quarta-feira, 15 de maio de 2024

5062) Palavra de sertanejo (15.5.2024)



(Praça da Bandeira ) 


São as histórias antigas de Campina Grande, cujo povo brilha mais pela imaginação do que pela fidelidade aos fatos. Os fatos, para os campinenses, são uma espécie de argila úmida, que o narrador vai modificando à medida que conta, com tal detalhismo e destreza que um notebook PC em poucos minutos se transforma num Mac.  
 
Esta aqui me foi contada por Bastinho. Um “caba bom”, da minha geração, que tem uma loja de auto-peças na rua Índios Cariris, é torcedor do Treze, e nos velhos tempos frequentava o Caldo de Peixe do velho Ferreira e o Sinatra Bar, de Rostand. 

Gordão, sorridente, tem uma voz de estremecer paredes. Nos tempos em que a gente ia para lá com violão na mesa, ele se chegava, puxava cadeira, desfiava Altemar Dutra até ficar todo mundo com lágrimas nos olhos. 
 
Nesta vez, eu estava em Campina e fiquei bebendo com uma turma de meia dúzia, no abrigo da Praça da Bandeira. No meio da conversa alguém mencionou um caso recente de assinatura falsificada, que só foi descoberto quando a família pegou o carro e veio de Puxinanã para Campina para checar no Cartório. 
 
– Você devia ter conhecido meu avô – disse Bastinho. – Com ele não tinha esse problema. 
 
Ele falava para todos, mas se dirigia a mim, porque sabia que eu moro no Rio de Janeiro, e alimentava a esperança de que suas histórias acabassem na TV Globo. 
 
– Como era o nome dele? – incentivei. 
 
– Paulo Bezerrão – disse Bastinho. – A gente não é da família Bezerra. O apelido é porque uma vez ele matou um bezerro com um murro. 
 
– Eita mentira – disse alguém. – Tem prova? 
 
– Não tem porque naquele tempo não existia celular nem Instagram – disse Bastinho, franzindo a testa e estufando o peito. – Mas tem a palavra da minha avó, que viu a cena e mesmo assim noivou com ele. 
 
– Quem tem boca diz o que quer. Se for por isso, meu avô foi na Lua e voltou – disse Nicanor, um bêbo meio sem assunto. – Diga que é mentira! 
 
– Isso aí não é mentira, é ilusão – disse Biliu de Campina, fingindo que ajeitava a aba do chapéu. – É você pensando que é engraçado. 
 
Antes que Nicanor pegasse ar, eu trouxe o assunto de volta. 
 
– Mas o que é que teu avô tinha a ver com falsificação? 
 
– Rapaz, é uma história comprida. Bezerrão herdou de um tio dele, que eu não sei mais quem era, uma terra meio ruinzinha, lá na região de Imaculada. Nesse tempo ele morava em Água Branca, foi antes do meu pai nascer. Nessa terrinha tinha uma casa meio estragada, uns moradores, uns roçadinhos, ele ia lá de vez em quando mas nunca se interessou. Acontece que ele criou uma dívida de jogo com um amigo dele, era bastante dinheiro, chegaram quase a se intrigar por causa disso. 
 
“O amigo, um tal de Teófilo, propôs que Bezerrão passasse essa terra pro nome dele. Eram dois velhos teimosos, com pouca paciência pra vida prática, só queriam saber de caçada, bebida, farra. Em vez de irem num cartório, Bezerrão assinou um documento e passou o terreno para Teófilo. E isso não mudou nada, porque o outro também não se interessou pela terra. Queria só ter a posse. 
 
– Isso não está me cheirando bem – disse Biliu. – Não tem terra tão pequena que não se possa medir sete palmos. 
 
– Não foi o caso – disse Bastinho. –  Mas Bezerrão morreu, teve um colapso. Algum tempo depois Teófilo morreu também, quando bateu numa vaca com a camionete, na estrada para Tabira. E quando foi alguns anos atrás, surgiu uma questão na terra, porque o governo queria desapropriar um trecho, essa coisa de sempre. Quem era o dono? 
 
– O dono não já era Teófilo? – perguntei. 
 
– Era o que as duas famílias sabiam, mas quando foram atrás do documento... Primeiro remexeram a casa toda pra poder achar, porque as coisas do velho Teófilo eram uma zona total. Acabaram achando, um envelope grande, sujo, amassado, enfiado numa Bíblia sem capa. E aí começou o problema. Eles viram que a Bíblia pegou uma chuva ou alguma coisa assim, e se molhou, e o envelope também. 
 
– Apagou a tinta toda – disse algum sádico. 
 
– Não chegou a isso, mas perdeu-se a assinatura de Bezerrão, o pedaço de baixo do documento se desmanchou. Ficou só o termo de posse, numa caligrafia que talvez fosse de minha avó, mas enfim, todo mundo já na cova... e um documento que parecia de verdade, mas incompleto. 
 
– Mas se as famílias conheciam a história, não haveria problema – disse eu, sempre conciliador e otimista. 
 
– Por meu pai e por nós não haveria – disse Bastinho. – Mas um primo meu entrou na justiça, e tirou não se sabe de onde uma versão de que Bezerrão tinha dado a terra ao pai dele, também já morto. Isso envergonhou nossa família, mas era palavra contra palavra. 
 
– E um documento sem assinatura. 
 
– Isso mesmo. O juiz era gente boa, mas explicou: estava com as mãos e os pés atados, por falta de uma evidência concreta. 
 
– E então... chegou alguém e falsificou a assinatura – sugeriu alguém. 
 
Bastinho encrespou-se: 
 
– Você está pensando o quê?!  Minha família é pobre mas tem honra. 
 
– Metade disso é verdade – disse Biliu. 
 
– E como ficou o caso, então? 
 
– Fomos pra Imaculada. Eu, meu irmão Paulinho, e minha irmã Dionéia. Nos reunimos com os netos de Teófilo, um pessoal bacana, pessoal educado, mas sem mentalidade prática, sem muito traquejo pra sair desse tipo de situação. Chegamos lá de tarde, tivemos uma conversa, jantamos, depois do jantar sentamos todos na mesa e eles trouxeram o documento. Envelope antigo, papel antigo, tinta desbotada, e meio palmo da folha se esfarrapando, no lugar onde tinha a assinatura. E foi nesse momento, modéstia à parte, que eu percebi uma coisa. 
 
Um carro passou diante do abrigo, tocando um forró em toda altura, mas afora isso não se escutava um pio naquela roda. 
 
Bastinho contou, caprichando no gestual com mãos e dedos: 
 
– Eu pedi o documento... segurei, assim... levantei... olhei de encontro à luz elétrica... parecia tudo normal. Eu estava até emocionado, porque disseram que era a letra de minha avó, que eu nem conheci. Mas aí, sabe o que eu vejo? Junto da data, logo na cabeça da folha, tinha uma mancha que me chamou a atenção. Botei a folha na mesa, alisei ela, assim. Era uma mancha de goma arábica. 
 
– Goma arábica – repetiu alguém, baixinho. 
 
– E pregada nela, sabe o quê? – Ele ergueu no ar o polegar e o indicador, fingindo que segurava um fragmento invisível. – Um cabelinho. Pregado no papel com goma arábica! Era um fio de barba de Bezerrão. Assinatura de sertanejo antigo; por via das dúvidas. 
 
Novo silêncio, mas fervilhante de hipóteses mentais. 
 
– E aí? – disse eu. 
 
– Aí?  Aí, nada – disse Bastinho, despreocupado, enquanto enchia o copo de novo. – Teste de DNA, assunto resolvido, o juiz aceitou o documento, meu primo botou o rabo entre as pernas, e entrou por uma perna de pato, saiu por uma perna de pinto. 
 
– Foi muita sorte – comentei. – Muita sorte do fio de barba não ter se perdido, e de você ter percebido que ele estava ali. 
 
– Foi sorte, mas foi também inteligência – replicou Bastinho, satisfeito, alisando maquinalmente o frondoso bigode grisalho. – Só acha quem procura. 
 
– Ou quem botou – disse Biliu baixinho, mas nesse instante o carro do forró passou de novo e acho que só quem escutou fui eu. 

 


(Biliu de Campina)