terça-feira, 28 de abril de 2015

3800) Traduzir FC na China (29.4.2015)



Um manuseado trocadilho italiano diz: “Traduttore, tradittore”. Tradutor: traidor. Vi recentemente uma versão em espanhol dizendo que este estóico profissional “no es um traidor, sino um traedor”. Um trazedor: alguém que traz para nosso alcance algo que estava lá do outro lado do mundo. Gostei mais desta. Ambos os epítetos, aliás, dão certinho com o que tradutores chineses andam fazendo com livros de ficção científica ocidentais.

Dizem que a China tem um público de um bilhão de leitores. Lá, a FC tem historicamente um perfil didático, educativo, voltado para a divulgação da ciência entre os jovens. Ambiente mais que propício, por exemplo, para se traduzir Jules Verne. A tradução, contudo, enfrenta problemas, principalmente de ordem cultural – o leitor sabe pouco a respeito do Ocidente. Uma matéria de Ken Liu no saite io9 (aqui: http://tinyurl.com/ljshjas) mostra a verdadeira paráfrase realizada no primeiro parágrafo de Da Terra à Lua de Jules Verne (1865).

O texto original diz: “Durante a Guerra da Secessão dos Estados Unidos, um novo clube, muito influente, foi criado na cidade de Baltimore, em plena Maryland”. Uma tradução chinesa, feita via japonês, diz: “Quem já estudou a geografia e a história do mundo conhece um lugar chamado América. Quanto à Guerra da Independência americana, qualquer criança sabe que foi um acontecimento que fez o mundo estremecer, um feito que deve ser frequentemente relembrado e nunca esquecido. Bem: entre todos aqueles Estados que participaram da guerra, um deles se chamava Maryland, cuja capital, Baltimore, era uma famosa cidade fervilhante de multidões e com um intenso tráfego de cavalos e carruagens. Nessa cidade havia um clube, de magnífica aparência, e quando alguém via a bandeira americana hasteada e tremulando ao vento, experimentava um sentimento de admiração e reverência”.

O único erro factual é confundir a Guerra da Secessão com a Guerra da Independência; mas a necessidade de fornecer contexto a adolescentes chineses leva o tradutor a uma completa reescrita do texto original. Muitas vezes um tradutor insere duas ou três palavrinhas inócuas para esclarecer um detalhe no próprio texto, de maneira fluente, evitando as notas de pé de página, que muitos editores e leitores detestam. Essas interferências devem ser guiadas pelo bom senso e pelo desconfiômetro. Verne é um dos autores mais mutilados da história. Muitas edições “para jovens” suprimem por inteiro as explicações químicas ou físicas que ele queria transmitir aos jovens de seu tempo. Edições assim estão ainda no estado selvagem da tradução literária.