quinta-feira, 30 de novembro de 2023

5007) A Queda da Casa de Usher (30.11.2023)




Edgar Allan Poe deve estar se remexendo dentro do túmulo, a julgar pelas recentes adaptações de sua obra ao cinema e à TV. Não que sejam todas ruins, mas porque este é o karma ancestral de Edgar, autor de “O Enterramento Prematuro”. 
 
A adaptação mais recente, por sinal, é bastante boa, dirigida pelo especialista em horror Mike Flanagan (Doctor Sleep, The Midnight Club etc.), e que adota uma técnica que parece a dos enredos de escola de samba – apertar no espaço disponível o máximo de informações relativas ao tema. 
 
A Queda da Casa de Usher (Netflix, 8 episódios) é um melodrama Grand Guignol que não economiza sangue, animais monstruosos, mutilações, traições cruéis, vinganças diabólicas, inimigos sobrenaturais. Dito assim parece uma coisa inassistível, mas a verdade é que o excesso de estilização da narrativa acaba diluindo o “gore” (o horror especificamente físico) e transformando tudo num espetáculo tão artificial e pouco realista quanto uma ópera. 
 
Flanagan faz uma colcha-de-retalhos da obra de Poe, lançando mão de várias histórias, entrelaçando-as umas às outras, e distribuindo nomes de personagens com a prodigalidade de um rei distribuindo títulos de nobreza a quem o apóia. 
 
O enredo: o magnata Roderick Usher e sua irmã Madeline são chefes do conglomerado farmacêutico “Fortunato”, que destrói a saúde da população com remédios de efeitos colaterais mortíferos. Madeline é solteira, mas Roderick tem dois filhos legítimos e quatro ilegítimos, todos eles herdeiros de sua fortuna. E todos, em certa medida, odiando-se uns aos outros. A “Fortunato” está sendo submetida a um processo judicial, conduzido pelo investigador Auguste Dupin. Na juventude ele e Roderick eram amigos, depois romperam relações, mas resta algum respeito mútuo entre os dois. 




(Carl Lumbly como "Dupin", Bruce Greenwood como "Usher")


A série toda é um longo flashback em que Roderick chama Dupin a sua casa para lhe explicar como e por quê seus seis filhos foram assassinados, um após o outro, no espaço de poucos dias. A conversa entre os dois é a moldura mais ampla que envolve os oito episódios. 
 
Bilionários e “serial killers” são dois temas constantes na dramaturgia do século, ligados por um vínculo essencial, que talvez seja a alucinação do poder absoluto. Os crimes desta série seguem o modelo do conto referido em cada episódio: “A Máscara da Morte Rubra”, “Os Crimes da Rua Morgue”, “O Gato Preto”... Há um certo exagero “gore”, mas é bom ter em mente que o mesmo nível de exagero já está nos contos de Poe, escritor fascinado por mortes bizarras, mecanicamente produzidas, com excesso de mutilação e horror. 
 
Isto, para mim, coloca a série dentro do subgênero dos “crimes seriais” em que existe um padrão para os assassinatos. Exemplos típicos são O Abominável Dr. Phibes (Robert Fuest, 1971), com Vincent Price, onde os crimes seguem o padrão das pragas do Egito; e As Sete Máscaras da Morte (Douglas Hickox, 1973), também com Price, onde os crimes fazem citação a peças de Shakespeare. 



(Carla Gugino como "Verna")

Mike Flanagan toma muitas liberdades com os textos originais de Poe, mas isto nem é defeito nem é novidade. São raras a adaptações fiéis dos contos de Poe. As mais conhecidas e mais cult são as que Roger Corman produziu e dirigiu na década de 1960, e têm pouquíssimo a ver com o original. Poe está ali como uma inspiração, uma aura, um diapasão para afinar o inconsciente coletivo de roteiristas, diretores e elenco. 
 
No presente caso, Flanagan conta com uma direção de arte excelente, criando numerosos ambientes, muito diversos entre si, e que reproduzem o mundo mental de cada personagem. É uma família de bilionários, então é lícito supor que cada um dos filhos Usher criou seu ambiente à imagem e semelhança de si mesmo. O elenco também é ótimo, dentro do estilo levemente histérico que filmes desse tipo precisam extrair dos atores. Os diálogos são abundantes, rápidos, as pessoas falam o tempo todo, parecem metralhadoras, e felizmente o streaming nos dá a chance de voltar atrás e ouvir/ler tudo de novo, para poder entender. Eu não gosto de ver filmes deste tipo na sala de cinema. 
 
O ponto central do elenco é Roderick Usher, interpretado na velhice por Bruce Greenwood, ótimo ator que já fez o papel de John Kennedy em Dez Dias Que Abalaram o Mundo. Ele tem uma dicção clássica e elegante, e a força impositiva do patriarca. Uma presença curiosa no elenco é a de Mark Hammill, o antigo Luke Skywalker das aventuras espaciais, fazendo aqui o papel de Arthur Gordon Pym, o advogado sinistro e implacável da família Usher. 



(Mark Hammill como "Arthur Gordon Pym")


Narrativas referenciais como esta, maciçamente baseadas numa obra pré-existente, deparam-se às vezes com um problema de verossimilhança. Lembro-me da novela Mandala (1987-88) da Rede Globo, em que o mito de Édipo era trazido para os tempos modernos com um elenco que incluía Felipe Camargo (Édipo), Vera Fischer (Jocasta) e Perry Salles (Laio). Na época, a seção de cartas de leitores dos jornais vivia cheia de protesto neste tom: 
 
“Será que esse pessoal não se toca? O cara se chama Édipo, conhece uma mulher chamada Jocasta... Eles nunca leram sobre as lendas gregas? Eles não sabem o perigo que ambos estão correndo?” 
 
A questão levantada pelos leitores tem partes iguais de razão e de ingenuidade. De fato – vivemos num mundo em que até o conceito de “Complexo de Édipo” foi criado a partir da lenda, e o cara tem esse nome e não sabe?! 
 
Por outro lado, mesmo sendo uma história modernizada, que se passa no Brasil contemporâneo, é preciso – para que a história faça sentido, e a tragédia implacável se cumpra – que a lenda seja ignorada. Que tudo aquilo esteja acontecendo “pela primeira vez”. Portanto, Mandala da Globo existia num universo paralelo em que a lenda grega de Édipo (e a peça de Sófocles) não existem. 
 
É um pouco como a situação do filme Yesterday (2019, Danny Boyle), em que um rapaz vai parar num universo onde os Beatles não existiram... e ele fica milionário tocando as músicas de Lennon & McCartney e dizendo que são suas. 
 
Para que a história da Queda da Casa de Usher faça sentido, é preciso que tudo aquilo aconteça num universo onde a obra de Edgar Allan Poe (que impregna todas as situações, todos os personagens) não exista – para que seus personagens não saibam avaliar o perigo de um gato preto, de um cálice de Amontillado, e assim por diante. 

Que eu me lembre, o nome de Edgar Poe não é citado por nenhum dos personagens, embora seus versos sejam recitados o tempo inteiro. É um universo paralelo onde aqueles personagens não vieram ao mundo no século 19, mas no 21, com os mesmos nomes, mais ou menos os mesmos traços biográficos, personalidades semelhantes, etc.  Todos cumprindo ali o karma de serem personagens de um dos criadores do gênero horror – mas eles não o sabem, pensam que são pessoas como as outras, e por isto caminham cegamente para a destruição que nós, no universo do lado de cá, sabemos ser inevitável.  













segunda-feira, 27 de novembro de 2023

5006) Minhas canções: "Tuareg e Nagô" (27.11.2023)



Na literatura de ficção científica e de fantasia existe um conceito chamado de worldbuilding, ou “criação de um mundo”. O autor imagina um mundo diferente do nosso, e ali ambienta suas histórias. Esse “mundo” pode ser outro planeta, no caso da FC, ou pode ser um mundo imaginário como o da série de “Narnia” (de C. S. Lewis) ou dos continentes descritos na série “Game of Thrones” de George R. R. Martin.

Um ponto crucial desses “mundos construídos” é que sejam coerentes, sejam surpreendentes, e sejam plausíveis. O leitor quer surpresas, que descobrir mistérios e novidades, quer se deparar com rasgos de imaginação que aumentem o prazer da leitura. Por outro lado, ele geralmente preza uma certa lógica no que está sendo mostrado; aquilo não deve ser gratuito ou desordenado. Se o autor mostra uma história de navios piratas e a certa altura introduz uma bomba atômica, a história fica parecendo uma bagunça de anacronismos. O que não impede um bom escritor de muitas vezes tornar verossímil alguma incongruência desse tipo.

“Tuareg e Nagô” é uma canção gravada por Lenine no CD Olho de Peixe (1993), seu disco de estréia solo, produzido com Marcos Suzano e Denilson Campos. Essa faixa nasceu da confluência de várias idéias.

A primeira delas remonta ao disco Baque Solto (1983), de Lenine e Lula Queiroga. Esse disco é hoje o que se chama de “um clássico cult”. Eu tinha chegado ao Rio há cerca de um ano, e a turma que encontrei aqui era um grupo de parceiros de outras aventuras musicais no Nordeste: Lenine, Lula Queiroga, Tadeu Mathias, Mestre Fuba, Ivan Santos, Alex Madureira, Zeh Rocha... Todos morando no Rio, cantando no “Bar do Violeiro”, tentando gravar.

Quando o Baque Solto foi gravado, tinha composições e participação instrumental dessa turma toda – menos eu, que era um dos mais recentes. Sugeriram então que eu fizesse um texto poético falando da força da música nordestina, etc. e tal. E no dia em que fomos fazer a foto da “Gente de Baque Solto”, registrada no estúdio por Hélio Viana, levei o texto “Mapa do Tesouro”, que saiu no encarte do LP e é substancialmente a letra da futura “Tuareg e Nagô”:


É a festa dos negros coroados
no batuque que abala o firmamento...

Passou-se. Os meses e os anos fiaram seu fio de areia. Comecei a compor junto com Lenine, e uma das primeiras coisas que nos aproximou foi o gosto pela ficção científica, fantasia, fenômenos bizarros (de Charles Fort até Operação Cavalo de Tróia). E um dos nossos passatempos era imaginar, em sessões de devaneio e de “world building”, cenários para narrativas fantásticas.

Um desses cenários foi o que fiquei chamando de “A Ilha”, partindo de uma premissa simples. Todo mundo imagina a Atlântida como uma ilha futurista no meio do Oceano Atlântico – uma espécie de “Metrópolis” de Fritz Lang, mas com túnicas gregas e templos de mármore. Nossa idéia partiu da premissa contrária: e se essa ilha no meio do mar fosse na verdade uma ilha tropical, caribenha, ensolarada, fértil, super-populosa, tecnologicamente um tanto precária mas com uma vida cultural intensa?

Essa ilha seria uma confluência de todas as civilizações navegantes que cruzaram o Atlântico, cada uma deixando ali suas marcas. E assim surgiu o verso que depois tornou-se o refrão da música:


Quando o grego cruzou Gibraltar

onde o negro também navegou,

beduíno saiu de Dacar

e o viking no mar se atirou...

Uma ilha no meio do mar

era a rota do navegador:

fortaleza, taberna e pomar,

num país tuareg e nagô...

Estavam presentes na mistura uma série de povos que, teoricamente, teriam se encontrado e miscigenado nessa Ilha imaginária no meio do Atlântico. A Ilha servia de ponto de parada, descanso, reabastecimento, trocas comerciais... Algo bastante plausível, em termos de ficção. E de lá os navegadores seguiriam na direção Sul, cruzando a linha do Equador e chegando finalmente à América do Sul e o Brasil.

É o destino dos navegadores que partiam rumo ao oeste, à região onde o sol vai se pôr – “to sail beyond the sunset”, no verso famoso de Lord Tennyson.


E coube a Lenine pegar os versos antigos do “Mapa do Tesouro”, organizar tudo em estrofes, e mudar várias coisas para dar coerência ao “mundo construído”. Ali temos canaviais, estradas de ferro, plantações, frevo, religiões africanas... É de certo modo a Zona da Mata nordestina, mas, colocada nesse contexto imaginário, acho que ela ganha outras cores.

Cores caribenhas, na verdade, porque a Ilha, a nossa “atlântida”, ficava a meio caminho entre o oeste da África e o Golfo do México. Uma latitude e longitude que a deixavam praticamente ao lado do Mar do Caribe – ou seja, uma Ilha que parecia pouco com a Atlântida dos livros, e parecia muito com Cuba, Jamaica, Porto Rico...

Lembrei de uma frase de Gabriel Garcia Márquez numa entrevista, quando ele disse que o Recife era a cidade mais caribenha que ele conheceu fora do Mar do Caribe. Na época, fizemos os versos iniciais de uma canção glosando esse mote, explorando a assonância entre Caribe e Capibaribe:


Lá, onde o mar bebe o Capibaribe...

Coroado leão, caribenha nação

longe do Caribe.

 

“Coroado leão” é uma referência futebolística que nos era inevitável, mas esse fragmento, que tinha ficado como um começo apenas, encontrou seu complemento com a canção da Ilha.

Lenine pensava em termos de canções, eu pensava em termos de histórias. Cheguei a rabiscar resumos de contos que eu poderia ambientar nessa Ilha, contos focados apenas nos personagens e deixando essa questão histórico-geográfica como um pano-de-fundo remoto, mero ambiente, sem obrigação de explicar muita coisa.

Não avancei nessa direção porque nessa mesma época eu estava empenhado noutro projeto de “worldbuilding”: a criação da cidade imaginária de Campinoigandres, uma cidade árabe-ibérica no Portugal do século 14, onde ambientei vários contos e o meu romance A Máquina Voadora  (1994). Mas aí já é outra história.

“Tuareg e Nagô” foi lançada no Olho de Peixe em 1993 e teve várias regravações; minha preferida entre elas é a de Mônica Salmaso, em Trampolim:


https://www.youtube.com/watch?v=kirM7tkAvD4&ab_channel=M%C3%B4nicaSalmaso-Topic

 

Tuareg e Nagô

(Lenine/BT)


É a festa dos negros coroados

no batuque que abala o firmamento,

é a sombra dos séculos guardados,

é o rosto do girassol dos ventos...

É a chuva, o roncar de cachoeiras

na floresta onde o tempo toma impulso,

é a força que doma a terra inteira

as bandeiras de fogo do crepúsculo...

 

Quando o grego cruzou Gibraltar

onde o negro também navegou

beduíno saiu de Dacar

e o Viking no mar se atirou...

Uma ilha no meio do mar

era a rota do navegador

fortaleza, taberna e pomar

num país Tuareg e Nagô.

 

É o brilho dos trilhos que suportam

o gemido de mil canaviais,

estandarte em veludo e pedrarias

batuqueiro, coração dos carnavais...

É o frevo a jogar pernas e braços

no alarido de um povo a se inventar,

é o conjuro de ritos e mistérios,

é um vulto ancestral de além-mar.

 

Quando o grego cruzou Gibraltar

onde o negro também navegou

beduíno saiu de Dacar

e o Viking no mar se atirou.

Era o porto pra quem procurava

o país onde o sol vai se pôr

e o seu povo no céu batizava

as estrelas ao sul do Equador.






sexta-feira, 24 de novembro de 2023

5005) O cinema e a ampulheta (24.11.2023)




Todo cinéfilo tem experiências traumatizantes. Um dia, quando eu for capaz de vencer o constrangimento, contarei de como, aos sete ou oito anos, fui ver um filme no Cine Capitólio, acompanhado por minha mãe. Estava com os pés cheios de calos sangrentos, provavelmente porque tinha acabado de ganhar um novo par de sapatos. (Eu geralmente usava sapatos velhos do meu pai, com um complemento de algodão na ponta pelo lado de dentro, para acomodar meus pés imberbes.) 
 
Os calos me incomodavam demais e começado o filme descalcei espertamente os sapatos, e devo ter chegado a cruzar a perna, ou pelo menos a botei numa posição tal que ela ficou dormente. Chegado o fim do filme, mexi a perna, e a volta da circulação, combinada com o enfiamento regulamentar do sapato, provocou uma dor tão intensa nos calos que Dona Cleuza foi forçada a me levar para fora da sala nos braços, como uma furibunda Pietà sertaneja, enquanto eu me lamentava em tão altas vozes que os circunstantes perguntavam, compadecidos: “Mas o que aconteceu, ele quebrou a perna?...” e ela retrucava, esbaforida: “Não!... É só safadeza mesmo!...” 

 
Nem era essa a história que eu ia contar! Ela se intrometeu por conta própria. Eu ia falar de um trauma de cinéfilo, e não de minha fase Young Sheldon. O fato é que morávamos na Rua Miguel Couto, a dois quarteirões e meio do Capitólio, e a partir de certa idade fui autorizado a ir sozinho ao cinema, mas sempre na “primeira sessão”.  
 
Havia duas sessões, às 19 e às 21 horas. A “segunda sessão”, que terminava por volta as 23:00, pertencia somente ao mundo dos adultos. Ninguém me autorizava a ver filmes na segunda sessão, e cresci colocando essa proibição na mesma categoria mítica dos filmes “proibidos para menores de 18 anos”. Era uma terra incognita onde tudo podia acontecer, e eu deveria evitá-la como o Diabo à Cruz ou vice-versa. 
 
Uma vez, por um atraso cujo motivo não me restou, cheguei bem atrasado para a primeira sessão. Comprei o ingresso, entrei correndo, achei uma cadeira (eram assentos de madeira, não eram poltronas) e joguei-me nela. O filme já tinha começado há bastante tempo, uns trinta ou quarenta minutos. 
 
Gerou-se então o drama, na minha apavorada consciência. Como eu tinha chegado no meio da primeira sessão, quando ela terminasse eu teria de ir embora, tendo perdido o começo do filme. “Jamais!”, bradei silenciosamente. O jeito era ficar... e ver a proibidíssima segunda sessão, e ao chegar tarde em casa tentar sossegar a crise nervosa da família, isto se não encontrasse a casa com as luzes todas acesas, e cheia de bombeiros e investigadores da Polícia Civil. 
 
Enquanto decidia, eu olhava as cenas na tela durante um minuto, e depois tapava os olhos, “guardando-me” para rever o filme na sessão seguinte. Vi pedaços desconexos da história, que ao que parece girava em torno de um detetive de paletó e gravata, e uma mulher que ele conhece na rua e insiste que ela se vista com uma roupa específica. No fim, a mulher se joga do alto de uma torre! 
 
Finda a primeira sessão, ocorreu-me uma das minhas soluções salomônicas: para não chegar tarde demais em casa, eu não assistiria a segunda sessão inteira – ficaria somente até chegar à cena em que eu tinha começado a ver na sessão anterior. 
 
Luzes se acenderam, multidão levantou-se e saiu, e eu fiquei sentado, tranquilão, porque corria a década de 1950 e naquele século abençoado a gente podia, com um ingresso apenas, ver o filme quantas vezes quisesse. Ninguém evacuava a sala entre uma sessão e outra. 
 
Começou a segunda sessão, veio o Canal 100, alguns trailers esquecíveis, e o filme recomeçou. Eu estava numa atitude mental de “Episódio 2”. Lá vem meu detetive, coitado, traumatizado pela morte da namorada. E de repente ela ressurge, a mesma, aliás lindíssima, estimulando-me certas respostas biológicas. Mas então ela não morreu!  E eu mesmo me recriminava: “Imbecil, isso é o que tinha acontecido antes do que já aconteceu!”. 
 
Chegando à primeira cena que reconheci sem hesitação, considerei a missão cumprida, e debandei ofegante para casa, onde minha chegada às dez e meia da noite mal foi percebida, entre os bocejos e os noticiários radiofônicos de sempre. Problema foi depois, na cama, tentar coordenar aqueles fragmentos de história e aquelas várias mulheres que são uma só. Se tem um filme que não entendo direito até hoje é Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock.




Este exemplo me ficou, contudo, como uma espécie de vacina. Até então, eu tinha a sensação mental de que um filme tinha o formato de um círculo: algo que começava com um ponto minúsculo (a primeira cena) e ia se expandindo até contrair-se rumo ao desfecho, e mostra o The End no ponto final. Isto que hoje chamam de “arco narrativo”, só que bidimensional. 
 
A partir daquela noite comecei a cultivar a imagem do filme como uma ampulheta, e passei a chegar na metade. Ao sentar na cadeira, o filme já estava existindo. Era algo já largo, expandido, algo vasto já acontecendo para toda a platéia, e eu não sabia quem era fulano, quem era sicrano, quem queria matar quem, qual a razão da briga, quem morava naquela casa que volta e meia recebia uma chuva de balas. Fim do filme. Ponto final. 
 
Recomeço. Ponto inicial. Meus personagens voltavam a aparecer, uns remoçados, outros ressuscitados, todos inocentes quanto ao próprio futuro, enquanto eu os contemplava com o fatalismo de um viajante no tempo. A história começava a se alargar, a se auto-explicar, a se esclarecer – e chegado ao ponto culminante eu me levantava da cadeira e caía fora. 
 
O cineclubismo e as cinematecas me ajudaram a ver filmes em forma de ampulheta: chegando no meio da história (=do círculo), vendo até o fim, e depois revendo do minúsculo começo até o auge, o ponto onde eu tinha chegado. 
 
Depois repeti isso com as novelas de TV. Xeretando um capítulo por acaso, não preciso saber a história. Tudo eu deduzo, tudo eu suponho, eu adivinho, percebendo “do nada” quem inveja quem, quem olhou de esguelha, quem titubeou no depoimento ao escrivão ou na declaração de amor à lourinha ingênua, e sempre que me deparo com algo que não entendo, imagino: “Tudo bem, já explicaram antes, eu é que peguei o bonde andando; vida que segue”. 
 
A não-necessidade de entender tudo é uma virtude intelectual que deveria ser mais cultivada. Temos a mania obsessiva de querer explicação para cada detalhe, cada frase, cada gesto. O cineclubismo, confesso, me traumatizou nesse ponto. Por que motivo a vitrine da loja era azul? O que foi que o rapaz cochichou no ouvido da moça?  Por que os garotos foram embora da praia e deixaram um chapéu de palha? O que era a construção esquisita que aparecia ao fundo naquela cena? 
 
Filmes não respondem tudo, e quando entramos num filme já começado  temos que fazê-lo de espírito aberto, pronto a considerar relevante ou banal qualquer detalhe.

Umberto Eco, num documentário recente (La Biblioteca Del Mondo, Davide Ferrario) conta que na juventude tinha acesso gratuito a peças de teatro de pessoas amigas, mas por alguma razão precisava sair antes do final. Ficou amigo de um cara com quem sucedia o contrário: como trabalhava vendendo ingressos, só podia entrar para ver a peça depois que a bilheteria fechava, e desse modo nunca via os começos. Os dois passaram, então, a trocar informações sobre os pedaços faltantes das respectivas memórias teatrais. 
 
E ele comenta a velha máxima de que a vida é um filme: entramos na sala depois que ele começou, e temos que sair antes do fim. 
 


 
 
 
 




terça-feira, 21 de novembro de 2023

5004) "Bodies": uma guerra no tempo (21.11.2023)



 
Corpos (“Bodies”, de Paul Tomalin) é uma série de ficção científica em streaming pelo Netflix, adaptação da graphic novel do mesmo nome escrita por Si Spencer.
 
É uma história policial de viagem no tempo, e transcorre em Londres, em quatro épocas diferentes, mostrando o repetido aparecimento do mesmo cadáver, no mesmo local (um homem nu, com marcas estranhas no corpo). O mistério é investigado por quatro detetives: Alfred Hillingshead em 1890, Charles Whiteman em 1941, Shahara Hasan em 2023 e Iris Maplewood em 2053. 
 
Não assisto muitas séries de FC, e devo estar perdendo muita coisa boa que há por aí. Em todo caso, esta aqui é muito bem escrita e dirigida, e em seus 8 episódios chega a uma conclusão satisfatória. Espero que não haja continuação (as continuações são quase sempre um trajeto ladeira abaixo.) 
 
Bodies tem o clima de paranóia dos thrillers de perseguição-e-fuga de Philip K. Dick: cada pessoa, por mais inocente que pareça, pode ser um agente plantado ali pela Conspiração para intervir no momento adequado. Ninguém é casual. Todo mundo está ali com “uma agenda secreta”, com segundas intenções. E da mesma forma todo mundo pode ser o “agente salvador”: um transeunte aleatório, o porteiro do prédio, o frentista do posto, qualquer um deles pode ser a pessoa que agarra o herói pelo braço na hora do perigo e diz algo na linha do clássico “Vem comigo, explico depois”. 



(Amaka Okafor como "Shahara Hasan")


Esse clima de paranóia é aliás uma das características da obra de P. K. Dick e é um sintoma neurótico da Guerra Fria, período em que Dick surgiu como escritor. A paranóia absurda e alucinada em que ele viveu parte dos seus últimos anos se deve a isso: ele tinha fantasias de que estava sendo espionado pelo FBI, e chegou a delatar Stanislaw Lem (o polonês autor de Solaris, e um dos seus grandes admiradores) como agente comunista. O medo do comunismo durante a Guerra Fria gerou (na literatura inclusive) essa situação mental de que “Ninguém é inocente, ninguém é o que parece ser, todo mundo está fingindo, todo mundo é perigoso”. E os thrillers de FC recentes bebem dessa fonte, direta ou indiretamente: O Homem do Castelo Alto, Severance, Black Mirror, Dark, etc. 
 
A série alemã Dark, com seu roteiro complexo e (em geral) bem amarrado, ajudou a fixar certos marcos, pontos de referências, recursos que irão servir a outros dramaturgos. Pessoas que transitam de um século para outro, num desenho complexo de perseguições e assassinatos, acabam se incorporando ao repertório do público e viram um instrumento dramatúrgico, prático, rápido, fácil de usar. 



 
Outro elemento presente em filmes/séries recentes é, curiosamente, o fato de que a “máquina do tempo” está em desuso. A máquina vitoriana do filme de George Pal, a Tardis usada pelo Dr. Who, o carro de De Volta Para o Futuro... Agora, a viagem no tempo se dá através de “singularidades” fixas; locais, portais não-portáteis. Podem estar no interior de uma caverna (Dark), num subterrâneo artificial (Ministério do Tempo, Bodies), mas em todo caso são lugares imóveis, a que o personagem precisa ter acesso, para viajar.   

Num certo sentido, isso me parece mais cientificamente plausível do que o “automóvel do tempo”, que o passageiro pode pilotar na direção que bem entender. E há precursores, é claro, desde a velha série Túnel do Tempo.
 
Outro elemento que reaparece aqui é a multiplicação dos corpos idênticos da mesma pessoa, reiteradamente morta: efeito semelhante ao de The Prestige (livro de Christopher Priest, filme de Christopher Nolan).



 
Em muita dessas narrativas de viagens no Tempo,uma parte crucial do enredo lida com um evento específico (o nascimento ou a morte de uma pessoa; o deflagrar de uma guerra; uma descoberta científica fundamental, etc.) que um grupo de pessoas tenta evitar que aconteça, e outro grupo se dedica a garantir que aconteça. Mudar ou preservar o rumo da História. 
 
A narrativa de Bodies tem quatro linhas de enredo (1890, 1941, 2023 e 2053) e consegue não misturá-las. É uma verdadeira proeza de malabarismo, mas a série consegue isto, mediante quatro direções-de-arte reproduzindo épocas diferentes, com diferentes paletas de cores, vestuário, ruídos e música de fundo, etc.) de tal modo que o espectador nunca se perde. (Eu pelo menos, que sou danado para confundir essas narrativas intercaladas, não me perdi.) 
 
Há momento inclusive em que a câmera, com enquadramentos sutis, parece sugerir que personagens de dois tempos diferentes estão olhando interrogativamente um para o outro, como se se avistassem por cima do “abismo do tempo”. E os detetives (Hillinghead, Whiteman, Shahara Hasan, Iris Maplewood) vão descobrindo e revelando peças do quebra-cabeças, de modo que o mistério vai sendo atacado e elucidado em quatro flancos, ao mesmo tempo. 



(Jacob Fortune-Lloyd como "Charles Whiteman")
 

Na novela gráfica original, o autor Si Spencer obteve esse efeito fazendo com que cada uma das linhas temporais fosse desenhada por um artista diferente: Dean Ormston, Phil Winslade, Meghan Hetrick e Tula Lotay. 
 
Há uma certa repetição de temas na prefiguração de uma Inglaterra sob regime autoritário. Todas essas narrativas de elites despóticas regendo Londres com mão de ferro (e aqui incluo até V de Vingança, Children of Men, etc. ) devem muito ao 1984 de George Orwell.  Mesmo quando tecem variantes demonstram estar partindo dessa premissa tão culturalmente próxima aos ingleses. Daí que as distopias britânicas de J. G. Ballard (High Rise, Crash, etc.) dão um salto de originalidade, porque a brutalidade não emerge de um governo totalitário, mas vem de baixo para cima, da população mais abastada. 
 
A série (a maioria das séries atuais) recoloca, em seus termos, a questão das influências, referências, citações explícitas, homenagens. Todo mundo está se queixando, atualmente, de que as “Inteligências Artificiais (IAs)” reciclam obras alheias o tempo inteiro sem citar a fonte. Bem – nossas inteligências biológicas fazem a mesma coisa há séculos. A única diferença é que as IAs têm a seu serviço todo o sistema de acesso a “Big Data” (quantidade massacrante de informações), rapidez de processamento e de compartilhamento. 
 
Em Bodies vi referências a O Exterminador do Futuro (James Cameron, 1980), O Vingador do Futuro (Paul Verhoeven, 1990), O Bebê de Rosemary (Roman Polanski, 1968), Fundação (Isaac Asimov, 1940+), O Homem do Castelo Alto (Frank Spotnitz, 2015-2019) e por aí vai. A dramaturgia de gênero (livros, filmes, séries, quadrinhos, etc.) canibaliza-se a si mesmo o tempo inteiro, sem muita cerimônia. Ressalvados os casos de plágio com visível má fé e sem qualquer contribuição criativa, os autores sabem, implicitamente, estar contribuindo para um gigantesco banco-de-dados onde outros autores, iguais a eles próprios, irão um dia recolher velhas idéias para novas histórias. A não ser que isso seja feito por um “robô” cibernético capaz de processar terabytes de narrativa por segundo. Aí... já é outra história. 
 
Como dizia Umberto Eco:

Os mass‑media são genealógicos e não têm memória, mesmo que as duas características pa­reçam incompatíveis uma com a outra. São genealógicos porque neles toda invenção nova produz imitações em cadeia, produz uma espécie de linguagem comum. Não têm memória porque, depois que se produziu a cadeia de imitações, ninguém mais pode lembrar quem a iniciou, e se confunde facilmente o iniciador da estirpe com o último dos netos. 

(Viagem na Irrealidade Cotidiana, Nova Fronteira, 1984, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, pag. 176)

 
 

(por Will Tirando)





sábado, 18 de novembro de 2023

5003) O método científico e o absurdo (18.11.2023)

 
 
A Ciência pode ser vista como um conjunto de procedimentos que se vigiam e se corrigem mutuamente. Um desses procedimentos, por exemplo, é a experimentação direta: não adianta conceber a hipótese mais fascinante; é preciso testá-la no mundo “daqui de fora”, fora dos livros, fora das palavras, fora das fórmulas.  
 
Outro procedimento é o da diversidade de observadores: o resultado que eu obtive deve ser o mesmo que é obtido por outros observadores. Uma coisa que somente eu percebo não pode ser base científica para nada. 
 
Outro procedimento que a Ciência emprega, e nisto se faz parceira da Filosofia, é o emprego de conexões lógicas entre os fatos. Aqui é um terreno mais escorregadio, porque os filósofos têm o hábito (muito saudável, aliás) de procurar brechas e inconsistências nos argumentos dos colegas. E, por isto mesmo, acabam produzindo argumentos mais sólidos e precisos. 
 
A Lógica é um desses instrumentos, e serve de apoio às investigações científicas. O silogismo é uma fórmula simples que todo mundo já viu por aí: 
 
a.       Todos os homens são mortais.
b.       Ora, Sócrates é um homem.
c.       Portanto, Sócrates é mortal.
 
Quando aplicadas à vida prática, estas fórmulas precisam corresponder à verdade observável na vida prática. É neste ponto que alguns espertos turvam as águas e nos forçam a aceitar resultados absurdos, simplesmente porque nos jogam no colo uma premissa falsa... e nós não a questionamos : 
 
a.       Todos os escritores são bêbados.
b.       Ora, Charles Bukovsky é um escritor.
c.       Portanto, Charles Bukovsky é um bêbado.
 
Parece verdade, mas infelizmente (ou felizmente) o ítem “a” não é uma verdade demonstrável.
 
Nessas demonstrações lógicas, é a forma que conta. Se cada afirmação for factualmente correta, o raciocínio é sempre o mesmo. 
 
a.       Todos os gugurinos são travões.
b.       Ora, o manipanso-mor é um gugurino.
c.       Portanto, o manipanso-mor é um travão.
 
O raciocínio é correto; pouco importa se os termos são absurdos. 
 
Esse bê-á-bá da Filosofia é essencial para o raciocínio científico. Curiosamente, tem a ver com muitas proposições da Matemática, que um dia alguém descobre e sistematiza sem saber para que serve (são meros cálculos numéricos ou geométricos), e cinquenta anos depois alguém descobre que esse tipo de raciocínio pode ser aplicado com perfeição a partículas sub-atômicas ou a reações químicas. 
 
O interessante dessas proposições é que elas dão espaço para uma mistura totalmente incongruente (e divertida) entre o rigor filosófico e o nonsense. Se a relação entre os elementos é lógica, não importa se os elementos em si são absurdos. 


(Hubert Phillips, "Caliban")
 

Hubert Phillips (1891-1964), conhecido como “Caliban”, manteve durante anos algumas colunas de quebra-cabeças matemáticos e lógicos em publicações como o Daily Telegraph, New Statesman, The Nation e outros. Muitos desses problemas foram reunidos no livro My Best Puzzles in Logic and Reasoning  (New York: Dover, 1961).
 
Entre eles está o divertido problema intitulado “Pickled Walnuts”, que ele descreve como “um daqueles exercícios em inferência que tanto fascinavam Lewis Carroll”. É uma série de proposições (que devem ser aceitas a priori como verdadeiras – ou seja, não há trapaça) envolvendo situações e personagens meio surrealistas, das quais pode ser extraída alguma conclusão lógica. 
 
Fiz uma tradaptação (tradução + adaptação) do problema, mantendo o rigor das proposições.
 
·         Cerveja Stella Artois é servida sempre nas reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·         Nenhum torcedor que não prefere o Barcelona ao Real Madrid pega, jamais, um táxi na Cinelândia.
·         Todos os morcegos sabem tocar sanfona. 
·         Nenhum animal pode ser registrado como enólogo se não levar consigo um iPhone. 
·         Qualquer animal capaz de tocar sanfona pode ser eleito para o Clube dos Alquimistas Amnésicos. 
·         Somente animais registrados como enólogos são convidados para as reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·         Todos os animais que podem ser eleitos para o Clube dos Alquimistas Amnésicos preferem o Real Madrid ao Barcelona.
·         Os únicos animais que saboreiam cerveja Stella Artois são aqueles que a experimentam nas reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·         Somente animais que pegam táxi na Cinelândia levam consigo um iPhone.
 
Qual a conclusão que pode ser extraída?
 
Quem quiser ver a versão original do problema, e a resposta, pode acessar aqui, e ver a “Solução ao Problema #43”: 
 
https://gizmodo.com/theres-a-star-hiding-in-this-image-can-you-find-it-1724344803
 
O que significa isto, para além do lado de humor “lewiscarrolliano”? 
 
Significa que o pensamento científico, armado com os instrumentos da lógica filosófica, pode chegar a conclusões satisfatórias mesmo quando lida com elementos indefinidos, desde que essa ação de “lidar” tenha uma lógica própria, que essa lógica seja coerente, e que possa conduzir sempre aos mesmos resultados, quando é seguida à risca. 
 
 Grande parte da solidez no método científico (sempre, em casos assim, de-parelha com a filosofia) não depende da natureza dos elementos que manipula, mas do rigor das regras dessa manipulação. É como dizer: “Três laranjas mais cinco laranjas é igual a oito laranjas”. Não importa se são laranjas, abacaxis ou carburadores. Três mais cinco é igual a oito. 

 
 


 
 
 







quarta-feira, 15 de novembro de 2023

5002) Explicar o poema e a piada (15.11.2023)




Dizem que Ava Gardner, numa visita social ao poeta Robert Graves, disse a ele: “Sabe de uma coisa, Robert, eu não entendo poesia.” E ele, cavalheirescamente: “Minha querida, ninguém espera que você entenda um poema, espera que você o desfrute.”
 
Isto bate um pouco com a afirmativa de Stanley Kubrick de que um filme, idealmente, não deve ser compreendido, e sim desfrutado como se fosse uma peça musical.
 
Quer dizer que um poema não deve ser examinado pelo nosso intelecto, pela nossa mente racional, analítica? Deve, sim; se alguém inventar de dizer que não deve, aí é que a mente analítica se assanha toda para produzir interpretações.
 
A questão é outra. Um poema não converge para uma explicação nítida e clara, como ocorre com um problema matemático. O poema espalha significados em várias direções, a cada leitura, e para cada leitor.
 
Interpretar (“explicar”) um poema é uma tarefa desnecessária mas inevitável, porque somos uma civilização propensa a interpretar tudo. Precisamos explicar tudo cujo sentido não é imediatamente claro – uma chuva fora de estação, um bezerro que nasceu com duas cabeças, um carro novinho que deu o prego na BR, o comportamento bizarro de um técnico de futebol ou de um político.
 
Ao ler um poema diante de uma classe com 40 adolescentes, um professor de literatura não consegue ficar o tempo inteiro colhendo e comparando 40 impressões. Ele cede à tentação demasiado humana de matar a charada:
 
– Este poema fala sobre a perplexidade do Homem diante da falta de sentido de nossa civilização.
 
Soa tão plausível que desse momento em diante todas as leituras do poema tenderão a passar por esta porta, e só por ela.
 
Uma das maiores armadilhas em que o leitor acaba caindo é a de achar que um poema tem uma “resposta certa”, uma “mensagem”, um “significado único” que é preciso descobrir, como se fosse uma charada ou uma adivinhação.
 
Uma adivinhação é algo assim:
 
O que é, o que é: cai em pé e corre deitado?
Resposta: a chuva.
 
Quem inventou essa adivinhação tinha esta resposta em vista, e nesse caso, sim, podemos considerar que esta é a “resposta certa”.
 
Outras podem admitir mais de uma resposta-certa, e com isso servem de jogo de engana-engana.
 

 
(Trupizupe, o Raio da Silibrina, direção de Hermano José, com Gilmar Albuquerque, Saint-Clair Avelar e Geová Amorim, 1979, Campina Grande)


Na minha peça Trupizupe, o Raio da Silibrina (1979) vários pretendentes vão à corte do Rei responder adivinhações, para conquistar a mão da princesa, mas ela é mal-humorada e não quer casar com ninguém.
 
REI: Que entre o primeiro candidato!
(ENTRA CANDIDATO 1)
PRINCESA: O que é, o que é: quanto maior menos se vê?
CANDIDATO 1: A distância!
PRINCESA: Errado! É a escuridão. Cortem-lhe a cabeça!
(CANDIDATO 1 SAI)
REI: Que entre o segundo candidato!
(ENTRA CANDIDATO 2)
PRINCESA: O que é, o que é: quanto maior menos se vê?
CANDIDATO 1: A escuridão!
PRINCESA: Errado! É a distância. Cortem-lhe a cabeça!
 
E por aí vai. O conceito de “resposta certa” pertence ao domínio da Matemática, da Lógica, da Ciência (de algumas Ciências), mas não ao domínio da cultura popular ou da poesia.
 
O poema é um gerador de “imagens”, “melodias” e “idéias” (fanopéia, melopéia e logopéia, nos termos usados por Ezra Pound), e quem o escreve tem consciência de estar apenas desencadeando um processo nas mentes alheias. 
 
Mal comparando, o poema é como um raio de luz. As mil-e-uma impressões sensoriais, emotivas e intelectuais que fervilham na mente do poeta são como um espectro de várias cores, que ele consegue por fim sintetizar num raio único, de cor branca, onde se contém tudo que estava em sua mente. Esse raio branco é o poema. E quando o poema é lido por uma pessoa, ele volta a se refratar em raios de várias cores, mas – isto é crucial – esses raios jamais serão idênticos aos que havia na cabeça do poeta. 



Assim como nossos olhos veem no mesmo arco-íris um arco-íris diferente do que as pessoas ao nosso lado estão vendo (porque o ângulo de incidência dos raios luminosos é diferente, mesmo com alguns centímetros de distância entre os olhos de um e os olhos do outro), nossa leitura do mesmo poema é parecida mas nunca é igual. Porque aquelas palavras despertam ressonâncias diferentes em mim e em você. 
 
Um poema não conduz a um único significado, previsto (e disfarçado) pelo autor. É um gerador de múltiplos significados – todos flutuando, é claro, no interior da “nuvem” de significados cabível nas palavras do texto. O poema não é uma casa-da-mãe-joana onde cada um lê o que bem entende. 
 
Um poema é para ser sentido, desfrutado, saboreado, experimentado com interesse, curiosidade, sem muita pressa de “entender”, de “achar a resposta”. 
 
Nem todo poema se presta a isso. A maioria dos poemas que eu leio eu não desfruto muito, não porque “não compreenda o significado”, mas, em geral, porque já li centenas de poemas muito parecidos. Aquele ali, por mais benfeitinho que esteja, é agradável, mas não me traz muita novidade. É uma lata de Coca-Cola a mais. 
 
Explicar um poema é um pouco como explicar uma piada. A gente conta a piada. Algumas pessoas riem no final, outras não. Então a gente vai explicar a piada, o que já é, por definição, a confissão de uma derrota. É como fazer uma carícia na parceira, ouvir dela que não sentiu absolutamente nada, e depois explicar-lhe cientificamente por que deveria ter sentido alguma coisa. “Sheldon In Love.” 
 
A emoção do poema e a graça da anedota dependem muitas vezes de um voo mental, dependem da nossa capacidade de, num segundo, repensar o que vinha sendo pensado e ver tudo com novos olhos, a partir de cada informação nova que chegou. 




Fazer isto é saltar de um pico-da-montanha a outro, sem descer ao vale; mas o que chamamos “compreender” é filho do “explicar”, que é por natureza uma atividade pedestre. Explicar requer um avanço passo a passo, um reconhecimento cauteloso de cada pedaço de chão, como quem cruza uma floresta detendo-se a nomear e descrever cada árvore.  
 
Nem o poema nem a anedota resistem a esse desfibrar de uma experiência que se supõe instantânea. Claro que uma explicação sempre deixa algum lucro atrás de si; mas é como explicar a água fria a alguém que nela não mergulha a mão. 
 
Ou explicar o que é o leite a um menino cego, como na anedota antiga que li em Seleções
 
Um Homem está passeando no parque, num dia de sol, fazendo companhia a um Menino cego de nascença. O menino se queixa do calor e diz que gostaria de tomar um copo dágua. 
 
Homem: Por mim, eu tomaria um copo de leite. 
 
Menino: O que é leite? 
 
Homem: É um líquido branco. 
 
Menino: Líquido, eu sei o que é. Mas o que é branco? 
 
Homem: É a cor das penas de um ganso. 
 
Menino: Penas, eu sei o que é. Mas o que é ganso? 
 
Homem: É uma ave do pescoço torto. 
 
Menino: Pescoço, eu sei o que é. Mas o que é torto? 
 
O Homem, já impaciente, pega o braço do menino, estica-o, e diz: “Assim, seu braço está reto”. Dobra o braço do Menino, e diz: “E assim está torto”. 
 
Menino: Ah... Entendi o que é leite. 
 
O problema da maioria das explicações, principalmente as de poesia, é que tendem a se afastar cada vez mais da questão inicial. 


 
Para explicar uma frase, o explicador propõe um conceito que não está visível no poema em si. Não está muito distante, também; mas só em ser chamado a esclarecer alguma coisa ele já desloca o centro da discussão um pouquinho para o lado. Um novo questionamento afasta esse centro ainda mais, e assim por diante. 
 
O poema vai se distanciando no retrovisor, vai sumindo, e a explicação vai produzindo novos e mais novos conteúdos, e em torno deles a discussão avança. Pode deixar algo positivo? Sem dúvida. Mas o poema perdeu-se lá atrás, intacto. 
 
E é isto que acontece com centenas, milhares de poemas que lemos desde a infância e a adolescência, enquanto ampliamos a nossa capacidade de ler e de sentir. E jamais chegaremos a um ponto em que sejamos capazes de “entender” qualquer poema. Ninguém chega – embora seja capaz de explicar tudo e mais um pouco.