Eu tinha pensado em publicar aqui uma daquelas crônicas-obituários, mas dei uma olhada na página do blog e me deu um arrepio ao ver como esses necrológios estão se enfileirando. Vôte. Daqui a pouco vou ficar sem outro assunto senão me despedir dos amigos e das pessoas que mais admiro.
Me vieram à mente as vozes de Jessier Quirino e Jorge Filó: “A morte é um doido limpando mato”. É a sabedoria visual dos cantadores de viola, capazes de criar, em uma linha, um cartum inesquecível. Dê uma foice e uma instrução a um doido, e ele vai sair cortando o que aparece pela frente, seja touceira de urtiga ou o galho da roseira.
Por falar nisso, passei recentemente uma madrugada assistindo clipes de vídeo e de áudio com as performances musicais de Hermeto Paschoal. Eu só, não: eu e a torcida do Treze. (Não boto “eu e a torcida do Flamengo” porque esta anda bastante alegrinha, e o momento é de certa melancolia.)
O primeiro show de Hermeto Paschoal que eu assisti foi ali por volta de 1979 ou 1980, quando eu morava em Salvador. Algum produtor inspirado pelas musas trouxe para o palco do Teatro Castro Alves ele e Sivuca, só os dois, sem banda (“sem outros músicos atrapalhando”, como dizia um amigo meu de maus-bofes). Foi um diálogo bate-rebate, um pingue-pongue, um barra-a-barra, os dois se divertindo pra valer, tocando juntos e separados.
(Hermeto e Sivuca)
Separados no berço, disse alguém na época. Dois sanfoneiros albinos parecem uma dupla de personagens inventada por Salman Rushdie ou João Ubaldo Ribeiro, que são chegados a um “realismo histérico”. Não importa. Um era paraibano, o outro alagoano, mas era como se alguém tivesse preparado uma fórmula mágica e pingado em dois tubos-de-ensaio diferentes, deixando maturar ali durante algumas décadas para ver os resultados.
Em todo caso, não é Sivuca a figura com quem geralmente me ocorre comparar Hermeto, e sim com outro companheiro seu de geração, o baiano Tom Zé, que vi há poucas semanas no Circo Voador.
Tom Zé é poucos meses mais novo que Hermeto (os dois são de 1936). As trajetórias dos dois são muito diferentes, mas como eu os acompanho há seis décadas sempre percebi alguns pontos em comum. Os principais são: erudição, experimentalismo-lúdico e pés no chão.
Primeiro, a erudição. Músico erudito, no meu dicionário pessoal, é músico que sabe ler e escrever partitura. Não importa se é pianista da sinfônica de Berlim ou trombonista da orquestra-de-frevo da Bomba do Hemetério. Para mim, que olhando no papel não distingo um dó de um ré, ele é erudito. É alfabetizado, e eu não.
(partitura de Hermeto)
Claro que não basta isso, mas isso pesa. A música é uma língua estrangeira: a notação musical, a linguagem musical, as noções estabelecidas de harmonia, ritmo, contagem de compassos, modulações e o escambau... Tudo isto é um idioma secreto que eles compartilham e nós espiamos pelo lado de fora.
Vemos os resultados e podemos apreciá-los: qualquer pessoa mediana pode sentir a beleza de um quarteto de Mozart, mesmo que não saiba os nomes das notas que estão sendo tocadas. Mas uma coisa é reconhecer a beleza (ou a mera complexidade) quando a vemos, e outra coisa é ser capaz de reproduzi-la.
Digo isto porque grande parte do respeito que um músico como Hermeto desperta lá fora do Brasil (onde chegava sem ninguém saber quem era ele) vem da percepção imediata, com quinze minutos de show no palco, de que “aquele cara sabe do que está falando”. Ele não era um mero talento bruto, primitivo, “uma força da natureza” – algo também importante. Era um cara que tinha domínio sobre essa língua universal, a linguagem-escrita da música.
E aí me refiro a uma coisa importante na vida artística (como na vida em geral), que é o respeito entre seus pares. Ser respeitado pelas pessoas que praticam aquilo. Pode até ser que o público em geral, o público parecido comigo, esteja vendo o show e remungue: “Que som complicado, não estou entendendo nada”. Mas o músico profissional que está de pé ao meu lado, lata de cerveja em punho, fala baixinho: “Cara, esse sujeito é muito bom.” E isso pesa.
Ser erudito parece um pouco com ser rico. Que graça tem ser rico sozinho?! E Hermeto tinha um aspecto formador, distributivo, de canalizar essa riqueza teórico-prática e passá-la adiante. Formou gerações de músicos.
A erudição não salva ninguém. Na música, na literatura, na filosofia, onde quer que seja. O sujeito pode saber de cor todos os clássicos e todos os Manuais de Escrita Criativa disponíveis no mercado, mas isso não garante que seja capaz de produzir uma crônica que se aproveite.
Aí entra um aspecto desconcertante que Hermeto tinha, o tal “experimentalismo lúdico”. Aquilo que faz o músico de concerto dar um passo adiante na direção do desconcerto. Uma curiosidade incessante de inventar formas novas, redescobrir formas esquecidas, fazer algo que nunca foi feito, aproximar coisas que estavam em universos separados... É para isso que serve a erudição. Tem muito erudito que se refestela no conforto, na repetição, mas essa técnica toda que acumulou poderia também lhe servir de estímulo para aventurar-se no desconhecido, mas com fundamento, com base, com um GPS auditivo que o mantenha na rota.
E experimentar de maneira lúdica – brincando, divertindo-se, desafiando a si mesmo e aos outros, jogando na mesa pequenas provocações criativas, despertando os sonolentos, chacoalhando os rotineiros... Experimentar com prazer. Não o prazer egoísta de quem tenta deixar os outros do lado de fora, mas o prazer de abrir um novo espaço e tentar puxar alguém para dentro.
Tem uma anedota que contam de Hermeto, com várias versões. Numa delas ele estava executando um número com sua banda e a certa altura um músico tinha a incumbência de soltar moedas numa bacia de metal. Alguém da platéia reagiu: “Ei, eu vim aqui para ouvir música, isso não é música!...” Hermeto, ao piano, mandou o músico jogar outra moeda, ouviu o “plin!...”, e tocou o mesmíssimo som numa tecla do piano: “É música, sim.”
Isso quer dizer que qualquer barulho, qualquer som é uma nota musical? Não. Uma nota musical é a depuração de um som, a destilação, a purificação de um som num conjunto de vibrações alinhadas entre si. A nota musical é o tipo de som mais puro que existe. A nota musical está para o som assim como o vidro está para a areia.
Hermeto não disse isto, quem está dizendo sou eu, todo animadinho com meu boné de teórico na cabeça. E isso só está me vindo à mente porque ele mandou o músico jogar uma moeda na bacia.
Joguem moedas na bacia, que o músico está precisando.
Botem notas na bandeja, porque os cantadores ao pé-da-parede estão precisando. Criar o que não existe também é trabalho.
E isso nos traz ao terceiro elemento que está na obra (e acho que na vida) de Hermeto: pés no chão. Parecia ser o sujeito menos hermético do mundo, um camarada simples, sem pose. Não precisava chamar a atenção de ninguém – a natureza já tinha se encarregado disso. A pose, em si, não desmerece nem desvaloriza um artista, mas tem gente que recorre à pose por mera insegurança íntima, por mera necessidade ansiosa de imaginar-se superior; e o sujeito entra numa sala como se fosse um boneco do carnaval de Olinda. Não precisa.
O famoso “passeio na rua” em que Hermeto arrebanhava uma platéia inteira para sair do teatro atrás dele e dar a volta ao quarteirão era a sua versão pessoal (uma versão pés-no-chão, uma versão desconstrutora!) desse carisma de liderança, de flautista-de-Hamelin, de líder capaz de conduzir multidões. Bora sair, bora dar uma volta na calçada, bora chamar a atenção do povo, bora botar o povo pra dançar, os “pobe” tão voltando do trabalho, todo mundo cansado, nem jantou ainda, aí eles veem a gente tocando e vêm atrás, dançam um tiquinho, o caba se distrai, volta pra casa mais leve, dá um cheiro na mulher, dá um cheiro nos menino. Agora pronto, vamos voltar pro teatro, que minha bolsa ficou lá.
(Hermeto e banda)