:

Ivanildo:
Uma tarde de inverno no sertão
é um grande espetác’lo pra quem passa
serra envolta nos tufos de fumaça
água forte rolando pelo chão;
o estrondo da máq’na do trovão
entre as nuvens do céu arroxeado;
o raio caindo assombra o gado
atolado por entre as lamas pretas,
rosna o vento fazendo piruetas
nas espigas de milho do roçado.

Geraldo:
No sertão quando o chão está molhado
corre água nas veias de um regato
pula a onça da furna, corre o gato,
um cavalo galopa estropiado;
um garrote atravessa o rio a nado
uma cobra se acoa com cancão;
a cantiga saudosa do carão
faz lembrar o lugar que eu fui nascido,
entre as telas do filme colorido
que Deus fez pro cinema do sertão.

Geraldo Amâncio chegou a Campina poucos dias antes da gravação, e foi lá no meu apartamento que ele preparou seus versos para as últimas faixas a ficarem prontas. Como Ivanildo já tinha escrito as suas, ele teria que escrever seus próprios versos intercalados ao do parceiro, obrigatoriamente seguindo as rimas já existentes.

É uma coisa engraçada o repente. Você vê um sujeito que é capaz de cantar em vinte segundos uma estrofe formidável, que acabou de inventar. E sentado na mesa, de caneta Bic em punho, o mesmo poeta leva cinco ou dez minutos (o mesmo tempo que eu levo) para redigir uma estrofe do mesmo tamanho. Por que?

– Em grande parte é a viola, – comentava Geraldo rabiscando um pouco, tomando um gole de suco, rabiscando um pouco mais. – A vibração musical da viola, de encontro ao peito, nos deixa também vibrando, é uma coisa que se reflete no corpo e na alma. E a platéia, também. Cantar de viola numa sala vazia também não é a mesma coisa. Tem que ter o povo olhando, esperando.


Violas de Ouro se abre com uma bela faixa em sextilhas filosóficas, “Deus, o Homem e a Natureza”:

Geraldo:
Deus a ninguém deu a chave
desse edifício perfeito:
mar gigante, terra enorme,
céu infindo, bosque estreito,
fez tudo e não veio ainda
dizer por que tinha feito.

Ivanildo:
Do rio, estuário e leito
da fruta, o tempo e a vez;
ano longo, dia curto,
semana, estação e mês;
ele fez tudo, mas pode
desfazer tudo que fez.

Segue-se uma série de glosas homenageando “O mensageiro da fé / o nosso Frei Damião”, depois um galope beira-mar percorrendo os Estados brasileiros, e depois “A Vida de Cada Um”, um quadrão mineiro, cujo assunto eu havia sugerido: “Já que é obrigatório rimar em ...EIRO toda vez, por causa do refrão, vocês podiam fazer uns versos comparando as profissões que terminam assim: pedreiro, toureiro, engenheiro, carpinteiro...”.

Ivanildo escreveu primeiro sua parte, e depois Geraldo encaixou seus versos nos versos dele.

O Lado 2 tem o martelo agalopado que já citei, e em seguida vem “Deu Tudo Ao Contrário”, um Mourão Voltado cheio de episódios cômicos, com um personagem meio trapalhão. O Mourão Voltado, para quem não conhece, é um dos gêneros dialogados da cantoria, em que cada poeta diz uma linha, alternadamente, o que exige (quando é feito de improviso) rapidez e pontaria.

Vem em seguida uma faixa sobre história do Brasil, “Revoltas Brasileiras”. Era uma faixa meio destinada ao público estudantil. Em plena ditadura militar, sempre valia a pena lembrar episódios em que alguém se revoltava contra uma autoridade qualquer.

No texto da contracapa eu digo, erradamente, que o estilo usado, “Pai Tomás, Preto Velho e Pai Vicente”, foi criado pela dupla. Na verdade, me parece hoje que o criador desse gênero foi José Alves Sobrinho, e o que a dupla fez (se não me engano de novo) foi registrá-lo em disco pela primeira vez.

“Revoltas Brasileiras” foi uma das últimas faixas a ficarem prontas, na véspera da gravação, e me recordo de ter ajudado nas estrofes relativas à Revolta de Quebra-Quilos e à Revolução Praieira (eu tinha acabado de ver o filme O Casal, de Daniel Filho, onde o personagem de José Wilker é fã de Pedro Ivo.)

O disco se fecha com um “gabinete” com o tema “Giro Pelo Mundo” enumerando países e culturas, seguindo o modelo do galope beira-mar “Turismo Pelo Brasil”. Enumeração de nomes de lugares e de paisagens é uma tradição na poesia popular. Nas culturas orais, versos rimados e metrificados sempre serviram de truque mnemônico para decorar mapas inteiros, atlas inteiros, quando não se podia desenhar em papel.

Um livro brilhante sobre isto é O Rastro dos Cantos (“Songlines”) de Bruce Chatwin, onde o viajante inglês descobre os “mapas cantados” dos aborígenes australianos. Veja aqui:


O Gabinete é um dos muitos gêneros antigos da cantoria que na década de 1970 foram resgatados e revividos pela geração de Ivanildo Vila Nova e seus companheiros. Lembro de Ivanildo comentando, naquela época:

– Cantador tá ficando preguiçoso. Se deixar, eles passam a noite toda cantando sextilha, que dá menos trabalho. Só cantam outra coisa se o povo pedir, e o povo não pede porque não conhece. A gente tem quarenta, cinquenta gêneros maravilhosos que os cantadores usavam e faziam coisas impressionantes. Por que não trazer isso de volta?

Quando Ivanildo e Geraldo gravaram Violas de Ouro, estávamos em plena efervescência dos Congressos de Violeiros de Campina Grande, uma época que descrevi em meu romance Bandeira Sobrinho – Uma Vidas e Alguns Versos (Ed. Imeph, Fortaleza, 2017). 



Havia poucos LPs de cantadores: lembro de um de José Gonçalves (não lembro com quem), um de Moacir Laurentino e Sebastião da Silva. Se não me engano, um LP famoso de Otacílio Batista e Diniz Vitorino é contemporâneo de Violas de Ouro.

É o primeiro disco na carreira dos poetas, que depois disso lançaram uma grande quantidade de elepês, livros, folhetos, CDs. Para os admiradores da dupla, mostra ambos em plena decolagem para se tornarem dois dos maiores nomes da Cantoria em todos os tempos. Para mim, lembra uma época de muito verso e muita boemia, e lembra o carinho e a paciência de dois poetas de verdade com as perguntas constantes de um cabeludo que gostava de verso mais do que qualquer outra coisa.