domingo, 27 de dezembro de 2015

4007) Livros do ano 1 (26.12.2015)



Esta é a época em que os críticos fazem listas dos melhores livros do ano, mas os críticos parecem ler somente o que foi lançado agora. Minhas leituras são aleatórias. Tenho muito mais interesse pela literatura de cem anos atrás do que pela atual. Não que uma seja melhor do que a outra. É mera veneta, cacoete mental; é como achar que qualquer rua de Istambul ou Toronto deve ser mais interessante do que a rua aqui do lado. Dito isto, vamos em frente.

Terminei este ano de ler a coletânea Ghost Stories of Henry James. James é um desses casos meio raros de autores de estilo refinado que escreviam caudalosamente. Como produziu esse sujeito! Seus contos de fantasmas são quase todos psicológicos, de clima, ambientação, ilustrações perfeitas para a teoria todoroviana da oscilação entre explicação real e sobrenatural. Vão do gótico puro de “The Romance of Certain Old Clothes” (1868) até o desdobramento físico em “The private life” (1892). Todos são muito bons. Há uma certa falta de surpresa nos desfechos, mas a literatura de James reside mais nos detalhes do que na estrutura, que é clássica, previsível.

Li este ano O Mago (2008) de Fernando Morais, biografia de Paulo Coelho, desmerecida por alguns por ter sido uma biografia “chapa branca” (autorizada). Biografias autorizadas podem ser boas, sim, menos para quem só pensa em escândalo. Morais traça com precisão o histórico do Mago, e mostra, curiosamente, que desde a adolescência ele sonhava em ser o escritor mais bem sucedido do mundo. Eu achava que ele era um roqueiro que virou best-seller meio por acaso. Não era. Foi um projeto profissional que, com desvios inevitáveis pelo temperamento malucão do personagem, e também da época, sofreu mil contratempos, mas se realizou.

Também este ano terminei finalmente de ler The Crying of Lot 49 (1966), o mais curto dos romances de Thomas Pynchon, mas espantosamente concentrado. A prosa de Pynchon é pesadíssima de alusões culturais, mas em seus momentos mais leves é uma delícia de barroquismo pop. Este livro é um clássico das teorias da conspiração romanescas (ou seja, as que não se propõem como verdadeiras), sobre uma organização secreta de correios infiltrada nos EUA.

The third policeman (1967), de Flann O’Brien, é um dos melhores romances absurdistas que já li (há tradução brasileira). Uma sucessão de episódios fantásticos que parecem dar acesso a universos paralelos, ao Além-túmulo ou a delírios do personagem. Há momentos que lembram Alice de Lewis Carroll, outros que lembram Ubik de Philip K. Dick, outros que dão a impressão de um Jorge Luís Borges tentando escrever um romance policial metafísico. (Continua)




4006) Natal 2015 (25.12.2015)




(ilustração: Remedios Varo)

... e a gente arranca ao Tempo mais um ano
como quem despe as roupas da Verdade
e a deixa reluzindo, à claridade
que ela mesma produz, ao ver-se exposta.
A Verdade é mulher, e mulher gosta
de revelar-se aos poucos, mas inteira,
e a vida só é bela e verdadeira
quando exibe seu corpo em sombra e luz,
claro-escuro no ar, que nos seduz
e nos faz mergulhar no seu mistério.

Mas os tempos de hoje... Fala sério!
Será tudo um teatro dadaísta?
E o que terá fumado o roteirista
que escreveu o Brasil de atualmente?
Basta olhar para a comissão de frente
que encabeça a terrível procissão
nas praças e avenidas da nação,
pesadelo hi-tech e surreal.
E quem sabe onde está oculto o Mal
no coração humano? O Sombra sabe.

É Moby Dick o monstro, ou é Ahab?
A Natureza, ou o engenho humano?
Quem tem poder, ao sol de um fim de ano
de erguer a mão e despejar a chuva?
Não existe. O que existe é a saúva
de terno e de gravata, anel no dedo,
que todo dia acorda muito cedo
e rói sem pena o que possível for.
Perdoai (e evitai) o roedor:
está sendo roído, ele também.

Eu só sei que o Natal um dia vem.
Impressionante como ele não falta.
E todo ano a humanidade incauta
ouve a sineta que a faz salivar.
A igreja do vender e do comprar
reza missa após missa o mês inteiro.
Quem tem mais sorte vê raiar janeiro
e recomeça o ciclo, o carrossel,
outro tijolo ao muro de Babel,
outra volta cruel do parafuso.

E a cada livro que eu em vão produzo
feito um mudo pregando no deserto
em linguagem de Libras, fico certo
de que mais vale a dor de estar fazendo
do que a não-dor do não fazer, e entendo
que a resposta virá. Mas não pra mim.
Se assim for, maravilha; e sendo assim
“taca-le pau”, poeta, faz sextilhas.
Imperfeitas ou não, são tuas filhas,
serão um dia o que restou de ti.

Quando meu pai erguia um Bacardi
inebriava o mundo num sorriso,
mandava um chiste, um verso, um improviso...
e esse momento reverbera ainda.
Se o Natal é um dia em que se brinda
e transformam-se em vinho águas passadas,
então que venham renas, rabanadas,
pacumês, espumantes, Concha y Toro!
Gasta logo, se o Tempo é teu tesouro,
a moeda de ouro deste dia.

Que o mundo fosse outro, eu bem queria,
mas aceito este fato consumado,
de vê-lo assim, desnudo, desvendado
pelo excesso de ser que é sua essência.
Se ele um dia notar a minha ausência,
que faça bom proveito destes versos!
Estarão os meus átomos dispersos
sem notar que outra vez bimbalham sinos
e que nascem milhões de outros meninos
neste ciclo-espiral do circo humano...