quinta-feira, 12 de maio de 2016

4112) Ilha Nula, o lugar que não existe (12.5.2016)




Escrevi dias atrás aqui no blog (“O Kafka da era digital”, 12 de abril, https://t.co/caAUYpuVoH) sobre certos resultados meio surrealistas do mapeamento digital via satélite. Naquele caso, era o modo como os rastreamentos de endereços IP de computadores, quando não têm sua localização geográfica corretamente identificada, são todos “jogados” para o ponto central dos EUA, uma região pouco povoada do Kansas.

Fiquei sabendo agora da existência de um ponto parecido como esse, que os profissionais do ramo chamam “A Ilha Nula” (“Null Island”).  É um lugar virtual, ou seja, não tem existência material mas é útil para a organização do espaço em nossos mapeamentos; algo como a Linha do Equador, também fictícia.

(Digressão: Conta-se que nas Copas do Mundo disputadas na Europa em 1934 e 1938, os jogadores da Seleção Brasileira iam de navio, e ao se aproximarem da Linha do Equador algum espertinho pregava um fio de cabelo horizontalmente nas lentes de um binóculo e ficava mostrando a Linha, para o deslumbramento dos marinheiros-de-primeira-viagem.)

Null Island fica no ponto cartográfico chamado de 0°N 0°E, ou seja, zero grau de latitude e zero grau de longitude, o local onde a Linha do Equador cruza o Primeiro Meridiano. É o “zero cartesiano” do mapa-múndi, o centro de tudo. Este ponto fica no Oceano Atlântico, no Golfo da Guiné. Como o mapeamento cartográfico serve para orientar inclusive o mapeamento satélite-digital do GPS, é um ponto importante. Precisa ser registrado. E como ali nada existe, é mar alto, colocou-se no local uma bóia meteorológica, ancorada ao fundo.

Esse tipo de referência é usado em sistemas mapeadores como Google Maps, Mapquest ou outros. É o World Geodetic System 1984 (WGS84), usado pelo Departamento de Defesa dos EUA e pelo GPS. Sempre que um endereço é digitado erradamente ou sofre algum tipo de interferência que o torna inválido, o resultado apresentado aparece assim, “0°N 0°E”, ao invés de um endereço completo tipo: 7o 13’ 50” S 35o 52’ 52” O. (Esta é a localização de Campina Grande, por esse sistema.)  E os geógrafos (ou sei lá quem) decidiram projetar nesse lugar zero-zero essa ilha inexistente. A Wikipedia informa que eles atribuem à Ilha Nula uma área simbólica de 1 metro quadrado, com uma linha costeira de 4 metros lineares.

Tal como ocorria no exemplo do Kansas, a Ilha Nula é considerada “um dos lugares mais visitados da terra”, virtualmente, é claro, pelas centenas de milhões de resultados “0°N 0°E” que milhões de computadores estão obtendo todos os dias.

O artigo que estou consultando (aqui: http://tinyurl.com/z2ptrl9) fala que essa localização se refere apenas aos cálculos geográficos segundo o padrão do WGS84, mas existem muitos outros padrões, e o “ponto zero” de cada um fica num local diferente do globo. Olha só que idéia ótima para cercar de verossimilhança científica um lugar imaginário, daqueles dignos de figurar no The Dictionary of Imaginary Places (1980) de Alberto Manguel & Gianni Guadalupi.

(Digressão: este dicionário, aliás, registra apenas os lugares imaginários da literatura, não os da ciência, de modo que Null Island não figura nele. Existe apenas uma Land of Null, também conhecida como Wisdom Kingdom, proposta no livro infantil The Phantom Tollbooth (1962) de Norton Juster.)

E tudo isto daria um excelente arrazoado técnico para  situar lugares imaginários como o Monte Analogue imaginado por René Daumal, num dos “romances inacabados” mais inquietantes da literatura. Mas isso já é outra história.