sábado, 8 de janeiro de 2011

2448) O número fatal (8.1.2011)



Nossas vidas têm regularidades tão implacáveis quanto as que regem o balé dos planetas e a multiplicação dos cromossomos. Pensamos que somos dotados de livre-arbítrio, mas nosso livre-arbítrio consiste apenas em imaginar que o temos. Um indivíduo que salta de um arranha-céu é livre para pensar o que quiser, inclusive que poderia interromper a queda, mas, talvez até para provar o seu livre-arbítrio, ele toma a decisão de continuar caindo. A natureza se repete; é do seu feitio. Não podemos imaginar que um belo dia uma laranjeira produza, no meio das laranjas habituais, uma graviola. Ou um relógio.

O caso de Thomas Adelmann, por exemplo. É um pacato comerciante de Munique, dono de uma loja de relógios que herdou do avô através do pai. Talvez fosse ele (que a cada noite, antes de dormir, toma de um caderno da capa preta e anota em colunas, com letra miúda, as despesas do dia, desde o metrô ao cigarro, desde o jornal ao carnê do seguro, desde as frutas que trouxe para casa à mesada da filha adolescente) uma das pessoas mais capacitadas para perceber a existência do número fatal, o número que rege sua vida. E este número é 611.

Como se sabe, na vida não há coincidências, a não ser que consideremos uma coincidência o fato de que toda tarde, após o trabalho, voltamos para a mesma rua, entramos na mesma casa e dormimos na mesma cama. Coincidência, os números marcados numa régua estarem todos a um centímetro de distância um do outro? A vida de Thomas Adelmann estava regida em ciclos de 611 horas ou 611 dias. Esta era a raiz (o x-linha e o x-duas-linhas) que zerava de forma satisfatória as modestas turbulências produzidas no Universo pela sua presença; e o readmitia no fluxo da harmonia universal.

Thomas nunca somou as letras do seu nome completo, do da sua noiva, e dos pais e avós de ambos. Se o tivesse feito teria chegado ao número 611 e isto lhe pareceria um dado aleatório. O lacônico testamento do pai, deixando-lhe, previsivelmente, a loja na Schillerstrasse, tinha um total de 611 palavras. O bilhete de loteria que um vendedor com óculos verde-escuros lhe ofereceu numa estação de trem ostentava um número que era (mas como Thomas poderia saber?...) 611 ao quadrado (ele agradeceu e recusou o bilhete, que dias depois fez a fortuna de uma professora de piano regida pelo mesmo algoritmo). E como explicar a Thomas que o dia de sua morte ocorrerá num múltiplo de 611 em relação ao do seu nascimento?

Se existissem deuses poderíamos elogiar sua generosidade. Não os havendo, basta dizer que é uma feliz coincidência o fato de que as regras fundamentais do nosso destino nos são invisíveis, de tão amplas. São como as Linhas da Nazca, que traçam figuras quilométricas e imperceptíveis sob os pés dos incautos viajantes. Fosse o número, ao invés de 611, um simples 3 ou um simples 7, é possível que numa noite insone Thomas saltasse na cama, gritando “Eureka!”. Ao que nos consta, isto até agora não aconteceu.

2447) A arte do livro bizarro (7.1.2011)




Sou colecionador de livros bizarros, exóticos, meio absurdos. Não dos livros propriamente, porque não tenho dinheiro que os compre nem lugar onde os amontoe; mas das informações a seu respeito, que muitas vezes se limitam a ver a capa, o título, ler um resumo.

O Livro Bizarro nos lembra que o mundo dos livros se parece ao mundo da Natureza, onde as coisas brotam ao acaso, sem coordenação central. Basta esquecermos as cadeias de grandes livrarias e irmos fuçar Web afora (ou em sebos e bibliotecas) para descobrirmos livros tão improváveis quanto o ornitorrinco, o tubarão-martelo e a bactéria de arsênico.

Quem imaginaria, por exemplo, um livro intitulado Tudo Sobre Cascas de Feridas? É uma obra didática infantil de Genichiro Yagyu (1998), a quem tirei o chapéu: está aí um assunto que jamais me ocorreria.

Talvez me ocorresse, como a qualquer cidadão, o tema da obra de Deborah K. Hargis: Suas Pernas São Longas Demais: Como Ir Além das Desculpas nos Casos de Disfunção Erétil. É um manual que analisa as desculpas dadas pelos homens (“Você parece com a minha mãe”, “Acho que bebi muito”, “Acho que bebi pouco”, etc.) naquela mais constrangedora das situações.

Talvez fosse útil a gente consultar Mais 101 Utilidades Para um Gato Morto de Simon Bond (observem a sutileza do “mais”: trata-se decerto de uma segunda compilação), ou os provavelmente sábios conselhos de Donald Rogers em Ensinando Sua Esposa a Ser Viúva.

Temas mais leves podem ser encontrados em A Estranha História dos Dentes Falsos de John Woodforde, Amor e Sexo com Robôs de David Levy, Como Ensinar Física ao seu Cachorro (pena que não haja um livro visando filhos adolescentes!) de Chad Orzel, Um Atlas das Pulgas da Grã-Bretanha e Irlanda de R. S. George.

Tudo na vida tem dois lados, não é mesmo? Aqui está Castração – Vantagens e Desvantagens, de Victor Cheney, que não me deixa mentir.

São livros técnicos destinados a aprimorar nossa vida prática, mas não é apenas neles que a estranheza se manifesta. Fico pensando nas mirabolantes aventuras contidas no romance A Vagina Mal-Assombrada de Carlton Mellick (autor de outras obras como O Cadáver do Jesus Elétrico ou Zumbis e Fezes).

Ou nas revelações históricas contidas em Os Homens que Embalsamaram Lênin de Ilya Zbarsky. 

Sem falar nas emoções de Socorro! Estou Sendo Comido Por um Urso! de Mikle Hansen. (Gostou? Tem mais aqui: (http://tinyurl.com/2u8w63z).

O Livro Bizarro nos produz um estimulante alongamento dos músculos mentais, porque em geral ficamos presos àquela vidinha besta entre os clássicos do passado e os sucessos do presente.

O Livro Bizarro é o sexto lado do Pentágono e a terceira margem do rio. Não é feito por galhofa. São livros sérios, escritos por gente de verdade para quem aquele assunto merece respeito e atenção. O mundo é mais rico do que imaginamos, ainda que essa riqueza se expanda em direções que às vezes dá medo explorar.